Europa?
O 'NÃO' do povo grego foi um 'não' aos eurocratas que a cada dia confirmam que são incapazes de arrancar a Europa da inércia.
Slavoj Zizek
O “NÃO” inesperadamente forte do referendo grego marcou uma resolução histórica, lançada em uma situação de desespero. Em minha obra, frequentemente me valho da conhecida piada soviética da década passada sobre Rabinovitch, um judeu que quer emigrar. O burocrata do departamento de emigração pergunta o motivo, e ele responde: “Bem, há dois motivos. O primeiro é que temo que os comunistas percam o poder aqui na União Soviética, e que consequentemente o novo governo venha a colocar sobre nós, judeus, toda a culpa pelos crimes dos comunistas – inaugurando uma nova leva de pogroms anti-semitas…” “Mas que bobagem”, interrompe o burocrata, “nada vai mudar na União Soviética. O poder dos comunistas durará para sempre!” “Pois então, esse é o meu segundo motivo”, responde Rabinovitch tranquilamente.
Me disseram que uma nova versão dessa piada está agora circulando em Atenas. Um jovem grego visita o consulado australiano na capital grega e solicita um visto de trabalho. “Mas por que você quer sair da Grécia?” pergunta o funcionário. “Por dois motivos,” responde o grego. “Estou preocupado que a Grécia caia for a da União Européia, que levará a mais miséria e caos no país…” “Mas não se preocupe,” interrompe o sujeito, “a Grécia vai permanecer na União Europeia e se submeter à disciplina financeira.” “Bem,” responde o grego calmamente, “esse é justamente meu segundo motivo.”
Seriam então ambas as escolhas, para parafrasear o camarada Stalin, “escolhas piores”?
Chegou a hora de irmos além dos debates irrelevantes sobre os possíveis enganos e erros de avaliação do governo grego. O que está em jogo agora é simplesmente grande demais para isso.
O fato das tentativas de fechar os termos de uma formula de compromisso sempre acabarem se esvaindo no último momento das negociações em curso entre a Grécia e os gestores da União Europeia já é algo profundamente sintomático. Pois não se trata efetivamente de detalhes financeiros – a diferença, a esse ponto é mínima. A União Europeia acusa os gregos de falarem só em termos mais gerais, fazendo promessas vagas sem detalhes específicos, ao passo que os gregos acusam a União Europeia de tentar controlar seu país até os menores detalhes e impondo condições à Grécia que são mais duras que as impostas no governo anterior. Mas o que espreita essas repreensões é um conflito muito mais profundo.
O primeiro ministro grego Alexis Tsipras recentemente comentou que se ele se reunisse a sós com Angela Merkel para um jantar, eles teriam encontrado uma formula poucas horas. O que ele queria dizer é que ele e Merkel, dois políticos, tratariam o desacordo como uma problema fundamentalmente político. À diferença portanto dos gestores tecnocráticos como Jeroen Dijsselbloem, o presidente do Eurogroup. Aliás, se há um “malvadão” emblemático nessa história toda é esse sujeito, cujo lema é: “Se eu entrar para o lado ideológico das coisas, não resolverei nada.”
Isso nos traz ao ponto chave da questão: Tsipras e Yanis Varoufakis, o ex-ministro das finanças que renunciou no dia 6 de julho, falam como se eles fossem parte de um processo político aberto em que as decisões são essencialmente “ideológicas” (baseadas em preferências normativas), enquanto os tecnocratas da União Europeia falam como se tudo fosse uma questão de medidas regulatórias detalhadas. Quando os gregos rejeitam essa abordagem e levantam questões mais fundamentalmente políticas, eles são acusados de mentirosos, de estarem evitando soluções concretas etc. E está claro que a verdade aqui está do lado grego: a negação do “lado ideológico” advogada por Dijsselbloem é o que há de mais puramente ideológico. Ela mascara (no sentido de apresentar falsamente) como medidas peritas puramente regulatórias, medidas que estão efetivamente enraizadas em decisões politico-ideológicas.
Por conta dessa assimetria básica, o “diálogo” entre Tsipras ou Varoufakis e seus interlocutores da União Européia muitas vezes fica parecendo um diálogo entre um jovem estudante que quer travar um debate sério sobre questões básicas, e um professor arrogante que, em suas respostas, humilhantemente ignora a questão principal e repreende o aluno com questões técnicas (“Você não formulou corretamente a questão! Você esqueceu de levar em conta tal e tal ponto!”). Ou ainda, fica parecendo um diálogo entre uma vítima de estupro que desesperadamente relata o que lhe aconteceu, e um policial que continuamente a interrompe exigindo detalhes técnicos. Essa passagem da política propriamente dita à administração especialista e pretensamente neutra caracteriza a totalidade do nosso processo politico: decisões estratégicas baseadas em poder são cada vez mais mascaradas como regulamentações administrativas baseadas em avaliações técnicas neutras, e são cada vez mais negociadas secretamente e implementadas sem consulta democrática alguma.
