Do blog do Miro.
Por Francisco Bicudo, no Blog do Chico:
Nem bem a notícia sobre o câncer de laringe de Lula havia sido dada, na manhã do último sábado, e as redes sociais e os espaços para comentários de leitores em diversos sites e portais já tinham sido lamentavelmente transformados em esgoto fedorento, tamanha a quantidade de falas torpes e abjetas que começaram a ser postadas. Não vou aqui reproduzi-las, para não oferecer ainda mais espaço e visibilidade gratuitos para o rancor e a ignorância (entendida precisamente como falta de informação ou de argumentos), mas o que veio à tona, de forma efusiva, foram comemorações e regojizos, a agradecer a doença do ex-presidente e a desejar a ele vida curta, dentre tantas outras barbaridades.
O movimento foi tão brutal e desumano (às vezes penso mesmo se o ser humano merece ser chamado de Homo sapiens, aquele que pensa e sistematiza ideias com a razão...) que chegou a incomodar gente como o jornalista Gilberto Dimenstein, que, longe de ser um esquerdista (e de quem discordo na imensa maioria das vezes), apressou-se em publicar na WEB um texto onde reconhecia ter sentido "um misto de vergonha e enjoo ao receber centenas de comentários de leitores para a minha coluna sobre o câncer de Lula. Fossem apenas algumas dezenas, não me daria o trabalho de comentar. O fato é que foi uma enxurrada de ataques desrespeitosos, desumanos, raivosos, mostrando prazer com a tragédia de um ser humano. Pode sinalizar algo mais profundo". Tais ativistas de sofá, muitas vezes protegidos por anonimato e perfis fakes (quanta decência e coragem...), aproveitam-se de um drama humano para travar luta política, transformada ainda em guerra suja e lamacenta, da pior espécie, sem escrúpulos.
Para Francisco Fonseca, professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV/SP), essa reação corresponde mais uma vez, e de forma cristalina, à ojeriza que as elites sempre manifestaram pela figura de Lula e por aquilo que ele representa - e os adeptos de tal tese encontraram na doença dele mais uma janela para a publicização desse rancor. "Não aceitam que um operário, retirante nordestino, sem a escolaridade formal tenha chegado à Presidência da República. Sempre que podem, buscam revanche. É disso que se trata. Claro que o governo Lula teve inúmeros problemas, mas também registrou avanços inegáveis. O Brasil mudou, para melhor. Mas as elites abandonam a discussão política e investem num forte preconceito social, de classe", avalia o pesquisador, em entrevista exclusiva ao Blog.
No limite, o que as elites explicitam é por tabela uma visão limitada e utilitarista da própria ideia de democracia, já que um dos principais feitos das duas eleições de Lula foi justamente mostrar que a democracia brasileira vale para todos. Como bem lembra o jornalista Mino Carta, estamos afinal a falar de um segmento privilegiado e egoísta da sociedade, que sofre de "umbiguismo" crônico, de uma das elites mais arcaicas e retrógradas do planeta, que tem saudades da Casa Grande e defende ferozmente uma democracia para 20%, sem o povo a incomodar.
O professor da FGV/SP (também autor do livro "O consenso forjado", editora Hucitec, 2005, que discute o papel da grande mídia na consolidação da agenda neoliberal no Brasil) lembra também que, em termos políticos, o Brasil vive, desde o início dos anos 1990, a polarização ideológica entre PT e PSDB, que de alguma maneira reflete a oposição entre pobres e ricos. "É a divisão de classes traduzida em partidos, e o PSDB tem bandeiras fortemente elitistas, que vão aparecer e se manifestar publicamente nessas situações, como já havia ocorrido inclusive na campanha presidencial do ano passado, quando a candidatura de José Serra flertou perigosamente com temas obscuros e de natureza privada", confirma.
Preconceito e ignorância se manifestaram também de forma igualmente asquerosa na campanha "Lula, vá se tratar no SUS", veiculada nas redes - e duramente criticada até mesmo pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, para quem essa postura é uma espécie de "recalque, um equívoco que ele não endossa". Ora, quando tiveram graves problemas de saúde, Sergio Motta, Roberto Marinho e Ruth Cardoso buscaram tratamento em modernos hospitais privados (Albert Einstein, Samaritano (RJ) e Sírio-Libanês, respectivamente). Orestes Quércia também buscou o Sírio, onde também estiveram internados Romeu Tuma e José de Alencar. Mario Covas foi atendido pelo sistema particular. E não coloco em questão as escolhas deles, fizeram as opções que mais acharam adequadas. É legítimo - e legal. Mas, assim como quem não quer nada, só por curiosidade mesmo, pergunto aos que defendem a campanha "Lula, faça o tratamento no SUS": o mesmo deveria ter valido para todos os outros aqui citados? A postura parece confirmar o preconceito e o ódio de classe: para quem pertence à elite, tudo bem, essa escolha é "natural", sem gritarias ou inconformismos. Já para o operário, que vem da plebe... "O argumento é novamente seletivo", destaca Fonseca.
Outra questão: quem bate no peito e vocifera que Lula deve se tratar no SUS defende também com convicção e honestidade que o governador Geraldo Alckmin e o prefeito Gilberto Kassab devam oficialmente renunciar a carros particulares e a helicópteros para se deslocar pela cidade de São Paulo apenas de metrô e de ônibus, respectivamente? Avaliem por gentileza a encruzilhada: porque busca tratamento em hospitais privados, Lula é "incoerente"; caso escolhesse o SUS, seria acusado de 'tirar vaga de quem realmente precisa'. E aí? Como faz? Para mim, é muito claro: é ódio de classe. Para estes, é melhor deixar o ex-presidente sem atendimento mesmo.
Aliás, novamente, e sempre como curiosidade: por que o alvo dessa campanha tão "nobre, republicana e cívica" é apenas o ex-presidente Lula? Em artigo publicado na Agência Carta Maior, a jornalista Maria Inês Nassif escreve que "a obsessão da elite brasileira em tentar desqualificar Lula é quase patológica. E a compulsão por tentar aproveitar todos os momentos, inclusive dos mais dramáticos do ponto de vista pessoal, para fragilizá-lo, constrange quem tem um mínimo de bom senso. (...) Até na política as regras de boas maneiras devem prevalecer". E Paulo Moreira Leite, da revista Época, uma das raras vozes lúcidas que resta na mídia carcomida (mas que mostra que ainda há espaço para bom jornalismo na grande imprensa), chama a campanha de "hipocrisia" e lembra que "ironicamente, os mesmos adversários que impediram a manutenção de verbas para a saúde pública agora querem que o presidente se trate pelo SUS".
O jornalismo, aliás, merece um parágrafo à parte nessa análise. Foi estarrecedor perceber que, menos de meia hora depois da confirmação do câncer, rádios e emissoras de TV, principalmente, já estavam a reverberar o mórbido cenário "pós-Lula" - além obviamente de muitos colunistas aproveitarem a oportunidade para reforçar o fato de o tumor ser "na garganta" (nas entrelinhas, torcendo mesmo para que a voz de Lula silencie), o resultado de uma vida desregrada e regada a goles (com associação nem sempre sutil com o alcoolismo) e a cigarrilhas. O jornalista Luis Nassif lembra que, não por acaso, em grande medida o ódio contra o ex-presidente Lula vem sendo estimulado por órgãos de imprensa - e por seus colunistas e especialistas.
"São expressões mais acalentadas do elitismo de que falamos. A revista Veja é hoje a representante máxima e assumida da extrema-direita. Seus jornalistas são na verdade ideólogos, aquilo que o (Antonio) Gramsci (pensador italiano, 1891-1927) chamaria de intelectuais orgânicos. Meu palpite é que falam para uma audiência cada vez mais restrita, para guetos, para essas classes médias conservadoras", avalia Fonseca. Para ele, não há como não pensar em reforma da mídia. "Todo poder tem de ser controlado, democraticamente. É preciso seguir o exemplo da Argentina e combater, por exemplo, a propriedade cruzada dos meios de comunicação. Não há democracia com concentração midiática", define.
E antes que as patrulhas reacionárias entrem em campo, uniformizadas e armadas até os dentes: não estou endeusando o ex-presidente Lula. Aqueles que acompanham o Blog conhecem bem as divergências (muitas delas de fundo) e críticas que tenho à chamada "Era Lula", quando avançamos, inegavelmente, mas quando também muitas vezes despolitizamos o debate e nos permitimos mover por messianismos, deixando portanto de avançar muito mais, em temas e áreas cruciais e prioritárias. Mas meus estranhamentos com o ex-presidente e com os dois governos dele são dessa natureza: política. E assim serão tratados, democraticamente, com argumentos, de forma civilizada e respeitosa.
Neste momento, o que tenho sinceramente a dizer é: força, Lula! Estamos torcendo por sua pronta recuperação!
Postado por Miro
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