Vera Malaguti Batista é secretária geral do Instituto Carioca de Criminologia, embora esclareça que tem uma formação “mais social que judicial”. Esteve na Argentina para encerrar a 9ª Conferência sobre Política de Drogas, organizada pela associação Intercambios en Congreso. Ali analisou os fenômenos midiáticos vinculados ao narcotráfico, à intromissão militar nas favelas cariocas e à situação carcerária.
Este último tema a motivou, junto com Pedro Viera Abramovay, a editar um livro chamado Depois do grande encarceramento (Ed. Revan, 2010), baseado nas colocações de um seminário realizado em 2008 no Rio de Janeiro, quando de 110.000 presos no Brasil, em 1994, se passou para 500.000 14 anos depois.
Além de socióloga, Vera Malaguti Batista fez seu mestrado em História Social na Universidade Federal Fluminense e é doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tornou-se conhecida no ambiente acadêmico do Brasil depois da publicação de uma pesquisa intitulada O medo na cidade do Rio de Janeiro. Dois tempos de uma história (Ed. Revan). Ali analisa as diferentes formas de controlar e disciplinar as massas empobrecidas, comparando o que ocorria em 1800 e em 1900.
Deste estudo se desprende não apenas a influência dos meios de comunicação de massa, mas também da Igreja brasileira, que orientou os medos para consolidar seus interesses, e a utilização do racismo para intensificar o medo do outro. A autora também assinala a importância do medo coletivo na construção das sociedades urbanas no Brasil.
Atualmente, Vera Malaguti Batista é professora de criminologia da Universidade Cândido Mendes e impulsiona uma mudança na legislação sobre as drogas no Brasil, num momento em que os crimes relacionados ao narcotráfico estão ficando sempre mais abundantes, como o da juíza Patrícia Ascioli, morta após condenar policiais que integravam “esquadrões da morte” no Rio. A desinformação e a contra-informação, diz, são essenciais para entender o retrocesso e os obstáculos para implementar políticas de drogas mais humanas e eficazes.
A entrevista é de Emilio Ruchansky e está publicada no jornal argentino Página/12, 05-09-2011. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
O que é o Instituto de Criminologia?
É um instituto de pesquisas. Temos uma revista que se chama Discursos Sediciosos. Crimes, direito e sociedade, onde trabalhamos temas relacionados com o direito, mas também com a arte.
Vocês têm alguma relação com o Estado?
Nenhuma, somos totalmente independentes.
Como monitoram a incursão do governo carioca nas favelas?
Temos uma avaliação totalmente negativa de uma ocupação bélica das favelas. É uma estratégia para fazer uma higienização da cidade para os grandes negócios transnacionais olímpicos e futebolísticos.
Não é uma “pacificação”, como se propala a partir do governo?
Essa palavra no Brasil tem uma história. Eu investiguei o que aconteceu em torno de 1830, quando o Brasil se tornou independente e houve um monte de rebeliões, histórias muito lindas, de indígenas, de escravos. Fiz um livro sobre a chamada Revolta dos Malês, dos escravos muçulmanos. “Pacificação” é uma expressão militar. Depois desta época de revoluções republicanas, no sentido radical do termo, as forças armadas do império brasileiro “pacificaram”. Isso quer dizer que em lugares como o Estado do Grande Amazonas, que hoje é Amazonas e Pará, matou-se metade da população. “Pacificação”, para quem conhece a história do Brasil, equivale a “dominação de território”.
Ou a extermínio...
Sim. Neste momento a polícia do Rio é a que mais mata no mundo. Este mês estão “comemorando” que houve apenas 800 mortos no ano; há três anos se chegou a 1.500. Essa é a “pacificação”, uma espécie de Pax Romana.
Neste momento o Rio é governado pelo PMDB, partido aliado do PT. Qual é a sua opinião sobre essa gestão no Rio?
O PMDB já existiu durante a ditadura militar. Está onde estão os negócios. Agora são centro-esquerda, mas em suas fileiras há gente de centro-direita, é uma mistura. O governo do Rio tem uma agenda politicamente correta, mas em segurança as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) têm uma camuflagem, que é a guerra contra as drogas, contra o crime, libertar as comunidades dessas máfias... mas por trás, se pode ver no mapa das comunidades pacificadoras que todas estão ao redor do Estádio do Maracanã, na zona Sul (Ipanema, Leblon), porque o Rio ainda tem favelas em áreas ricas; o belo é que é uma cidade misturada.
