Damos bem mais pela prosperidade da Alemanha do que para ajudar a Grécia
"Banco de Merkel", diz pichação sobre o letreiro original "Banco da Grécia", em agência de Atenas. A referência é à chanceler alemã Angela Merkel, vista no país como uma das responsáveis pela crise que levou o país a optar por não honrar suas dívidas com os credores europeus em referendo realizado neste domingo.
A reportagem é de Stéphane Foucart, publicada no jornal Le Monde e reproduzida pelo portal UOL, 08-07-2015.
Só desta vez, diante dos últimos acontecimentos, aqui falaremos de Grécia, Alemanha e dívidas. Não se preocupem, as linhas que se seguem não acrescentarão em nada à inflação dos comentários recentes sobre a desgraça helênica. Todos sabem que Atenas deve a seus credores uma soma de quase 320 bilhões de euros (R$ 1,1 trilhão); todos sabem que ela deu calote no FMI; por fim, todos sabem que os gregos rejeitaram em massa, no domingo (5), as exigências de seus credores.
Disso, todos sabem. Um fato mais discreto é que a virtuosa e intransigente Alemanha também arrasta dívidas pendentes, que possivelmente ultrapassam de longe a conta grega. E não estamos falando aqui da Alemanha exaurida do pós-guerra. Estamos falando é da Alemanha de hoje, com sua poderosa indústria, seu orçamento impecável etc.
Para entender a natureza dessa "dívida" alemã, é preciso se debruçar sobre um número recente do "Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism" (JCEM). Em abril, a revista publicou uma série de estudos conduzidos por cerca de vinte pesquisadores internacionais e coordenados por Leonardo Trasande, especialista em saúde das populações e professor na Universidade de Nova York. O objetivo deles era avaliar o custo econômico dos danos para a saúde causados pela contaminação química na União Europeia. Usando o ano de 2010 como referência, a estimativa deles avalia o valor médio desses danos em 1,3% do PIB dos 28 Estados-membros da UE. Ou seja, 157 bilhões de euros (R$ 550 bilhões) por ano, em gastos com saúde e tratamento de certos distúrbios, em perda de produtividade dos funcionários etc. E isso é somente um valor médio: a parte superior da margem ultrapassa os 260 bilhões de euros (R$ 911 bilhões) anuais.
E qual seria a relação com nossos vizinhos alemães? Simples. Na Europa, a indústria química é representada pela Alemanha. O país domina de longe o setor, com gigantes como a Bayer e a BASF, e é muito claro que grande parte desses 157 bilhões de euros são responsabilidade dela. A Alemanha teria muito a perder, caso as medidas adequadas fossem aplicadas para evitar esses danos colaterais. Berlim sabe perfeitamente disso. Através de uma de suas agências de segurança sanitária, a Alemanha sempre procurou entravar a implantação de novas regulamentações europeias destinadas a regular os produtos mais problemáticos, os chamados disruptores endócrinos.
Se nos ativermos à última década, esses custos colaterais ocultos –-as chamadas "externalidades negativas", segundo os economistas-– associados à indústria química provavelmente custaram pelo menos 1,57 trilhão de euros (R$ 5,5 trilhões) à economia europeia. Nessa década, a dívida grega passou dos 195 bilhões (R$ 685 bilhões) para 320 bilhões de euros (R$ 1,1 trilhão), ou seja, um crescimento de 125 bilhões de euros (R$ 440 bilhões). Dez vezes menos que as externalidades negativas dos químicos no mesmo período, e certamente muito, muito menos que a dos gigantes alemães do setor.
E seriam confiáveis esses estudos? É inegável que se trata de uma tarefa delicada. "O impacto dos poluentes químicos no ambiente sobre a saúde pode parecer elusivo e é um conceito difícil de entender", escreve Tracey Woodruff, professora da Universidade da Califórnia em San Francisco, a quem o "JCEM" confiou seu editorial de abril. "Faltam-nos dados exaustivos sobre a maneira como as substâncias químicas presentes em nossa vida cotidiana –-na alimentação, na água, no ar e nos produtos de uso corrente-– afetam nossa saúde."
