A MEDICINA COMO "MERCADORIA" NOS ESTADOS UNIDOS
Pacientes não são consumidores
Paul Krugman
O New York Times publicou recentemente uma reportagem sobre a reação negativa que o Congresso dos Estados Unidos demonstra em relação ao Independent Payment Advisory Board, conselho consultivo que é peça fundamental nas tentativas de conter o avanço dos gastos com a saúde no país. A atitude dos congressistas era previsível. É também irresponsável. Enquanto eu analisava os argumentos dos republicanos contrários à formação do conselho, fiquei impressionado com o fato de que a proposta orçamentária da Câmara dos Deputados norte-americana se baseia no princípio de que "os programas de saúde do governo precisam responder melhor às escolhas dos consumidores".
Eis a minha pergunta: desde quando referir-se a pacientes como "consumidores" é algo normal ou até mesmo aceitável? A relação médico-paciente já foi considerada especial, quase sagrada. Agora, políticos e supostos reformistas tratam o atendimento médico como se ele fosse uma transação comercial igual à compra de um carro – e a única reclamação que fazem é que o serviço não é comercial o bastante. O que há de errado com a sociedade norte-americana?
Sobre o conselho consultivo: é preciso fazer algo a respeito dos gastos com a saúde, ou seja, é necessário encontrar uma maneira de começar a dizer não. Com a contínua inovação nos tratamentos médicos, não é possível manter um sistema no qual o Medicare simplesmente arca com tudo o que os médicos recomendam. Isso é especialmente importante quando esse cheque em branco combina-se com os fortes incentivos financeiros dados a médicos e hospitais – que não são santos – para que sejam adotados tratamentos excessivamente caros e longos.
Daí a necessidade do conselho consultivo, instituído pela reforma do sistema de saúde aprovada no ano passado. O painel, constituído por especialistas em saúde, trabalharia com uma meta para o crescimento dos gastos do Medicare. Para manter os custos abaixo desse limite, o conselho apresentaria recomendações de aplicação imediata para o controle de gastos – as medidas teriam efeito automático, a menos que fossem derrubadas pelo Congresso.
Antes que você comece a gritar coisas como "racionamento" e "painéis da morte", tenha em mente que não se trata de limitar o acesso aos tratamentos de saúde que sejam comprados com o seu dinheiro (ou por meio do seu plano de saúde). A medida diz respeito somente àquilo que é pago com o dinheiro dos contribuintes. E, da última vez em que olhei para a Declaração de Independência, não li nada sobre o direito à busca da felicidade com todas as despesas pagas. Escolhas precisam ser feitas e, de um jeito ou de outro, os gastos governamentais com a saúde deverão ser limitados.
Agora, o que os deputados republicanos propõem é que o governo simplesmente empurre o problema da elevação nos custos da saúde para o colo dos idosos. Pela proposta da oposição, o Medicare seria substituído por vouchers que serviriam para o pagamento de planos de saúde privados – os idosos e as seguradoras que se virassem para fazer esse sistema funcionar. Esse projeto, de acordo com os republicanos, é superior à análise feita por especialistas porque deixaria o sistema de saúde aberto às maravilhas da "escolha do consumidor".
O que há de errado com essa proposta (além de o valor estabelecido para os vouchers ser totalmente inadequado)? A ideia simplesmente não funcionaria na prática. A medicina "baseada no consumidor" fracassou em todos os locais onde já foi testada. Um exemplo: o programa Medicare Advantage – originalmente chamado de Medicare + Choice – deveria ser mais barato para os cofres públicos, mas acabou custando muito mais do que o Medicare tradicional. Entre as nações desenvolvidas, os EUA têm o sistema de saúde mais "voltado para o consumidor". O país também apresenta, de longe, os maiores custos do setor, porém a qualidade dos serviços não é superior à de sistemas muito mais baratos encontrados no resto do mundo.
Mas o fato de os republicanos exigirem que a população aposte sua saúde – e até mesmo a vida – numa ideia fracassada é apenas parte do problema. Como já afirmei, há um erro terrivelmente absurdo na definição de pacientes como "consumidores" e do sistema de saúde como mera transação financeira. A medicina, afinal de contas, é uma área em que decisões cruciais – decisões de vida ou morte – devem ser tomadas. Para que esse arbítrio ocorra de maneira inteligente, requer-se um vasto conhecimento técnico dos profissionais do setor. Como se isso não bastasse, as escolhas dos médicos são frequentemente feitas enquanto o paciente está incapacitado, sob muito estresse ou quando a ação precisa ser imediata, sem tempo para discussões, muito menos para a pesquisa de preços.
É por isso que existe a ética médica. É por isso que os médicos são tradicionalmente vistos como uma categoria especial, da qual se espera um comportamento de padrão mais elevado do que a média dos demais trabalhadores. Há um motivo sobre por que assistimos a séries televisivas que retratam médicos – e não gerentes administrativos – como heróis. Sugerir que essa realidade possa ser reduzida a um simples comércio – que os médicos sejam meros "fornecedores" vendendo serviços a "consumidores" de saúde – é uma ideia doentia. O fato de essa noção equivocada ter se tornado dominante é sinal de que há algo de muito errado não apenas nessa discussão, mas também nos valores da sociedade norte-americana. (Extraído do Rebelión)
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