Na verdade mora mais gente nas favelas que no perímetro histórico da cidade. Isso se vê claramente antes de aterrissar no aeroporto internacional.
Justamente, o caminho desde o aeroporto, ao redor dos grandes estádios, nas zonas turísticas, tudo foi “pacificado”. Na semana passada entraram na Mangueira, que é um bairro lindo. O que fizeram? Entraram com tanques da Marinha e destruíram casas e pequenos negócios que são a economia local pobre. O município chama estas incursões de “choque de ordem”, é a política de higienização e o fim da verdadeira economia desses bairros.
Há alguns anos, os comerciantes pagavam esquadrões para matar os meninos pobres que andavam pelo centro. Isso voltou a acontecer?
Não, porque agora a polícia mata oficialmente em nome da pacificação e da guerra contra o narcotráfico. Além disso, os comerciantes estão tranquilos porque nas favelas pacificadas a polícia militar está permanecendo. Se você quiser fazer a festa de batizado de seu filho tem que pedir permissão à polícia militar, é um controle territorial, intenso e militarizado.
Qual é a situação do baile funk neste contexto?
Está proibido nas comunidades.
Mas é a música mais popular e não só nas favelas.
E nem sempre é violenta, mas às vezes é. Proibi-la faz parte da demonização das atividades das favelas. Agora há funk oficial, do governo. Estão cooptando artistas famosos para “o funk do bem”. Como é uma manifestação cultural de massas no Rio, é um dos objetivos militares.
O funk carioca nos anos 1970 impulsionava o orgulho negro e também foi perseguido pela ditadura.
O próprio samba foi criminalizado no começo do século 20! Se você ouvir os artistas negros perseguidos, como Bezerra da Silva, já falecido, vai perceber os mesmos olhares sobre as áreas populares, as mesmas estratégias, só que muda o leitmotiv; antes era o samba ou a capoeira e agora é o baile funk. Também há a questão sexual.
O baile funk é muito misógino.
Sim... mas há uma questão de certo puritanismo branco brasileiro.
Além disso, esta música fala do orgulho do usuário de drogas.
É a crônica dessa vida oprimida. O proibidão (variante do baile funk) inclusive é um desafio às investiduras policiais e à política proibicionista.
O controle da política militar reconfigurou a venda de drogas?
Houve mudanças na venda miúda, mas todos sabemos que o proibicionismo não acaba coma venda de drogas. Os países mais rígidos são os que apresentam maior crescimento na produção: Colômbia ou Peru, antes de (Ollanta) Humala. O Brasil quadruplicou, segundo o último relatório da ONU, o tráfico de cocaína para fora do continente, como corredor. No Brasil temos 40 anos de fracasso coma proibição: aumentou a produção, a comercialização, o consumo, a corrupção da polícia, a violência, de uma forma tremenda. Para que serve a política de drogas? Os objetivos que propõe não existem.
Ao mesmo tempo é discriminatória... Notou-se na última marcha mundial da maconha no Rio e em São Paulo.
Estava proibida. Meu marido, que é advogado, apresentou um habeas corpus e conseguimos realizar a marcha no Rio, mas em São Paulo foi proibida, e com tiros! Mas agora o Supremo Tribunal Federal disse que não é apologia e legalizou as marchas. Estamos muito atrasados também devido ao monopólio dos meios de comunicação; não temos jornais como o Página/12, que é um contraponto ao La Nación e ao Clarín. Creio que a Argentina, em todos os assuntos, tem uma agenda política vanguardista; conjuga movimentos políticos populares com causas como o matrimônio igualitário ou a despenalização da posse de drogas.
Mas no Rio há mais tolerância em certas zonas: fuma-se baseado na praia, nas ruas. Por que isso não chega à política?
Rosa del Olmo, que foi uma grande professora venezuelana que morreu há 10 anos e desconstruiu nos anos 1970 essa real política norte-americana, dizia em relação às drogas que houve uma mistura de desinformação e contra-informação, que produziu uma saturação que é funcional à ocultação do problema. Você tem uma espécie de massacre midiático sobre o problema, mas as pessoas não têm informação sobre indicadores de saúde ou propostas internacionais sobre o tema.
Como isto impacta sobre os usuários de drogas?
No Brasil, o problema não é tanto a criminalização do consumo, que é questão de classe média e está naturalmente descriminalizado. Quando jovem, eu vivia no bairro Santa Teresa e agora moro em Ipanema. Em Ipanema, se alguém fuma, a polícia não faz nada, mas se vem um vendedor ambulante fumando um baseado vai preso. Atualmente, no Supremo Tribunal Federal existe uma discussão muito qualificada, tanto que no voto da sentença pela marcha o juiz Celso de Melo, que é um jurista liberal, abriu a discussão para o uso terapêutico da maconha. Mas a opinião pública é monopolizada pelos jornais, pela Rede Globo e por um contraponto evangélico que é pior ainda: tem sua rede de rádio e televisão. Eles obstruem a discussão.
O Supremo não diz nada sobre a despenalização do porte de drogas?
Esse assunto não chegou ao Supremo, tem que ser provocado.
As pessoas vão presas, assim que deveria haver expedientes em trâmite.
Sim, mas o problema principal, onde se sangra literalmente, é no ponto da venda que envolve os pobres. No Brasil, não existe uma especificação na quantidade de maconha, por exemplo. É uma questão de interpretação. Eu investiguei mais de mil processos, quando começou esta política repressiva, entre 1968 e 1978. Se há dois rapazes com a mesma quantidade de drogas e um é branco de classe média é induzido a ir a um psicólogo ou ao médico, mas se é pobre e negro e mora na favela é considerado traficante. Creio que o problema é a demonização do tráfico, do comerciante minorista. Então, penso que descriminalizar apenas a posse vai produzir a mesma violência.
Também existem as internações obrigatórias pelo Código Penal, como na Argentina.
Existem e são inconstitucionais. Na guerra contra as drogas tudo é permitido: torturas, assassinatos... Criou-se um senso comum tão forte que quando a polícia entra nas favelas e mata 10 pessoas, eles dizem: “São 10 traficantes”. E está tudo bem. Insisto em que o nosso problema é a comercialização, assim como nos países andinos é a produção. Este tema vai de par com a discussão pela despenalização, que é totalmente correta e legítima.
Para além do Supremo, que postura tem o governo federal?
O governo da Dilma tem uma Secretaria de Política de Drogas no Ministério da Justiça. A titular, Paulina do Carmo Arruda, deu uma entrevista e disse que o crack, que é uma questão terrível, estatisticamente em saúde pública é um problema irrisório. Quase a mataram.
Como avalia neste sentido a experiência de Portugal?
Bom, Portugal descriminalizou o consumo. Há dois anos veio de lá a antropóloga Manuela Ivonne da Cunha, que fez um estudo sobre as prisões em Portugal e demonstrou que a descriminalização produziu um aumento na prisão dos africanos que vendem pequenas quantidades.
Nunca um grande narcotraficante...
O mesmo acontece no Brasil, onde não existe um grande negócio de drogas, é apenas uma categoria fantasmática. É diferente na Colômbia. O proibicionismo provocou os cartéis, como a máfia durante a lei seca.
Então, você acredita que se deve legalizar as drogas.
É o que dizia Rosa del Olmo: controlar pela legalidade. Até o crack pode ser controlado legalmente, como acontece com a heroína na Suíça ou a maconha na Holanda. O nosso modelo deve ser soberano, nosso, de acordo com os nossos problemas. Outra coisa que diz Del Olmo é que a agenda da guerra contra as drogas entrou na América Latina antes que tivéssemos um problema efetivo, estatístico, de saúde, com o uso de drogas. Será que a guerra produziu o consumo? Até a ditadura militar, no Brasil existia uma legislação sanitária sobre drogas ilícitas. Na ditadura entrou o modelo bélico, policial, norte-americano. E também se massificou o consumo de cocaína.
Atualmente, o Brasil é um porto de saída de cocaína para a Europa. Poderíamos considerar que esse é o verdadeiro negócio narco.
Um negócio institucionalizado, caso contrário, não aconteceria. É gracioso, no Brasil sempre dizem “foi preso um grande traficante” e, no final das contas, é um menino favelado. A realidade é que no comércio ilícito as pessoas se brutalizam, não apenas elas, a polícia também se brutaliza, vão se convertendo em matadores de pobres: eles falam de “autorresistência”, que é uma metáfora para encobrir uma execução policial. Além disso, se abriu um precedente perigoso: o uso das forças armadas em funções policiais no caso da pacificação. E o governo de Lula aprovou isto por lei... resultado: aumentou em 40% o número de presos por tráfico entre 2003 e agora. No Rio há grupos que vendem drogas e não negociaram com a polícia, como o Comando Vermelho, e todas as UPPs vão para áreas do Comando Vermelho. A polícia fica com o negócio.