A luta que se trava hoje é luta pela cultura econômica e política dominante (Leitkultur) na Europa. As potências da União Europeia defendem o status quo tecnocrático que preserva e mantém há décadas a inércia da Europa.
Como costumo lembrar, em suas Notas para uma Definição de Cultura, o grande conservador T.S.Eliot ensina que há momentos em que a única escolha que resta é entre a heresia e a descrença — nessas horas, a única maneira de poder manter viva uma religião é fazendo um corte sectário no âmago de seu corpo principal. Essa é nossa posição hoje, em relação à Europa: só uma nova “heresia” (representada hoje pelo Syriza) pode salvar o que ainda vale a pena salvar do legado europeu: a democracia, a confiança no povo, a solidariedade igualitária. A Europa que vencerá, se o Syriza for atropelado, é uma “Europa com valores asiáticos” (o que, é claro, nada tem a ver com a Ásia, mas tem tudo a ver com a tendência visível e atual no capitalismo contemporâneo, de suspender a democracia).
Na Europa Ocidental gostamos de olhar para a Grécia como se fôssemos observadores distanciados que acompanham, com compaixão e simpatia, o suplício de uma nação empobrecida. Esse confortável ponto de vista repousa sobre uma ilusão fatídica. Verdade é que o que se passa na Grécia nessas últimas semanas nos diz respeito a todos: o que está em jogo é o futuro da Europa. Portanto, quando lemos sobre a Grécia desses dias, não nos esqueçamos que, como diziam os antigos, de te fabula narratur (trocando o nome, a fábula vale para você também).
Um ideal de Europa
Um ideal está gradualmente emergindo da reação do establishment europeu ao referendo grego. Talvez a melhor expressão dele esteja na manchete de uma recente coluna de Gideon Rachman no Financial Times: “O elo mais frágil da Eurozona são seus eleitores.”
Nesse mundo ideal, a Europa se livra desse “elo mais frágil” e os peritos são concedidos o poder para impor diretamente as medidas econômicas necessárias – se é que houverem eleições, sua função só será a de confirmar o próprio consenso dos especialistas. O problema é que essa política de especialistas está baseada numa ficção, a ficção de “prorrogar e fingir” (prorrogar o período da reembolso, fingindo que todas as dívidas serão eventualmente pagas).
Por que essa ficção é tão teimosa? Não é só que essa ficção faz com que a prorrogação da dívida seja mais aceitável aos eleitores alemães; e também não é só que a anulação da dívida grega possa desencadear reivindicações semelhantes em Portugal, na Irlanda e na Espanha. É que quem está no poder não querem de fato que a dívida seja plenamente quitada. Os credores e gestores da dívida acusam os países endividados de não sentirem culpa suficiente – são acusados de sentirem-se inocentes. Seu prazer se encaixa perfeitamente no que a psicanálise chama de “superego”: e o paradoxo do superego, como bem percebeu Freud, é justamente que o quanto mais obedecemos suas demandas, mais culpa sentimos.
Imaginem um professor pervertido, que dá aos alunos tarefas impossíveis, e depois, sadicamente, goza quando vê a ansiedade e o pânico deles. O verdadeiro objetivo de emprestar dinheiro ao devedor não é receber de volta a dívida paga e o lucro, mas a continuação indefinida da situação de dívida, que mantém o devedor em dependência e subordinação perpétuas. Vale para a maior parte dos devedores, porque há devedores e devedores. Não só a Grécia, mas também os EUA nunca, nem teoricamente, conseguirão pagar sua dívida – o que hoje já reconhecem publicamente. Quer dizer que há devedores que podem chantagear os credores, porque os credores não podem ser deixados entregue à própria sorte e falir (caso de grandes bancos), devedores que podem controlar as condições dos pagamentos (governo dos EUA), e, finalmente, devedores que podem ser arrastados em praça pública e humilhados (a Grécia).
Imagine um professor cruel que prescreve tarefas impossíveis para seus alunos, e sadicamente goza quando vê a ansiedade e pânico dos estudantes. O verdadeiro objetivo de emprestar dinheiro ao devedor não é o de receber depois a dívida reembolsada junto com determinado lucro, mas sim a continuação indefinida da dívida que mantém o devedor em permanente situação de dependência e subordinação. É claro que isso vale só para a maior parte dos devedores, porque há devedores e devedores. Vale lembrar que não apenas a Grécia mas também os próprios EUA não seriam, nem teoricamente capazes de quitar sua dívida, como agora já se admitiram publicamente. Então, quer dizer, há devedores que podem chantagear seus credores porque não podem se permitir entrar em falência (grandes bancos), há devedores que podem controlar as condições de sua quitação (governo estadunidense), e por fim, devedores que podem ser usurpados e humilhados (Grécia).
