A beatlemania, 40 anos depois, segundo o jornal L'Osservatore Romao
"Por que os Beatles são tão superiores? É fácil dizer que a maior parte dos seus concorrentes são lixo. Mais importante é afirmar que a sua superioridade é tangível: toda canção dos últimos três álbuns é memorável. Os melhores exemplares entre essas melodias memoráveis – e são um vasto percentual ("Here, There and Everywhere", "Good Day Sunshine", "Michelle" e "Norwegian Wood" já são clássicos) – suportam a comparação com às dos compositores da grande época da música: Monteverdi, Schumann, Poulenc".
A reportagem é de Gaetano Vallini, publicada no jornal L'Osservatore Romano, 14-11-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Que um famoso regente de orquestra como Riccardo Chailly afirme hoje amar os Beatles e que "Yesterday" lhe lembre a Terceira de Mahler não causa tanta admiração. Mas, em 1968, o compositor de música clássica Ned Rorem mostra certamente uma boa dose de coragem ao aproximar o nome dos Beatles aos dos clássicos da música "séria". Porém, o artigo do qual foi tirada a citação, publicada no dia 18 de janeiro na New York Review of Books, depois de anos de resenhas escritas com incontida suficiência pelos especialistas, abre finalmente um debate entre os adeptos dos trabalhos sobre o valor das composição da banda.
O artigo de Rorem pode agora ser lido no livro "Read The Beatles" (Roma, Ed. Arcana, 2010, 541 páginas), editado por June Skinner Sawyers, uma antologia de escritos da época sobre o impacto, a influência e a modernidade dos quatro rapazes de Liverpool que mudaram para sempre a face da música e da sociedade.
Por meio de mais de 50 artigos, ensaios, entrevistas e trechos de livros – alguns dos quais raros, outros conhecidos, como a entrevista de Jonh Lennon a Maureen Cleave para a Evening Standard de março de 1966, com a frase sobre os Beatles mais populares do que Jesus –, a organizadora percorre todo o arco da carreira dos Fab Four.
Principalmente os artigos dos primeiros anos são interessantes, entre exaltações tão imprudentes quanto proféticas, poucas na verdade, e críticas conformísticas e tranquilizadoras, bem mais numerosas. De fato, apesar do impressionante e inesperado sucesso, a opinião comum é de que os Beatles são só uma moda passageira que se exauriria rapidamente, como todas as manias dos jovens. Porém, não sem preocupação, já que o Daily Mail, abordando a beatlemania, se pergunta com uma certa ansiedade: "Para onde isso irá nos levar?".
A grande maioria se detém na exterioridade. No dia 18 de novembro de 1963, a Newsweek publica um artigo desprezível e anônimo – um dos primeiros nos EUA – que, depois de ter ironizado sobre o look dos Beatles, explica: "A sua música é um dos sons mais persistentes na Inglaterra, desde que as sirenes dos ataques aéreos não estão mais em funcionamento (...). É penetrante, tocada em um volume mais alto do que a razão humana e também é surpreendentemente repetitiva. Como o rock'n roll, ao qual se aproxima, causa mais efeito olhá-la do que escutá-la. Os rapazes se sacodem, saltitam e giram ao redor de si mesmos. Parece que uma vez até beijaram as guitarras".
Mas, no dia 1º de dezembro de 1963, na New York Times Magazine, Fredrick Lewis é mais moderado: "Na base, trata-se de rock'n roll, mas menos formal e levemente mais inventivo. O seu espetáculo, que inclui também discursos ao longo dos vários temas, é divertido e audaz", envolvendo "todas as classes sociais e todos os níveis de inteligência".
Há também quem veja na beatlemania uma "ameaça" para a sociedade, como Paul Johnson, que, na New Statesman do dia 28 de fevereiro de 1964, não se deixa impressionar pelo sucesso dos Beatles. Perturbado pelo "novo culto da juventude", o jornalista estigmatiza uma intervenção do ministro da Informação, William Deedes ("ex-aluno da prestigiosa Harrow School", precisa com sarcasmo), que, sobre os Beatles, não sem clarividência, havia dito: "Preanunciam um movimento cultural que está ganhando vida entre os jovens e que poderia começar a fazer parte da história do nosso tempo. Diante dos olhos de todos, está acontecendo algo importante e encorajador".
"Se os Beatles e os seus pares – lamenta Johnson – são aquilo que efetivamente a juventude britânica quer, não nos resta nada mais senão nos desesperar. Recuso-me a acreditar nisso (...). Há 16 anos, eu e os meus amigos havíamos escutado pela primeira vez a execução da Nona Sinfonia de Beethoven: lembro ainda hoje com entusiasmo. Não desperdiçamos nem 30 segundos do nosso preciosíssimo tempo com os Beatles e os seus semelhantes (...). O que o senhor Deeds não consegue entender é que a verdadeira nata do povo dos adolescentes, os rapazes e as moças que serão os verdadeiros criadores e líderes da sociedade de amanhã, não se aproximam nem de um concerto de música pop".