Há alguns anos, Fernando Meirelles e José Padilha, diretores de Cidade de Deus ou Tropa de Elite, garantiram que o usuário é cúmplice do narcotráfico, deslocando o foco da discussão que deveria ser a reforma da lei.
O filme Tropa de Elite é uma apologia de uma tortura e a parte dois é mais perversa ainda. Creio que eles acentuam a culpabilização do consumidor; discordo deles nesse ponto. Dilma chamou Pedro Abramovay para trabalhar na Secretaria de Políticas de Drogas e numa entrevista disse que além de despenalizar a posse, talvez faltava pensar os traficantes presos sem armas como vítimas do tráfico. Caiu. Dilma o tirou. Influíram a opinião pública e o medo.
Conhece a Paulo Teixeira? É um deputado federal que propõe a reforma da lei de drogas em seu país.
Sim, claro. Sofreu um massacre midiático por suas propostas. Tratam-no de protetor, de narco. Meu marido diz que o discurso sobre os traficantes é parecido com o religioso, ao de um herege: “Toma a alma de nossos jovens”. O traficante aparece como alguém que vai à escola e não como alguém que traz uma mercadoria que outro quer, como no capitalismo. Eu gosto do capitalismo, mas bom...
Reconhecer o uso é reconhecer o mercado...
Mas aí entra o discurso que você mencionava antes: “Então, a culpa é do consumidor que produz o mercado”. E começa a demonização do usuário. É um círculo vicioso, sem objetividade. A guerra contra as drogas só serviu para aumentar o poder discrecional da polícia, a venda de armas e a legitimação da truculência contra os pobres, que é algo histórico da polícia brasileira. Mas quando se pensa em mudar, as pessoas entram em pânico: “Vão liberar”. “Como vai ser?” E como é agora? Sabe quantos desaparecidos temos agora no Rio? 5.000 no ano passado. Parte reaparece vivo... mas parte desses desaparecidos foram mortos pela guerra contra as drogas.
Quem os faz desaparecer?
A polícia brutalizada que produziu a guerra.
Quantos aparecem?
Não sei, são dados classificados. Temos um observador que diz que os números da segurança no Rio são torturados. Além disso, quem dirige a parte de estatística é um coronel do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais). Na semana passada tivemos um caso chocante no Rio. A polícia entrou numa favela e disparou contra dois meninos: um foi ferido, o outro morreu e sumiram com o corpo. Esse menino estava indo à escola. Nas áreas pobres é uma tragédia este modelo de segurança máxima da UPP.
Tenho entendido que também há paramilitares.
Sim, as chamamos de “milícias”. São policiais que vivem dentro das favelas, são esquadrões da morte. No começo, os prefeitos do Rio disseram que eram uma “autodefesa contra o narcotráfico”, e as permitiram. Depois se expandiram e agora é polícia... contra polícia, porque as milícias querem ficar com parte do negócio das drogas. Antes controlavam a venda de gás, os telefonemas ilegais, internet, a economia informal. São máfia. As autoridades demoraram para se dar conta disso, até agora que matam policiais. “Fazem hora extra, é autodefesa contra o narco”, diziam.
Quem financia as milícias?
Elas se autofinanciam. Obrigam a pagar uma taxa de segurança e proteção. E não se pode denunciá-las porque são policiais. É o segundo emprego da polícia! Essa é a mistura louca que estamos vivendo no Rio. Esta semana também mataram um rapaz no morro. Disseram: “Era traficante”. A família corre para provar que era trabalhador. Se fosse traficante estaria tudo bem... esse é o problema.
Para a família também?
Às vezes, sim. Essa é a questão perversa. Claro que há lugares onde o traficante é alguém da favela que mantém uma boa relação, outros são de outras favelas e dominam o bairro pela força. O traficante não existe como categoria fixa. Existe um comércio louco, pulverizado, violento. Mas a polícia militar brutaliza muito os traficantes.
Têm muitos policiais militares presos?
Sim, muitos. Em geral, por assassinatos, e cada dia mais. Por isso, nem os Estados Unidos deixam que suas forças armadas se metam em problemas internos.
Fonte:IHU
Nenhum comentário:
Postar um comentário