Em
entrevista inédita no Brasil, ele debate causas do fracasso do
“socialismo real” e afirma: para superar sistema, é preciso começar pelo
choque de valores
Cada vez mais popular tanto nas redes sociais como na mídia tradicional,
o presidente do Uruguai, Pepe Mujica, arrisca-se a sofrer um processo
de diluição de imagem semelhante ao que atingiu Nelson Mandela. Aos
poucos, cultua-se o mito, esvaziado de sentidos — e se esquecem suas
ideias e batalhas. Por isso, vale ler o diálogo que Pepe manteve, no
final do ano passado, com o jornalista catalão Antoni Traveria.
Publicada no site argentino El Puercoespín, a entrevista revela um presidente que vai muito além do simpático bonachão que despreza cerimônias e luxos.
Mujica, que viveu a luta armada e compartilhou os projetos da esquerda
leninista, parece um crítico arguto das experiências socialistas do
século XX. Coloca em xeque, em especial, uma crença trágica que marcou a
União Soviética e os países que nela se inspiraram: a ideia de que o
essencial, para construir uma nova sociedade, era alterar as bases materiais da produção de riquezas. ”Não
se constrói socialismo com pedreiros, capatazes e mestres de obra
capitalistas”, ironiza o presidente. Não se trata de uma constatação
lastimosa sobre o passado ou de um desalento. Mujica mantém-se convicto
de que o sistema em que estamos mergulhados precisa e pode ser superado.
Mas será um processo lento, como toda a mudança de mentalidades, e
precisa priorizar o choque de valores: tornar
cada vez mais clara a mediocridade da vida burguesa e apontar modos
alternativos de convívio e produção. Leia a seguir, alguns dos trechos
centrais da entrevista:
“A batalha agora é muito mais longa. As mudanças materiais, as relações
de propriedade, nem sequer são o mais importante. O fundamental são as
mudanças culturais e estas transformações exigem muitíssimo tempo. Mesmo
nós, que não podemos aceitar filosoficamente o capitalismo, estamos
cercados de capitalismo em todos os usos e costumes de nossas vidas, de
nossas sociedades. Ninguém escapa à densa malha do mercado, a sua
tirania. Estamos em luta pela igualdade e para amortecer por todos os
meios as vergonhas sociais. Temos que aplicar políticas fiscais que
ajudem a repartir — ainda que seja uma parte do excedente — em favor dos
desfavorecidos. Os setores proprietários dizem que não se deve dar o
peixe, mas ensinar as pessoas a pescar; mas quando destroçamos seu
barco, roubamos sua vara e tiramos seus anzóis, é preciso começar
dando-lhes o peixe”.
“A vida é muito bela e é preciso procurar fazer as coisas enquanto a
sociedade real funciona, ainda que seja capitalista. Tenho que cobrar
impostos para mitigar as enormes dificuldades sociais; ao mesmo tempo,
não posso cair no conformismo crônico de pensar que reformando o
capitalismo vou a algum lado. Não podemos substituir as forças
produtivas da noite para o dia, nem em dez anos. São processos que
precisam de coparticipação e inteligência. Ao mesmo tempo em que lutamos
para transformar o futuro, é preciso fazer funcionar o velho, porque as
pessoas têm de viver. É uma equação difícil. O desafio é bravo. Há quem
siga com o mesmo que dizíamos nos anos 1950. Não se deram conta do que
ocorreu no mundo e por quê ocorreu. Sinto como minhas as derrotas do
movimento socialista. Me ensinam o que não devo fazer. Mas isso não
significa que vá engolir a pastilha do capitalismo, nesta altura de
minha vida”.
“Não sei se vão me dar bola, mas digo aos jovens de hoje que aprendemos
mais com o fracasso e a dor que com a bonança. Na vida pessoal e na
coletiva pode-se cair uma, duas, muitas vezes, mas a questão é voltar a
começar. E é preciso criar mundos de felicidade com poucas coisas, com
sobriedade. Refiro-me a viver com bagagem leve, a não viver escravizado
pela renovação consumista permanente que é uma febre e obriga a
trabalhar, trabalhar e trabalhar para pagar contas que nunca terminam.
Não se trata de uma apologia da pobreza, mas de um elogio à sobriedade —
não quero usar a palavra austeridade, porque na Europa está sendo muito
prostituída, quando se deixa as pessoas sem trabalho em nome do
‘austero’”.
“Em toda a história do Uruguai, o presidente repartia as licenças de
rádio e TV com o dedo. Tivemos a ideia de abrir consultas e processos
democráticos baseados em méritos. Pensamos e realizamos! O que certa
imprensa diga não me preocupa. Já os conheço. O problema que o diário
[uruguaio] El País pode me criticar e se, algum dia, estiver de acordo e me elogiar. Seria sinal de que ando mal”.
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