quarta-feira, 2 de outubro de 2013

O LADO HUMANO DA GUERRA: Lições do Afeganistão.

“A luta pelo poder no Afeganistão é sórdida. Mesmo as pessoas mais inocentes estão constantemente caminhando em uma linha tênue entre apoiar o governo afegão ou se juntar aos combatentes insurgentes. Pessoas eram espancados apenas por falar com a gente.”
Os Estados Unidos normalmente estão em guerra ou estão se preparando para entrar numa. Por esse e por outros tantos motivos, é bem fácil discordar da política externa americana. Basta olhar para alguns fatos do passado recente, como por exemplo o fiasco da guerra no Afeganistão. Dilma Rousseff sabe disso. Em seu recente discurso na ONU, a presidenta articulou de forma precisa – e ferina – as ilegalidades cometidas pelos Estados Unidos em nível de Inteligência. Em última instância, sugeriu a presidenta, a espionagem fere os direitos humanos porque vai contra a privacidade, um direito básico de qualquer cidadão.
Além disso, sobram exemplos de arbitrariedade americana que ignoram princípios básicos do Direito Internacional: no Oriente Médio, drones espalham medo e, sem julgamente prévio, executam acusados; armas exportadas para Israel se tornam ferramentas na truculência e desumanidade na Palestina; mais recentemente a Síria se curva à pressão do “xerife do mundo” – expressão já corriqueira para se tratar dos Eua.
A política externa americana – esta entidade amorfa – se faz impor não somente através das canetadas dos burocratas de Washington, que sancionam boicotes, espionagem e o lançamento de bombas. É imprescindível para seu sucesso o esforço de milhares de cidadãos americanos. Obviamente, o braço humano do poder bélico americano são seus soldados e oficiais. Para além das articulações de Washington, são essas as vozes e o lado humano da guerra.
Converso com o Capitão do Exército Americano, Ryan Meehan. Em Português fluente, ele me conta sobre seu passado esportivo de campeão de wrestling, de lutador de jiu-jitsu, de tocador de violão. Fala das ondas que pegou no Rio e do treinamento e dos passeios na Itália; e também dos grandes companheiros que perdeu em combate. Fala do emprego que acaba de conseguir no banco J.P.Morgan, e dos estudos no Mestrado em Estudos Internacionais no Instituto Lauder e do MBA em Wharton. Contrariando vários dos estereótipos negativos que tenho com relação ao ensino, às práticas e  à vida militar em geral, Ryan demonstra com humildade possuir um vasto repertório cultural e um forte senso moral para definir o que considera certo e errado. Entre uma cerveja e outra, fico sabendo um pouco mais sobre o dia-a-dia no Afeganistão. “A rotina na guerra é extremamente caótica. O inimigo ataca quando você menos espera.” É claro que Ryan me conta algo que já vi nos filmes, algo que já escutei, algo que já li. Ryan está na minha frente, contudo. E isso faz toda a diferença. Por um breve instante, esqueço meu repúdio às canetadas de Washington, minha aversão à política externa americana. Ao conversar com Ryan Meehan sinto na pele, ao menos em imaginação, e por um breve instante, o lado humano da guerra.