"Verdadeiro fardo"
Diante dessa falta de dados, Trasande e seus coautores focaram, de acordo com Woodruff, "nos efeitos de somente sete produtos e famílias químicas –-pesticidas organofosforados, plastificantes etc.--, em três categorias de distúrbios (problemas no sistema reprodutor masculino, distúrbios neuro-comportamentais, obesidade e diabetes)". Os autores, portanto, só levaram em conta o custo dos efeitos quantificáveis sobre a saúde, graças aos estudos epidemiológicos sérios disponíveis, assim como às medições de impregnação da população. Todo o resto, tudo aquilo que é suspeito mas não suficientemente estudado, foi ignorado.
Não somente não é possível estimar todos os efeitos sobre a saúde, como a indústria química também produz outras externalidades sustentadas pela coletividade: fontes de água potável contaminadas por resíduos de pesticidas, perda de biodiversidade e serviços associados (polinização, preservação da fertilidade dos solos etc.). "O que é preciso entender", diz Woodruff, "é que esse cálculo de 157 bilhões de euros só representa a parte visível do verdadeiro fardo que se pode atribuir aos poluentes químicos do meio ambiente."
Essa "dívida" não revolta a ninguém. No entanto, ela é bem mais tangível que a dívida grega: além de enormidade de seu peso econômico, ela interfere em nossa biologia e degrada a saúde das populações, altera os ecossistemas e modifica as paisagens.
Essas constatações pertencem a uma ciência consensual, convencional e citada como tal pelo Programa das Nações Unidas pelo Meio Ambiente. O fato é que a indústria química só se desenvolve às custas de externalidades gigantescas, assumidas pelos países, pelas coletividades, pelos sistemas de saúde e por outros setores econômicos. É claro, uma externalidade não é uma dívida stricto sensu. "A primeira pode ser vista como uma dívida moral, enquanto a segunda é contratual", diz o economista Alain Grandjean. Pode ser, mas tudo isso nós já pagamos, estamos pagando ou vamos pagar de uma maneira ou de outra.
Sem saber, estamos dando bem mais pela prosperidade da orgulhosa Alemanha do que para ajudar a pequena Grécia.
A reportagem é de Stéphane Foucart, publicada no jornal Le Monde e reproduzida pelo portal UOL, 08-07-2015.
Só desta vez, diante dos últimos acontecimentos, aqui falaremos de Grécia, Alemanha e dívidas. Não se preocupem, as linhas que se seguem não acrescentarão em nada à inflação dos comentários recentes sobre a desgraça helênica. Todos sabem que Atenas deve a seus credores uma soma de quase 320 bilhões de euros (R$ 1,1 trilhão); todos sabem que ela deu calote no FMI; por fim, todos sabem que os gregos rejeitaram em massa, no domingo (5), as exigências de seus credores.
Disso, todos sabem. Um fato mais discreto é que a virtuosa e intransigente Alemanha também arrasta dívidas pendentes, que possivelmente ultrapassam de longe a conta grega. E não estamos falando aqui da Alemanha exaurida do pós-guerra. Estamos falando é da Alemanha de hoje, com sua poderosa indústria, seu orçamento impecável etc.
Para entender a natureza dessa "dívida" alemã, é preciso se debruçar sobre um número recente do "Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism" (JCEM). Em abril, a revista publicou uma série de estudos conduzidos por cerca de vinte pesquisadores internacionais e coordenados por Leonardo Trasande, especialista em saúde das populações e professor na Universidade de Nova York. O objetivo deles era avaliar o custo econômico dos danos para a saúde causados pela contaminação química na União Europeia. Usando o ano de 2010 como referência, a estimativa deles avalia o valor médio desses danos em 1,3% do PIB dos 28 Estados-membros da UE. Ou seja, 157 bilhões de euros (R$ 550 bilhões) por ano, em gastos com saúde e tratamento de certos distúrbios, em perda de produtividade dos funcionários etc. E isso é somente um valor médio: a parte superior da margem ultrapassa os 260 bilhões de euros (R$ 911 bilhões) anuais.
