domingo, 10 de fevereiro de 2013

GEOPOLÍTICA - China e América Latina: relações perigosas.




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Beijing multiplica presença econômica na região e seria alternativa a EUA e Europa. Mas velhos desequilíbrios marcam as novas parcerias

Por Christophe Ventura | Tradução: Inês Castilho

A América Latina poderia converter-se, nos próximos anos, numa “plataforma extraterritorial” da China, cuja função seria permitir a esta última assegurar e ampliar suas exportações – notadamente nos setores de eletrônica, indústria automobilística e têxtil – para os mercados norte-americanos, europeus e latino-americanos? Este risco seria ainda mais claro num cenário em que há tendência irreversível ao aumento dos salários chineses, ao encarecimento de seus produtos? As hipóteses acima foram suscitadas pela Comissão Econômica da ONU para a América Latina e o Caribe (Cepal), em um relatório recente, dedicado ao estudo das relações entre a China e a América Latina e Caribe1.

Um estudo da evolução quantitativa e qualitativa dos investimentos diretos externos (IDE) feitos pela segunda potência econômica mundial na América Latina, entre 2003 e 2009, reforça essa análise. As economias latino-americanas recebem agora 13% do total dos IDE da China no mundo2. Isso representa um montante estimado em 31 bilhões de dólares. Ainda que 90% desses IDE dirijam-se aos setores bancários de dois paraísos fiscais notórios – as Ilhas Cayman e os Ilhas Virgens Britânicas – a Cepal indica que, durante esses seis anos, 24 bilhões de dólares teriam sido diretamente investidos pelas empresas chinesas nos setores de recursos naturais, da indústria e dos serviços na América Latina.

Participação em companhias latino-americanas e acordos de cooperação entre regiões chinesas e países latino-americanos asseguram às empresas chinesas uma penetração crescente nas economias latino-americanas. O México e os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai) constituem a principal base para atividade produtiva de empresas chinesas na América Latina. Destacam-se os setores de produtos manufaturados, da eletrônica, automobilístico e de telecomunicações. “A porta de entrada na Argentina, Brasil, México e Uruguai deve ser vista como primeira etapa para organizar um avanço futuro em direção aos mercados dinâmicos constituídos pela Área de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) e o Mercosul, informa o relatório. Desde já, 50 mil empregos dependeriam diretamente dos investimentos chineses na economia real latino-americana.

Por que escolher a América Latina como potencial “plataforma extraterritorial”? O setor de eletrônica oferece uma imagem emblemática dessa estratégia. Segundo a Cepal, três fatores explicam a atração exercida pela América Latina sobre os investidores chineses: “1. A demanda interna (chinesa) é fragilizada pela concorrência no próprio território nacional; os lucros diminuíram, levando os empreendedores do setor a buscar novos mercados na América Latina, onde uma classe média emergente está em expansão. 2. Diversos países da América Latina passaram a adotar medidas antidumping contra produtos fabricadas na China. Estabelecer uma unidade de produção na região pode ajudar os empresários chineses a atenuar os conflitos comerciais. 3. Os empresários chineses não são atualmente capazes de estabelecer unidades de produção nos países desenvolvidos; esta é a razão por que a América Latina e a África tornaram-se zonas de destino importantes para seus IDE.”

Por sua vez, os IDE latino-americanos na China – e portanto a inserção das empresa da região na economia produtiva no país – continuam muito marginais. Os sete países que mais investem na China (Argentina, Brasil, Chile, México, e em menor medida, Colômia, Peru e Venezuela) contribuem com menos de 0,1% do total de IDE naquele país. Isso representa um montante acumulado de apenas 70 a 80 milhões de dólares…

Qual o retrato da relação comercial entre entre a América Latina e a Ásia? Em 2009, o volume do comércio bilateral entre as duas regiões elevou-se a 120 bilhões de dólares. As exportações latino-americanas (largamente constituídas por matérias-primas e produtos primários) para a Ásia representavam um total de 103 bilhões de dólares, ou 15% do total de exportações da região. Por sua vez, o mercado norte-americano recebia 42% das exportações latino-americanas e a União Europeia, 14%.

Vale notar que a China absorve quase a metade das exportações latino-americanas para a Ásia. Segundo a Cepal, o Império do Meio poderá, tornar-se, já em 2014, o segundo mercado mais importante para as exportações da região, desbancando a União Europeia. No caso do Brasil, a Ásia converteu-se, já no primeiro semestre de 2012, no principal destino das exportações – 27,8% do total. A China, sozinha, importou no período 14,3% das vendas externas do país e se tornou seu principal parceiro comercial.

Como parte deste mesmo movimento, o perfil geral do comércio entre a América Latina e a Ásia modificou-se na última década. A China ultrapassou o Japão, como principal parceiro asiático dos países latino-americanos; e agora, os seis países membros da Associação das Nações do Sudeste da Ásia (Asean) [Filipinas, Indonésia, Malásia, Singapura, Tailândia e Vietnã] disputam com a Coreia do Sul o lugar de terceiro parceiro.

O comércio sino-latino-americano é marcado por sua natureza desequilibrada. Os países latino-americanos são essencialmente exportadores de produtos primários e matérias-primas de baixo valor agregado (soja, ferro, cobre, petróleo etc.), enquanto a China exporta seus produtos manufaturados (têxteis, papel, automóveis, produtos eletrônicos e tecnológicos etc.).

A China tornou-se um mercado de exportação chave para seis países: Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Cuba e Peru. Entre 2005 e 2008, cinco países latino-americanos eram, sozinhos, responsáveis por 86% das exportações da região para a China: Brasil (33%), Chile (25%3), Argentina (12%), México (9%), Peru (7%).

Ao mesmo tempo, Argentina, Brasil, Chile, México, República Dominicana, Paraguai e Peru4 tornaram-se mais dependentes da China para suas importações. Entre 2000 e 2009, a parcela chinesa no total das importações argentinas passou de 4,6% para 12,4% (as importações provenientes dos Estados Unidos recuaram, no mesmo período, de 18,9% para 13,2% do total; e as europeias, de 23,5% para 16,8%). No Brasil, a tendência é a mesma: suas importações da China representam 15,2% das compras externas totais (eram 2,2% em 2000), enquanto que as importações provenientes dos Estados Unidos passaram de 23,3% para 14,5%. No México, apenas 2,2% do total importado vinha da China, em 2000; mas a taxa subiu para 13,9% em 2009. Ao mesmo tempo – e isso é histórico – a parcela das importações mexicanas provenientes dos Estados Unidos despencou de 71,2% para 48,1% e a da União Europeia, de 8,4% a 11,7%. Em valores, o México é o principal importador de produtos manufaturados chineses. Ela garante 48% do total de compras provenientes da China na região, seguida pelo Brasil (20%), Argentina e Chile (6% para cada um).

A nova estratégia de expansão da China na América Latina é facilitada pelas economias mais dinâmicas do subcontinente. Estas necessitam do mercado chinês para suas exportações de matérias-primas. É o caso especialmente da Argentina e do Brasil que, contrariamente ao México e aos Estados Unidos, reconheceram a China como “economia de mercado”.

A estratégia de Beijing baseia-se também na busca de assinatura de acordos de livre comércio. Entre 2006 e 2010, a China assinou três: com o Chile, o Peru e a Costa Rica. Os planos envolvem ainda estabelecimento de acordos de cooperação entre Estados, notadamente no setor petrolífero. Em 2009, o Banco de Desenvolvimento da China (BDC) abriu uma linha de crédito de 10 bilhões de dólares para a Petrobras, em troca da garantia de fornecimento de petróleo bruto.

 Além disso, a petroleira chinesa Sinopec adquiriu, em 2010, 40% do capital da filial brasileira da Repsol, a principal exploradora de petróleo espanhola. Ao mesmo tempo, China e Venezuela estabeleceram um Fundo de Desenvolvimento Comum que hoje alcança 12 bilhões de dólares. Os dois países estão igualmente ligados por um acordo que prevê uma troca de produtos chineses por petróleo venezuelano. O Equador firmou um contrato semelhante, envolvendo 1 bilhão de dólares.

A China tornou-se membro oficial do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com objetivo de converter a instituição num grande instrumento da cooperação financeira sino-latino-americana. Beijing também é parte do Banco de Desenvolvimento do Caribe (BDC).

Enfim, as autoridades chinesas contam com uma política diplomática ofensiva e dispõem de 21 embaixadas e seis consulados na região. Somente 15 desses 21 países dispõem de representação diplomática na China.

O relatório da Cepal conclui: “a taxa de crescimento econômico elevada (na China) e o processo de reconversão industrial das regiões rurais do país engendram um aumento da necessidade de infraestrutura e energia, assim como de alimentos. Essa situação é um poderoso motivo de aproximação com os países latino-americanos exportadores de recursos naturais.

 A China tem, igualmente, necessidade de assegurar o livre acesso de suas exportações na região e de ser aí reconhecida como “economia de mercado” (…). Nesse quadro, ela deve abrir um espaço para a assinatura de acordos comerciais na América Latina, a fim de garantir acesso preferencial a seus produtos nesse mercado. E isso de maneira a não perder em competitividade face aos produtos norte-americanos – resultado de acordos de livre comércio bilateral assinados por esses últimos na região – ou europeus, antecipando negociações da União Europeia com o Mercosul e a Comunidade Andina de Nações (CAN).”

Na reconfiguração constante do comércio internacional, em meio à globalização econômica e financeira, o comércio entre países do chamado Sul Global intensifica-se e representa parte cada vez mais significativa das trocas comerciais no planeta. O comércio Sul-Sul representava 6% do comércio internacional em 1985, para alcançar 24% em 2010. Desse total, 85% das trocas ocorrem entre os próprios países asiáticos, ou entre eles e outros países do Sul.

Embora participe desse importante movimento global, a América Latina continua largamente prisioneira de uma integração à economia internacional pelo aumento da “primarização” de sua economia. Sua relação com a China confirma essa tendência.

Christophe Ventura é cientista político e integrante da rede internacional Memória das Lutas — Medelu (www.medelu.org)
1China e América Latina / Caribe – Rumo a uma relação econômica e comercial estratégica”, Osvaldo Rosales e Mikio Kuwayama, Cepal, 2012 (http://www.eclac.org/publicaciones/xml/9/46259/China_America_Latina_relacion_economica_comercial.pdf)
2Segundo o fundo de investimento A Capital, citado pelo Le Monde (9/6/2012), os investimentos diretos externos da China somariam 68 bilhões de dólares em 2011. 43% deles seriam dirigidos à América Latina, o que tornaria a região o primeiro destino de tais capitais. O fundo estima que a soma poderia chegar a 800 bilhões de dólares em 2016.
3 O couro tornou-se o principal produto de exportação chileno. A China absorve 55% das exportações de couro latino-americanas, das quais 30% provêm do Chile
4 Além de principal parceiro comercial do Brasil e do Chile, a China é o segundo parceiro da Argentina e Peru. Ler, sobre o assunto, texto do autor, no Le Monde Diplomatique francês

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