(Arquivo pessoal)
Fórum – Qual era o seu papel como Capitão Americano na Guerra do Afeganistão?
Após formar-me no programa de missões especiais Ranger do Exército dos EUA, como segundo-tenente, meu primeiro emprego foi como Líder da Infantaria de um Pelotão. Eu comandava um posto de combate que consistia em cerca de 41 americanos e cerca de 100 soldados afegãos. Tivemos três focos: o primeiro era separar combatentes insurgentes da população local, tarefa bastante difícil, uma vez que ambos estavam localizados tão perto da fronteira com o Paquistão e em terreno de difícil acesso; Nosso segundo foco foi promover mais oportunidades econômicas e possibilitar crescimento com projetos de construção e melhorias de infra-estrutura liderados por empreiteiros afegãos; O terceiro foco era treinar os nossos parceiros afegãos para que fossem capazes de realizar operações de segurança por conta própria. Antes de retornar ao Afeganistão, fiquei na Itália por dez meses, meus soldados e eu executando missões de treinamento em preparação para a próxima viagem. Antes de retornar fui promovido a capitão. Tornei-me líder de uma organização com 141 soldados americanos em uma base multinacional de mais de 300 pessoas.
Fórum – Como Capitão, você mencionou que seu primeiro encontro com a unidade que você iria chefiar aconteceu já no Afeganistão. Foi difícil ganhar o respeito do grupo, e como você fez para trabalhar com seus subordinados que na verdade tinham mais experiência na guerra do que você?
Cheguei como o novo Capitão para chefiar 41 homens que já estavam no Afeganistão a cerca de 9 meses. O ambiente de uma infantaria pode ser bastante intimidante. Me lembro do primeiro dia em que conheci o meu pelotão. Eu estava fazendo ginástica em uma academia improvisada que o grupo tinha construído, e um monte de caras no pelotão estavam organizando lutas em uns colchões que tínhamos recebido. Não demorou muito até que eles me desafiassem para lutar. De início eu recusei, mas, como eles insistiram, eu sabia que poderia perder o respeito deles se eu não aceitasse o desafio. Finalmente concordei. Mais tarde fiquei sabendo que o cara que o pelotão escolheu para lutar comigo era o melhor deles. É claro que os soldados queriam ver alguém bater no novo Capitão que tinha acabado de chegar no país. Todo o grupo parou para ver a luta. Fiquei intimidado, mas eles não sabiam que eu tinha sido campeão americano de wrestling. Ganhei a disputa, e também a segunda luta. Ganhei também algum respeito com isso. Mas na verdade, acabei ganhando o respeito deles porque eu os respeitava verdadeiramente. Sempre pedia aos soldados mais experimentados que comentassem e criticassem os planos que eu propunha. Sinto que, seja na guerra ou em qualquer posição de liderança, quando aqueles que você comanda percebem que você tem as melhores intenções em seu coração, aí então estão prontos para trabalhar junto com você. Aprendi uma infinidade de coisas com aqueles homens. A experiência e os conhecimentos deles são verdadeiramente o meu maior patrimônio.
Fórum – Há uma rotina na guerra? Há espaço para diversão?
A rotina na guerra é extremamente caótica. O inimigo ataca quando você menos espera. Muitas das nossas principais lutas aconteciam no início da manhã, então eu sempre acordava antes do sol nascer para estar preparado. Além disso, a situação muda com tanta freqüência, emergências são constantes, novas informações de inteligência, e eventos inesperados ocorrem constantemente. Há sempre um plano para cada dia, cada semana, cada mês. É necessário ser muito adaptável e ajustar os planos de acordo com as realidades de cada situação. Uma coisa é certa: há muito estresse. Todo mundo tem sua própria maneira de lidar com ele. Quase todos do grupo levantam pesos diariamente. Outros jogam videogame, assistem filmes ou leem durante o tempo livre. Mas a verdade é que não há muito tempo livre – há sempre armas para limpar, posições para tomar, ou missões para preparar. Grande parte da diversão vem de se estar em volta de caras que se tornam como irmãos para você. Há muito humor negro para lidar com as situações. Quando as coisas ficam ruins, às vezes a única coisa que resta a fazer é rir a respeito do fato de que todos ainda estão vivos.
Fórum – Como eram as negociações com lideranças locais?
Trabalhar com líderes locais sempre foi um desafio. Era muito difícil de entender o que efetivamente se passava com eles, e há sempre tantas forças concorrentes de poder e influência. Quando cheguei no Afeganistão, eu tentei incansavelmente construir relacionamentos com os líderes locais que eram mais antigos. Eu acreditava que se pudéssemos estabelecer relações pessoais reais com as pessoas assim teríamos mais sucesso em trabalhar com eles. Foi muito mais difícil do que eu pensava. Os moradores de lá já tinham visto muitos capitães antes de mim e iriam ver muitos outros depois que eu saísse. As barreiras linguísticas e culturais por vezes pareciam intransponíveis. Depois de algum tempo, percebi que as negociações com os líderes locais tiveram que ser muito mais transacionais, eles queriam saber o que eu poderia fazer por eles e, em troca, estariam dispostos a oferecer ou a ceder em algum ponto. Em contrapartida, meus relacionamentos com nossos parceiros do exército afegão foram muito gratificantes.
Fórum – Qual a dinâmica de poder hoje no Afeganistão?
A luta pelo poder no Afeganistão é sórdida. Mesmo as pessoas mais inocentes estão constantemente caminhando em uma linha tênue entre apoiar o governo afegão ou apoiar os combatentes insurgentes. Nossos aliados afegãos e nosso grupo trabalhamos muito para conectar as pessoas com o novo governo. Infelizmente, pessoas eram espancados apenas por falar com a gente. Normalmente havia vários líderes locais no comando de suas tribos, mas o fluxo de combatentes estrangeiros e radicais tornava a dinâmica difícil de controlar, até mesmo para os líderes locais mais influentes. Parece-me que aqueles que detêm o poder no Afeganistão são os mais violentos, e provavelmente as coisas vão continuar assim no futuro próximo.

(Arquivo pessoal)
Fórum – Ainda se pode sentir na região resquícios dos conflitos com a ex-União Soviética?
Certamente percebi parte do triste legado do conflito com a União Soviética. Muitos dos líderes locais mais respeitados e “senhores da guerra” lutaram contra os soviéticos e se sentiam muito orgulhosos de sua herança. Conheci um líder local que era um comandante mujahideen. Ele me disse que tinha sido baleado 26 vezes em sua vida e que tinha cortado cabeças soldados soviéticos. Eu também me deparei com alguns afegãos que falavam russo e outros que pareciam ser filhos bastardos de homens soviéticos, nascidos dos estupros em massa de mulheres afegãs. O homem era louro, alto e de olhos azuis. Havia também as minas espalhadas por todos os lados. Mesmo perto de algumas das nossas maiores bases ainda havia casos de pessoas que pisavam em minas terrestres ainda não descobertas e que perdiam braços e pernas.
Fórum – Filmes como “A força do Destino” (An officer and a Gentleman), com Richard Gere, ou o musical com Doris Day, “The West Point Story”, construíram uma imagem clássica e suponho que um pouco romântica da escola, da disciplina e do brilhantismo dos futuros oficiais. Como é a vida em West Point, a Academia que formou ex-presidentes como Ulysses Grant e Dwight Eisenhower, os generais MacArthur e Petraeus, e vários astronautas que foram a lua?
Foram os anos mais intensos da minha vida, mas muito gratificantes. Acordava cedo logo  às 5h30, e aí tinha de aulas e prática física à tarde. Fazia lições de casa até meia-noite ou 01:00. É uma experiência muito desgastante, mas que infunde muita disciplina e dá-lhe a confiança de que você pode realizar qualquer coisa. Além disso, existe uma forte concentração em aspectos de liderança e trabalho em equipe.
Fórum – Como foi sua estada na Academia das Agulhas Negras em Resende, no Rio de Janeiro?
Estudar e treinar na AMAN foi uma grande experiência. A primeira coisa que percebi na academia é que os militares são muito semelhantes em todo o mundo. Meus colegas me trataram como um deles desde o primeiro dia em que cheguei no campus – me ensinaram Português, o que garantiu que eu estivesse preparado para todos os exercícios de treinamento que participei. É sempre importante para ver e experimentar diferentes abordagens de treinamento e táticas, o que ajuda a ver como os problemas podem ser abordados a partir de diferentes ângulos. Me sinto muito sortudo de ter tido uma oportunidade tão maravilhosa.
Fórum – A presidente Dilma Rouseff sugeriu que não irá fazer uma visita de Estado aos Eua, agendada para Outubro, depois que informações de espionagem vieram à tona com o vazamento de informações da Agência de Segurança Nacional dos Eua (NSA). Qual a sua opinião sobre o assunto?
Para ser franco, eu não estou bastante familiarizado com o que aconteceu para falar de forma apropriada sobre o assunto. Posso dizer que Obama sempre me decepciona com suas reações frente a situações diplomáticas tensas. Parece que um acontecimento infeliz, mas eu tenho certeza que todos serão capazes de chegar a uma solução razoável. Certamente que a presidente Rousseff tem razão de estar frustrada, no entanto, talvez uma reunião com o presidente Obama fosse uma oportunidade para resolver esta situação. Sou otimista e creio no enfrentamento dos problemas que possam surgir, e espero também que a ausência dela da reunião em outubro não seja indicativo de seu relacionamento futuro. Eu ficaria feliz em mediar um encontro entre os dois (sorrisos).
Fórum – Qual o seu balanço da administração de Barack Obama, em particular sobre a forma com que vem conduzindo a política externa do país?
Esta é uma questão muito complicada. Vivemos em um mundo de conflito aparentemente interminável, cheio de revolta, guerra civil, terrorismo e turbulência econômica. Penso que as decisões sobre a política externa do presidente serão melhor visualizadas a partir de uma distância histórica. Como não sou analista político, até que sejamos mais capazes de ver as conseqüências estratégicas de longo prazo das políticas desta administração, prefiro adiar qualquer crítica mais pungente a Barack Obama.

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