Ipse dixit. Mas já na época há quem se detenha no valor musical dos Beatles. Pioneiro é o artigo publicado no Times do dia 23 de dezembro de 1963. Seu autor é William Mann, que porém não o assina, talvez para não danificar a sua fama de crítica de música clássica. Mann define Lennon e McCartney como "dois jovens e talentosos musicistas" e faz isso falando de guitarras "frescas e harmoniosas", de um "uso alegre e frequentemente instrumental do dueto vocal", de "mudanças da superdominante de Dó maior para Lá bemol maior e depois a modais de extensão menor", que são a sua "marca de fábrica".
E depois de ter destacado que, "por décadas, as canções pop inglesas sempre foram reconhecidas com prestígio pelos EUA", o crítico indica que as músicas da dupla têm um "caráter indigno muito claro". Por isso, "a notícia de que agora os Beatles se tornaram os favoritos também do público norte-americano é carregada de uma certa e gratificante ironia".
Porém, a chegada triunfal dos Beatles aos EUA se contrapõe à atitude desprezível com a qual a imprensa mais tradicional os acolhe. "Dotados de um certo talento (...), os Beatles são 75% publicidade e 20% cortes de cabelo, mais 5% lamentos ritmados", escreve John Horn, crítico televisivo do New York Herald Tribune. "São, mais do que outra coisa, um número de magia, que deve menos à Inglaterra do que ao circo Barnum". O Washington Post os define como "assexuados e banais", enquanto o Washington Star descreve como "mínimo" o seu talento musical, acrescentando: "Nós jamais desenfornamos um Shakespeare, mas também jamais desenfornamos um Beatles".
Em 1964, entra em cartaz o filme "A Hard Days Night", precursor dos modernos videoclipes, e Busley Crowther, no New York Times, fala dele como de "uma comédia formidável". O sucesso é irrefreável, tanto que, na Cosmopolitan de dezembro, Gloria Steinem define os Beatles como "a única grande atração do mundo".
E isso nada mais é do que o começo. O melhor ainda está por vir. Depois de "Help" e de "For Sale", entre 1965 e 1966, chegam também "Rubber Soul" e "Revolver", os álbuns da definitiva passagem entre um velho (de apenas dois anos, mas que já mudou a música) e um novo que levará a uma verdadeira revolução.
Mas isso tem um preço. Em setembro de 19666, quando as vendas começam a cair durante aquela que se tornará depois a sua última turnê, a Time propõe a pergunta: "A Beatlemania acabou?". Pensa-se que, depois da novidade inicial, o fenômeno está se atenuando. Os Beatles, além disso, deixam as arenas pelos estúdios de gravação.
Mas depois chega "Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band" (1967), e o efeito é devastador. Quase toda a imprensa mundial o saúda como a uma obra-prima. A Newsweek compara as músicas de Lennon e McCartney às obras de Alfred Lord Tennyson, Edith Sitwell e T. S. Eliot, enquanto o crítico teatral do Times, Kenneth Tynan, define o lançamento do álbum como a "um momento decisivo para a história da civilização ocidental". Não falta, porém, algumas vozes fora do coro. Richard Goldstein, no New York Times, define o disco como "fraudulento", sde "efeito geral sobrecarregado, que segue a moda e desordenado", levantando não poucas reações ressentidas.
O ano de 1968 traz novas turbulências conhecidas: nesse clima ardente, os Beatles gravam a primeira versão de "Revolution", depois inserida no "White Album", que não agrada à imprensa de esquerda por causa da sua ambivalência, mas que a Time considera "entusiasmante".
Mas os quatro já sentem que o fim está perto. Exatamente no tempo de realizar o belíssimo "Abbey Road" no verão de 1969, a separação é oficializada no dia 10 de abril do ano seguinte. Para quase todos no mundo, é um evento inesperado. "Porque – como escreve Mark Hertsgaard – os Beatles não representavam simplesmente a sociedade artística mais extraordinária do seu tempo, mas eram também o seu símbolo cultural mais importante".
Apesar disso, no momento do fim, os críticos se perguntam se a música dos Fab Four irá durar. "Logo, a próxima geração irá criar novos símbolos por meio dos quais irá se identificar, que terão pouco sentido para todos nós, para os quais os anos 1960 significaram tanto", escreve Dorothy Gallagher na Redbook em setembro de 1974, acrescentando melancolicamente: "Se a música dos Beatles, como grupo ou como solistas, irá sobreviver ainda é uma questão a ser descoberta. Mas, no que se refere a nós, podemos dizer que os Beatles marcaram as nossas vidas de modo indelével".
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