E qual seria a relação com nossos vizinhos alemães? Simples. Na Europa, a indústria química é representada pela Alemanha. O país domina de longe o setor, com gigantes como a Bayer e a BASF, e é muito claro que grande parte desses 157 bilhões de euros são responsabilidade dela. A Alemanha teria muito a perder, caso as medidas adequadas fossem aplicadas para evitar esses danos colaterais. Berlim sabe perfeitamente disso. Através de uma de suas agências de segurança sanitária, a Alemanha sempre procurou entravar a implantação de novas regulamentações europeias destinadas a regular os produtos mais problemáticos, os chamados disruptores endócrinos.
Se nos ativermos à última década, esses custos colaterais ocultos –-as chamadas "externalidades negativas", segundo os economistas-– associados à indústria química provavelmente custaram pelo menos 1,57 trilhão de euros (R$ 5,5 trilhões) à economia europeia. Nessa década, a dívida grega passou dos 195 bilhões (R$ 685 bilhões) para 320 bilhões de euros (R$ 1,1 trilhão), ou seja, um crescimento de 125 bilhões de euros (R$ 440 bilhões). Dez vezes menos que as externalidades negativas dos químicos no mesmo período, e certamente muito, muito menos que a dos gigantes alemães do setor.
E seriam confiáveis esses estudos? É inegável que se trata de uma tarefa delicada. "O impacto dos poluentes químicos no ambiente sobre a saúde pode parecer elusivo e é um conceito difícil de entender", escreve Tracey Woodruff, professora da Universidade da Califórnia em San Francisco, a quem o "JCEM" confiou seu editorial de abril. "Faltam-nos dados exaustivos sobre a maneira como as substâncias químicas presentes em nossa vida cotidiana –-na alimentação, na água, no ar e nos produtos de uso corrente-– afetam nossa saúde."
"Verdadeiro fardo"
Diante dessa falta de dados, Trasande e seus coautores focaram, de acordo com Woodruff, "nos efeitos de somente sete produtos e famílias químicas –-pesticidas organofosforados, plastificantes etc.--, em três categorias de distúrbios (problemas no sistema reprodutor masculino, distúrbios neuro-comportamentais, obesidade e diabetes)". Os autores, portanto, só levaram em conta o custo dos efeitos quantificáveis sobre a saúde, graças aos estudos epidemiológicos sérios disponíveis, assim como às medições de impregnação da população. Todo o resto, tudo aquilo que é suspeito mas não suficientemente estudado, foi ignorado.
Não somente não é possível estimar todos os efeitos sobre a saúde, como a indústria química também produz outras externalidades sustentadas pela coletividade: fontes de água potável contaminadas por resíduos de pesticidas, perda de biodiversidade e serviços associados (polinização, preservação da fertilidade dos solos etc.). "O que é preciso entender", diz Woodruff, "é que esse cálculo de 157 bilhões de euros só representa a parte visível do verdadeiro fardo que se pode atribuir aos poluentes químicos do meio ambiente."
Essa "dívida" não revolta a ninguém. No entanto, ela é bem mais tangível que a dívida grega: além de enormidade de seu peso econômico, ela interfere em nossa biologia e degrada a saúde das populações, altera os ecossistemas e modifica as paisagens.
Essas constatações pertencem a uma ciência consensual, convencional e citada como tal pelo Programa das Nações Unidas pelo Meio Ambiente. O fato é que a indústria química só se desenvolve às custas de externalidades gigantescas, assumidas pelos países, pelas coletividades, pelos sistemas de saúde e por outros setores econômicos. É claro, uma externalidade não é uma dívida stricto sensu. "A primeira pode ser vista como uma dívida moral, enquanto a segunda é contratual", diz o economista Alain Grandjean. Pode ser, mas tudo isso nós já pagamos, estamos pagando ou vamos pagar de uma maneira ou de outra.
Sem saber, estamos dando bem mais pela prosperidade da orgulhosa Alemanha do que para ajudar a pequena Grécia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário