Raros analistas, transcorrido apenas um ano de observação, afirmam de modo tão categórico que a presidente Dilma Rousseff conduz um governo essencialmente diferente ao de seu antecessor Luiz Inácio Lula da Silva. Para o sociólogo Luiz Werneck Vianna, de 73 anos, professor da PUC-Rio, Dilma realiza mudanças profundas que abrem novos caminhos na prometida marcha de continuidade à era Lula. Dilma separa-se do padrinho nos direitos humanos, na relação com os sindicatos - "a armação que Lula concebeu e fez funcionar está destruída" - e será cada vez mais impelida à infidelidade. Montará um governo com cara própria e o tocará sob a égide da racionalidade; e não para atender aos caprichos dos amigos e aliados. Dilma, afirma o pesquisador, já está introduzindo uma guinada no presidencialismo de coalizão brasileiro, com ministérios sem "porteira fechada". A tendência, prevê, é de uma coalizão mais programática.
A reportagem e a entrevista é de Cristian Klein e publicada pelo jornal Valor, 10-01-2012.
A "estatolatria" de Lula, que significou uma volta ao varguismo e ao regime militar, dá espaço a uma presidente sintonizada com a agenda internacional de uma nova época em emergência, onde o Estado-nação perde força. Dilma é, e será, diferente de Lula, em primeiro lugar, por chegar ao poder em circunstâncias distintas - num mundo em mutação e em crise financeira - e, em segundo lugar, por estar dotada, com sua formação universitária em economia, da capacidade de calcular os riscos por ela mesma.
Ex-militante do Partidão, o PCB, quando foi aluno de curso de formação de quadros comunistas internacionais na então União Soviética, em 1974, Luiz Werneck Vianna mantém a posição em causas consideradas polêmicas. Defende as férias de 60 dias dos magistrados e critica o acerto de contas com o regime autoritário, nos moldes realizados pelos vizinhos sul-americanos: "Os direitos humanos dizem respeito aos vivos", afirma o sociólogo, que considera o empresário Eike Batista e a senadora Kátia Abreu (PSD-TO) símbolos do capitalismo brasileiro em expansão.
Eis a entrevista.
Qual é a sua avaliação do primeiro ano de Dilma Rousseff?
Mudou em relação ao governo anterior, em que pese a própria Dilma.
Como assim?
Independentemente de querer ser fiel ao patrono, ela vai ser constrangida à infidelidade. Já está montando um governo com cara própria. Caíram seis ministros, por denúncias de corrupção, sendo que o sétimo, o Nelson Jobim [ex-ministro da Defesa], era absolutamente chave. Foi uma perda imensa. Os outros significavam bem essa política do presidencialismo de coalizão do Lula. E essa é uma inflexão importante. A Dilma está introduzindo uma mudança de fundo na arquitetura do presidencialismo de coalizão no Brasil: [o ministério] não vai ser de porteira fechada. Tende a ser uma coalizão programática, o que nunca ocorreu no Lula. Era "Vem cá meu bem, que para você tem" e com isso você pode atender seu partido, seus amigos. A primeira implicação é uma mudança no sentido de partidos que parecem mais estruturados do que nossa filosofia admite. Para que o presidencialismo de coalizão programático funcione é preciso que os partidos estejam mais estruturados do que estão.
Quais são as evidências?
Ela está conversando mais com os secretários-executivos sobre a realização de programas de governo. Na reforma ministerial, isso vai aparecer de forma mais definida.
A reforma vai ser importante para dar a cara dela.
Vai definir qual será a natureza do presidencialismo de coalizão. Porque não há sociedade que tolere, com esse sistema de freios e contrapesos, e porque não há recursos para esses gastos perdulários. Tende a enxugar, tende a racionalizar. Essa é uma tendência do governo Dilma: racionalização.
O desafio é encontrar uma fórmula que não desagrade tanto a classe política, como a contenção de emendas parlamentares.
E nem [desagrade] embaixo. Dependendo de como ela manobre, podemos ter turbulências. Politicamente, ela não tem ninguém relevante do lado dela. Perdeu o [Antonio] Palocci [ex-ministro da Casa Civil] e o Nelson Jobim. São quadros que ela não tem como recuperar.
O senhor critica uma certa "estatolatria" que haveria no Brasil. Dilma mudou em relação a Lula?
Com ela, tende a diminuir. Se eu estiver certo, nós vamos ver nos próximos meses um progressivo distanciamento dos sindicatos e dos movimentos sociais em relação ao governo. O MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] já começou.
Isso é bom?
Dá mais autonomia para a sociedade.
Por que Dilma abriria mão do arranjo político que foi tão bem sucedido com Lula?
Porque ela está vivendo um outro mundo, onde terá que fechar o cofre. E porque nós estamos vivendo uma mudança de época. O mundo mudou. Sabemos do que estamos nos afastando, mas ainda não pressentimos para onde vamos.
De que nos afastamos?
Do que se poderia caracterizar, como no diagnóstico da [filósofa] Nancy Fraser, de um paradigma keynesiano-westfaliano. Estamos indo para um mundo onde temas centrais da vida moderna são tratados por organismos que exercem jurisdição internacional, por exemplo os que mexem com economia, meio ambiente e terrorismo. Exemplo forte é o da Justiça internacional, com o Tribunal Penal, acima dos Estados nacionais. É uma época de inovação, de criação.
O Brasil, com o recente fortalecimento do peso do Estado, não seria um contraponto à tendência?
Esse deslizamento está acontecendo numa escala mundial. O Estado-nação perde força. E as ideologias, comportamentos e atitudes que vieram com ele vêm se esmaecendo. Mas no segundo mandato de Lula, houve uma mirada no retrovisor. Foi um momento de forte adesão ao paradigma keynesiano-westfaliano, no momento em que esse paradigma no mundo perde força.
Como isso se deu?
Houve um retorno a um repertório dos anos 30, do Estado Novo, do regime militar, do "Brasil país grande potência". O tema [westfaliano] da grandeza nacional foi um retorno quanto à política do regime militar, especialmente a do governo Geisel. Esse eixo Getulio-JK-regime militar se projetou inteiro no segundo mandato de Lula. Isso envolvendo políticas e valores do nacional-desenvolvimentismo. [O economista] Celso Furtado [1920-2004] foi guindado a uma figura ícone do governo. Agora mesmo, um navio importante recebeu o nome dele. Na política externa, teve acompanhamento, especialmente, nas relações com o mundo árabe, América Latina... Para não falar da forte "estatalização" do movimento sindical.
A relação com os sindicatos mudou muito?
A Dilma herda esse eixo, mas só que o mundo deslizou, vem deslizando. A armação que Lula concebeu e fez funcionar está destruída. Este sindicalismo não tem mais o velho lugar, quando sentava com o presidente da República e deliberava como ia ser o salário mínimo futuro - tanto de produtividade, tanto de inflação - e que virou lei agora. Isso foi feito com Lula e eles. Não tem mais Dilma e eles.
Ter os sindicatos por perto não seria uma medida mais racional para Dilma?
Mas a conta também é alta. Passa pela Previdência, pelo salário mínimo, ajuste fiscal, custo Brasil, não dá mais. Essa crise está limpando a névoa, está obrigando a que o argumento econômico seja mais respeitado. Há exemplos de fora: Itália, Espanha. As medidas dela não terão como objeto os que estão em cima, as elites econômicas, mas quem está embaixo. Você continua a viver num condomínio entre governo e elites econômicas do país. Sempre disse isso.
O combate à pobreza e a ascensão de uma nova classe média não contradizem essa ideia?
Está sendo importante. Mas são processos que requerem muita maturação.
Que outras diferenças marcam o estilo Dilma?
Há uma diferença irremovível: ela tem formação universitária e numa área determinada, em economia. Alguma coisa de economia ela entende. O Lula, não. Delegava. A crise chega com a presidente no olho do furacão, sabendo ler, interpretar e calcular os riscos por ela mesma.
O país está em boas mãos?
Não estou avaliando se é melhor ou pior. Só sei que quando os sindicatos chegam, com as suas pretensões, ela tem objeções a fazer, como fez na época da votação do salário mínimo. "Isso eu não posso dar". Ela sabe que não pode dar. E em outras coisas, como Previdência, saúde, ela é obrigada a se adaptar a uma agenda mais racional-legal do que Lula, por razões econômicas e por razões de fortalecimento de um sistema de freios e contrapesos que foi se tornando cada vez mais importante, além da mídia.
Nestes termos weberianos, Dilma busca legitimar seu poder no mundo da técnica enquanto a fonte de Lula era o carisma?
Pode-se dizer. Mas, independentemente desse cálculo, há constrangimentos que fazem com que ela seja orientada para esta direção, e não outra. Não tem como não aderir a este movimento. A cognição política pode ser a mesma, o que muda é a circunstância, é a "fortuna", para ficar na imagem cediça do Maquiavel. E, aí, a "virtù" tem que mudar também. O tema dos direitos humanos ganhou uma projeção no governo Dilma, que não teve no governo Lula. O movimento sindical sofreu - a meu ver foi uma ferida funda - um abalo, com a saída desse ministro [Carlos Lupi, do PDT], que vinha do atraso sindical.
Qual é a consequência?
O movimento sindical vai conhecer a divisão real entre as centrais, por exemplo, entre CUT, Força...
Mais competitividade?
Sim, e também mais independência em relação ao governo. Com o Lupi, houve a ampliação da vida sindical em torno dos projetos governamentais. O sindicalismo foi se expandindo, com todos os sindicatos se arregimentando ao governo.
Fora o acesso aos recursos do imposto sindical.
E Lupi dando carta sindical para todo mundo e tudo isso aparelhado com ONGs. Mas, independentemente disso, o Lupi não caiu por causa da Dilma.
Por que ele caiu?
Porque as instituições democráticas se reforçaram no país.
A Comissão de Ética da Presidência da República ganhou um peso que não tinha.
A Comissão de Ética era para ter um outro papel, mais dócil. E não teve.
A recomendação de saída do ministro deixou a presidente numa saia-justa.
Para ela, destituir a Comissão seria um desastre, nem poderia fazer. A Comissão teve uma importância inesperada. E mais: deixou uma raiz, um sedimento, deixou, digamos, uma jurisprudência.
Foi o nascimento de uma nova instituição de controle?
Isso ao lado da Controladoria Geral da União e desses mecanismos todos que foram criados pela Constituinte ou depois dela, para que a sociedade pudesse fiscalizar o Executivo. Era tudo nominal, no papel. A esquerda em 1988 - consideradas as forças que mais tarde fundaram o PSDB e o PT, que já existia - não tinha a menor ideia do papel que essa institucionalidade iria ter. A presença dessas instituições e do Judiciário na vida política brasileira não foi algo que surgisse daquela intelligentsia e daquela esquerda. Isso não estava na cabeça do Fernando Henrique [Cardoso, ex-presidente], não estava na do Lula, do Ulysses [Guimarães, ex-presidente da Câmara dos Deputados e da Assembleia Nacional Constituinte].
Estava em quem?
Parece que foi uma associação entre juristas e [o ex-governador de São Paulo] Mário Covas, especialmente o José Afonso da Silva [constitucionalista, ex-secretário de Segurança Pública de 1995 a 1999 e principal assessor jurídico de Covas quando ele era senador, na Constituinte].
Como deve ser a sucessão no Ministério do Trabalho?
É difícil. Porque também não dá para entregar para um petista, que vem com a agenda prontinha lá daquele fórum de 2004 [o Fórum Nacional do Trabalho], com uma carga doutrinária sobre o assunto e a defesa da pluralidade sindical. Não pode entregar a um [Ricardo] Berzoini [ex-ministro do Trabalho, do PT, entre 2004 e 2005].
O PT no Ministério do Trabalho é um complicador?
Acho impossível [a nomeação de um petista]. Ele é obrigado a fazer reforma. O Berzoini tentou. Fez uma emenda constitucional.
O senhor costuma mencionar em suas análises o processo de expansão do capitalismo no país. Quem o lidera e para onde ele vai?
Vai sem projeto, politicamente desarmado. Mas tem sua energia, é voraz. Esse Eike Batista [presidente do grupo EBX e oitavo homem mais rico do mundo] pode ser considerado uma figura emblemática. Tem essa ética, com uma vida de monge, não é um homem de consumo conspícuo. Vive para servir à riqueza, à acumulação, como se fosse um herói calvinista. Ele é bem representativo. E os homens do agronegócio também. A [senadora] Kátia Abreu [do PSD de Tocantins e presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA)] é outra. São os novos personagens do capitalismo brasileiro. Vigorosos, sem fraquezas, sem ostentação. Os Matarazzo [de São Paulo] tinham uma vida mais aristocrática.
Seu trabalhos sobre judicialização da política são referência. Como o senhor avalia as críticas às tentativas de se podar o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)?
Isso vai na esteira do mesmo processo de intensificação do mecanismo de controle [das instituições brasileiras].
O CNJ é importante?
Freios e contrapesos fazem parte de uma dinâmica que tem funcionado cada vez mais.
Prerrogativas dos magistrados, como férias de 60 dias, são justificáveis?
É uma atividade terrível. Há determinadas profissões que também têm férias mais extensas, escafandristas, esse tipo de coisa. A sociedade é que tem que estabelecer isso.
A Comissão da Verdade não chega tardiamente?
A minha posição não acompanha as posições majoritárias aí na intelligentsia. Acho que a gente deve recuperar a história, mas o passado passou. Página virada. Cada país fez, em circunstâncias diferentes. Você, à esta altura, rasgar a Lei da Anistia, seria jogar o país numa crise, não sei para quê.
E para conhecer as circunstâncias das mortes, sem punição, como aprovado?
Isso deve existir, com estes limites.
Os militares recorrem sempre à acusação de revanchismo.
Mas, vem cá, as grandes lideranças que nos trouxeram à democracia tiveram muito clara essa questão: anistia real, geral e irrestrita. As forças derrotadas, ou seja, a luta armada, querem reabrir esta questão? Não foram elas que nos trouxeram à democracia. Nos momentos capitais, ela não estava à frente, na luta eleitoral, na luta política, na Constituinte. Era um outro projeto.
Por isso ela é menos legítima para reivindicar investigações sobre o período?
É politicamente anacrônica. O país foi para frente. Tem uma ex-prisioneira política na Presidência da República. Altos dignitários da administração têm a mesma origem que ela.
Os direitos humanos não deveriam estar além do conflito entre projetos à esquerda ou à direita?
Os direitos humanos dizem respeito aos vivos. Aos mortos, o velho direito de serem enterrados como Antígona [protagonista da tragédia grega de Sófocles] quis enterrar o irmão em solo pátrio. É o que esta Comissão da Verdade está fazendo.
Fonte:IHU
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