sexta-feira, 4 de novembro de 2011

POLÍTICA - O espelho e a feiúra.

Marcelo Carneiro da Cunha

De São Paulo


Pois que estimados leitores, inventaram as tais redes sociais e pimba, aflorou o que temos de mais anti-social. Tanto que enviei um mail ao criador do Facebook sugerindo a ele mudar o nome do negócio pra "anti-social network". O pior do comportamento desumano está nas redes, caros leitores, e nós junto.

E vivi de novo, porque recordar é viver, um momento na minha tenra infância, no alvorecer do século 12. Sentado no barbeiro, que felizmente já na época apenas cortava cabelo, não removia dentes, eu me olhava no espelho e até então tudo ia bem: éramos eu e minha imagem ali diante do espelho. Olhos, testa, bochecha, queixo, boca, coisas com que eu já estava acostumado e nem mais chorava ao olhar.

E o espelho era dobrável, e numa mudança de ângulo eu, pela primeira vez, me vi de perfil. Lembro do choque, estimadíssimos leitoríssimos. Aquilo ali não era eu. Aliás, eu não fazia idéia de quem fosse, mas sabia que não era eu, porque eu não era daquele jeito. Não era como me imaginava, não era como eu queria ser. Aquele espelho tinha, certamente, se virado um pouco demais e mostrava alguém lá fora, um ser estranho e com um perfil mais assemelhado com o de algum ser interplanetário. Não eu, nunca eu. Eu era bonitinho e gostava de mim. Eu não tinha aquela orelha de captar ondas do Big Bang original. Eu não tinha aquele rosto de duende em filmes ruins de Hollywood. Aquilo não era, não poderia ser, não era. Mas era, não é mesmo, caros leitores. Era.Assim fomos nós nas últimas semanas, e assim nos vimos, graças ao novo e amplo espelho também conhecido como internet.

Nos vimos fazendo aquelas coisas com o Kadafi e não foi nada, nada bonito. Nos vimos como piratas da Somália sequestrando e matando uma francesa deficiente física. Nos vimos no metrô de SP, com nosso cabelo raspado e nos comportando como se comportam os skinheads, barbaramente. Vimos aquelas pessoas da China passando ao lado do corpo atropelado de uma menininha, sem fazer nada para ajudar. Vimos, lemos, os milhares de tuítes dos odiadores do Lula e da espécie humana, desejando todo o tipo de maldade a um homem que jamais fez mal a quem quer que fosse, e acabava de se descobrir como portador de um tumor na laringe.

O que isso mostrou da gente, caros leitores? Onde estamos, de verdade?

Somos pessoas sensacionais, eu vejo isso no dia a dia das ruas paulistanas, que teriam tudo para produzir monstrinhos e produzem gente legal, divertida, gentil, com exceção dos meus vizinhos aqui de bairro, com seu gosto por SUVs e babás de branco.

Somos gente legal e cuidadosa, na maior parte do tempo, que opta por esquecer que existe uma faixa de segurança e pedestres, de tempos em tempos. Somos pessoas agradáveis, menos os que escolhem conversar e comer pipoca justamente no meio do filme que estamos tentando ver.

Quem somos, de verdade? Somos essa ruindade coletiva que a internet insinua, ou ela serve de lente para a gente ver melhor o que existe de pior entre a gente? Os maus aparecem mais do que os bons? A amostra na internet é contaminada e somos melhores aqui fora do que parecemos nela?E, uma pausa: por que essa gente detesta tanto o Lula? Porque o Lula, e não eu, que sim, sou um péssimo ser humano e não uso o SUS, deixo para quem precisa mais do que eu?

Lula defendeu a corrupção? Quem votou nos corruptos que infestam o Congresso e infernizam quem tenta governar? Lula governou para si mesmo? Então quem explica a admiração que o Brasil provoca no mundo inteiro (uma admiração exagerada, mas melhor do que o modo com que nos viam até agora) e que ninguém precisa me contar, porque eu viajo e vejo por mim mesmo? Um sujeito com aquela história de vida, que ocupou dignamente o cargo de presidente do meu país, assim como Itamar o fez, como FHC o fez, e assim como a Dilma o faz, merece o meu desprezo e ira? Por que?

Não será que existe gente de sobra que infelizmente detesta a si mesma e, portanto, ao mundo? O cara que passa aqui em frente com o pancadão a mil, o faz por apreciar música ou por detestar a humanidade? O cara que encontra na internet a janela através da qual grita a sua indignação, o faz por amor ao mundo, ou ódio a si mesmo?

A feiúra não odeia o que não é feio exatamente por isso?

Acho que é sim, o caso. Existem pessoas feias, e existem algumas muito feias. Umas fizeram aquilo com o Kadafi ou com a menininha chinesa. Outras fizeram o que fizeram ao menino João Vítor. Elas existem, sim.

Mas elas não nos definem, mesmo que nos ensurdeçam, por vezes. Elas existem, como os nazistas existiram, os anti-tudo existem, e melhor que os vejamos como são, quando são, onde estão, em sua infinita feiúra. Melhor assim. Conhecer é temer, mas também é saber. Eles estão aí, e sabemos. Mas a sociedade é muito maior e melhor do que isso e a internet está cheia de beleza, mesmo que a feiúra tente jogar lama em tudo. Isso não quer dizer que ela seja maior ou mais forte, mas é apenas ela fazendo o que sabe, como sabe.

É preciso resistir, preservando a nossa humanidade acima de tudo. É preciso segurar o espelho em que a feiúra se vê em toda a sua fraqueza, e é preciso saber aguentar firme, porque logo uma parte dela faz pufff, e se vai. E é assim, pouco a pouco e do jeito que dá, que o mundo melhora.

Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe", publicados pela editora Projeto.

Fale com Marcelo Carneiro da Cunha: marceloccunha@terra.com.br
ou siga @marceloccunha no Twitter

Nenhum comentário: