Celso Amorim e os BRICs:
chega de um poder único (EUA)
chega de um poder único (EUA)
Por isso os tucanos detestam os BRICs
Ex-ministro Celso Amorim diz que o grupo pode oferecer alternativas ao sistema financeiro mundial, diante da falta de vontade dos países do G7 para reformar os organismos internacionais
Por Francis França
Os líderes dos BRICS – grupo composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – se reúnem pela sétima vez este ano para discutir como tornar o fórum informal de países emergentes em um instrumento eficaz de desenvolvimento. Um passo decisivo já foi dado: todos os países ratificaram a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), mais conhecido como banco dos Brics, que deve começara a operar no início de 2016.
Para o ex-ministro Celso Amorim, que ocupou as pastas das Relações Exteriores (1993-1995 e 2003-2010) e da Defesa (2011-2015), os Brics podem oferecer alternativas ao sistema financeiro mundial diante da incapacidade do G7 – grupo formado por Estados Unidos, Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão e Reino Unido – de reformar os organismos internacioanais.
DW Brasil: Há quem diga que os países que compõem os Brics têm muito pouco em comum além do desempenho econômico – como, por exemplo, em questões de direitos humanos, proteção ambiental, defesa etc. O que mantém a unidade dos BRICS?
Celso Amorim: Eu diria que o que nos levou a uma aproximação inicialmente foi um movimento entre três países que tinham, sim, muitas afinidades, que é o chamado IBAS: Índia, Brasil e África do Sul. E a Rússia e a China – países que não se encaixam na lógica do G7 [grupo formado por Estados Unidos, Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão e Reino Unido], mas, ao mesmo tempo, não podem ser considerados meros países em desenvolvimento – fizeram várias ações indiretas para, de alguma maneira, se aproximar do IBAS. Em 2006 o ministro russo [do Exterior], [Serguei] Lavrov, propôs que nós tentássemos fazer algumas conversas envolvendo o grupo dos Bric, que na época não englobava a África do Sul. Finalmente, depois de uma longa história, temos os Brics como eles são hoje desde 2011, um grupo de países que têm a afinidade, talvez, de não compartilhar algumas das afinidades do G7.
DW: Que afinidades não compartilhadas com o G7 seriam essas?
CA: Há um interesse comum dos países dos Brics, por exemplo, em reformar a estrutura do FMI, o sistema de cotas, o que já deveria ter ocorrido. Além de buscar mecanismos de autofinanciamento dentro do próprio grupo, ou de servir de base para financiamento de outros países em desenvolvimento. Há várias coisas que aproximam os Brics, apesar das diferenças em alguns aspectos que você mencionou – que, aliás, não são tão grandes como parecem. Porque, em relação à questão dos direitos humanos, você tem problema de racismo, de tratamento discriminatório de imigrantes, que também são problemas de direitos humanos, em países desenvolvidos. Mas essa já é outra questão.
DW: No próximo ano deve começar a funcionar o banco dos Brics, que terá atuação similar à do Banco Mundial, e um fundo de contingenciamento para crises com papel similar ao do FMI. Os Brics chegaram ao ponto em que podem oferecer de fato uma alternativa às instituições financeiras internacionais já estabelecidas?
CA: É um teste, sem tentar não podemos saber. A realidade é que, em grande parte, a criação desses mecanismos decorre da incapacidade ou da falta de vontade política dos países mais ricos, especialmente os do G7, em reformar os órgãos internacionais. Se nós tivéssemos tido uma reforma adequada do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, talvez não fosse nem necessária a criação do banco dos Brics. Talvez seja útil, de qualquer forma, ter uma alternativa de financiamento, mas ela teria sido menos urgente se essas reformas tivessem ocorrido. E eu acho que os Brics colaboram com uma coisa muito importante, que é a formação de um mundo mais multipolar, menos dependente de um único grupo ou de uma única fonte de poder.
DW: E o que o banco dos Brics faria diferente do Banco Mundial?
CA: Talvez oferecer financiamentos com exigências menos drásticas e menos burocráticas do que o Banco Mundial, porque eles administram o detalhe do detalhe da aplicação dos recursos, com muito pouca margem para a autonomia do país. E os Brics, como ainda são países em desenvolvimento, que enfrentam ou enfrentaram recentemente problemas econômicos, têm uma compreensão melhor de outros aspectos dos países em desenvolvimento, inclusive o desejo de dignidade, de autonomia, que são aspectos que, às vezes, as instituições financeiras internacionais desprezam. Veja o que está ocorrendo agora na Grécia, por exemplo, e todo o impacto que isso pode ter para a Europa.
DW: Se o banco dos Brics existisse hoje, ele seria uma alternativa para a Grécia?
CA: Ah, é uma boa pergunta… não sei se a Grécia quereria, nem estou sugerindo que isso ocorresse, nem ninguém está querendo que a Grécia saia da União Europeia ou do euro, onde ela tem ligações regionais. E essas coisas são muito importantes também, nós não podemos desconsiderá-las.
DW: Mas ele abriria outras possibilidades nas negociações da dívida grega…
CA: A questão é que as tradicionais fontes de poder financeiro não estão conseguindo resolver seus próprios problemas, como no caso da Grécia. Então é preciso, sim, procurar alternativas. A gente não pode, de antemão, ter certeza de que elas vão dar certo, mas elas podem servir como um elemento de emulação que ajude os próprios países mais ricos, do G7, a compreenderem que é necessário haver uma reforma do sistema de cotas do FMI e do Banco Mundial. Da mesma forma que a Alemanha busca uma reforma do Conselho de Segurança, da qual ela deseja ser membro permanente – junto com o Brasil, por sinal –, também é necessário mudar o sistema financeiro internacional, porque ele não corresponde mais às realidades dos dias de hoje.
DW: Na semana passada, a presidente Dilma esteve em Washington, onde se encontrou com o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e nesta semana, na Cúpula dos Brics, senta-se à mesa com Vadimir Putin, que aparentemente voltou a ser um inimigo do Ocidente. Como o senhor avalia essa estratégia? O Brasil pode se beneficiar fazendo alianças de todos os lados ou pode acabar em meio a um duelo de gigantes?
CA: Bom, o Brasil também é um gigante. Nós somos metade da América do Sul, em termos de território e população, um pouco mais da metade em matéria de PIB. Não somos um gigante econômico, ainda, mas mesmo assim somos, apesar de toda a crise, a sétima economia do mundo, então não é algo tão desprezível quanto possa parecer. Aliás, é uma economia maior que a da Rússia. Eu acho que é natural que o Brasil procure diversificar suas relações.
DW: Em Washington, falou-se inclusive em uma disposição para um acordo de livre comércio com os Estados Unidos…
CA: Para dizer francamente, eu não creio em um acordo de livre comércio com os Estados Unidos. Eu participei ativamente da tentativa de negociação da Alca [Área de Livre Comércio das Américas] quando era ministro das Relações Exteriores no governo do presidente Lula. Participei de boa fé. O Brasil fez as propostas que achava que deveriam ser feitas, mas vi que havia muitas dificuldades. As exigências que eles nos faziam em matéria de solução de controvérsias para patentes de remédios, por exemplo, iam contra as normas da Organização Mundial do Comércio. Eu acho que um acordo de livre comércio primeiro teria que ser com o Mercosul, que já é uma união aduaneira. Pode haver acordos de facilitação de comércio, acordos até de facilitação de investimentos, tudo isso eu acho muito saudável e positivo, com os Estados Unidos, com a Europa e também com a China. Por que não? Se a China tem hoje excesso de capital e necessidade de investir, e se o investimento nos interessar, por que não? Nunca é bom colocar todos os ovos numa mesma cesta.
DW: A China, aliás, está fazendo investimentos maciços na América Latina. Há quem alerte para o risco de se criar uma dependência chinesa. Mesmo no banco dos Brics, o maior aporte vem da China. O senhor acredita que exista esse risco?
CA: Cada país defende seus interesses, isso é normal. Por isso mesmo é interessante para o Brasil, e para outros países de porte equivalente ao do Brasil, ter uma relação diversificada. Ninguém quer trocar uma dependência por outra. A China tem no momento um grande poder, uma grande capacidade de investimento, e isso tem lados positivos, porque pode ajudar no desenvolvimento da nossa infraestrutura, mas não vou dizer que não haja um certo risco. Mas as relações têm que ser equilibradas. Por isso acho muito correto que a presidente Dilma tenha recebido o primeiro-ministro chinês no Brasil, tenha ido aos Estados Unidos e agora vá se reunir com os Brics.
DW: Quando eu falei em duelo de gigantes, o senhor disse que o Brasil também é um gigante. Qual é o potencial do país na arena internacional, na sua opinião?
CA: O que eu posso dizer é que a minha experiência, tanto como Embaixador na ONU como ministro das Relações Exteriores por quase dez anos, e mesmo como ministro da Defesa, indica que o Brasil tem um potencial muito grande de servir como facilitador de diálogos. No caso do Oriente Médio, o Brasil tem uma boa relação com os países e, ao mesmo tempo, não tem interesses próprios a defender, não dependemos tão diretamente do fornecimento do petróleo deles. Isso nos dá uma margem melhor [de negociação]. Concretamente, nos foi pedido [em 2010] que ajudássemos no diálogo com o Irã sobre seu programa nuclear. Isso correspondeu a um pedido do presidente Obama, que disse: ‘nós precisamos de amigos que possam falar com quem nós não podemos falar’. E, juntamente com a Turquia, obtivemos uma declaração do governo iraniano que, se tivesse sido aceita, teria dado uma base muito melhor para o acordo que está sendo discutido agora.
O Brasil tem capacidade de atuar positivamente em várias situações. Na nossa região é óbvio: o próprio presidente Obama citou o que o Brasil já havia feito em Cuba. Mesmo que a gente não tenha atuado na mediação final para o restabelecimento das relações [EUA-Cuba], todos esses anos o Brasil procurou aumentar o diálogo, sempre levando uma mensagem positiva, por exemplo, quando se discutiu a revogação da suspensão de Cuba da OEA [Organização dos Estados Americanos] em 2009. Aliás, nos casos de Cuba e do Irã, ao adotar como regra o engajamento e não a confrontação, a política externa norte americana está ficando cada vez mais parecida com a política externa brasileira.
Eu acho que essa capacidade do Brasil tem a ver com seu tamanho, mas também com uma certa abertura, uma capacidade de compreensão dos interesses de vários países e de várias culturas. O Brasil é um país novo, dinâmico, não fica preso demais no passado.
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