Os credores e gestores da dívida basicamente acusam o governo do Syriza de não sentir culpa o suficiente – são acusados de se portarem como inocentes. É por isso que o Syriza incomoda tanto o estabilshment da União Européia: ele reconhece a dívida, mas sem culpa. Eles se livraram da pressão do superego. Varoufakis personificou essa postura em suas negociações com Bruxelas: ele plenamente reconheceu o peso da dívida, e argumentou um tanto racionalmente que, na medida que a política da União Europeia obviamente não funcionou, outra opção deveria ser encontrada.
Paradoxalmente, o que Varoufakis e Tsipras estão defendendo repetidamente é que o governo do Syriza é a única chance para que os credores recebam ao menos parte do seu dinheiro de volta. O próprio Varoufakis se pergunta sobre o enigma do porquê dos bancos estarem despejando dinheiro na Grécia e colaborando com um estado clientelista sabendo muito bem como as coisas – a Grécia nunca teria se endividado tanto sem a conivência do establishment ocidental. O governo no Syriza tem plena consciência de que a principal ameaça não vem de Bruxelas – ela está no interior da própria Grécia, um estado clientelista e corrompido. O que se deve criticar na burocracia da União Europeia é que, ao mesmo tempo em que criticava a corrupção e a ineficiência da Grécia, apoiava a própria força política (o Nova Democracia) que encarnava essa corrupção e ineficácia.
O governo do Syriza busca justamente romper esse impasse – tome por exemplo a declaração programática de Varoufakis (publicada no Guardian) que concentra o objetivo estratégico fundamental do partido:
“Uma saída da Grécia, de Portugal ou da Itália da Eurozona logo levaria a uma fragmentação do capitalismo europeu, produzindo uma região de grave superávit recessivo ao leste do Reno e norte dos Alpes, enquanto o resto da Europa estaria sujeita a uma pesada estagflação. Quem você acha que se beneficiaria com esse movimento? Uma esquerda progressista, que irá ressurgir como uma fênix das cinzas das instituições públicas europeias? Ou os nazistas do Aurora Dourada e toda sorte de neofascistas, xenófobos e especuladores oportunistas? Eu não tenho dúvida alguma a respeito de qual dos dois se sairá melhor de uma desintegração da eurozona. Eu, pelo menos, não estou preparado para cair no embalo dessa versão pós-moderna do que foi a década de 1930. Se isso significa que sobrou para nós, os marxistas adequadamente erráticos, salvar o capitalismo europeu de si mesmo, que seja. Não por amor ao capitalismo europeu, nem pela Eurozona, tampouco por Bruxelas e muito menos pelo Banco Central Europeu, mas simplesmente porque queremos minimizar o desnecessário custo humano da crise.”
A política financeira do governo do Syriza seguiu à risca essas diretrizes: sem déficit, disciplina estreita, mais dinheiro arrecadado por impostos. Certa imprensa alemã recentemente caracterizou Varoufakis como um psicótico que vive em seu próprio universo paralelo – mas será que ele é tão radical?
O que irrita tanto em Varoufakis não é seu radicalismo mas sua pragmática modéstia racional – se olharmos atentamente às propostas oferecidas pelo Syriza, não se pode evitar de perceber que elas já fizeram parte do próprio padrão de programa social-democrata moderado (na Suécia na década de 1960, o programa do governo era muito mais radical). É um triste sintoma dos nossos tempos que hoje você tem que pertencer a uma esquerda “radical” para advogar essas mesmas medidas – um sinal de tempos sombrios mas também uma chance para a esquerda ocupar o espaço que, décadas atrás, era o da centro-esquerda moderada.
Mas talvez ficar insistindo no quão modestas são na verdade as políticas do Syriza, de que não passam da boa e velha social democracia, de certa forma erre o ponto principal. Será mesmo que se repetirmos isso o bastante, eventualmente convenceremos os eurocratas de não somos realmente perigosos e passarão a nos ajudar? Essa posição passa ao largo do fato de que o Syriza é efetivamente perigoso, e ele representa sim uma ameaça à presente orientação da União Europeia. Porque o capitalismo global de hoje não dá conta de voltar para o velho welfare state.
Então há algo de desentendido nas reafirmações da suposta modéstia do projeto do Syriza: ele efetivamente quer algo que não é possível no interior das coordenadas do sistema global existente. Uma séria escolha estratégica terá de ser feita: e se tiver chegado o momento de tirar a máscara da modéstia e abertamente defender uma mudança muito mais radical como necessária para garantir um ganho ainda que modesto?
Muitos críticos do referendo grego alegaram que tratou-se de um caso de pura encenação demagógica, ironicamente assinalando que não estava nem claro o que efetivamente o referendo estava determinando. Mas a verdade é que o referendo não tinha a ver com Euro vs Drachma, com “Grécia dentro da UE” vs “Grécia fora da União Europeia”: o governo grego repetidamente sublinhou sua disposição de continuar na UE e na Eurozona. Mais uma vez, os críticos pegaram uma questão política fundamental levantada pelo referendo e traduziram ela como uma decisão administrativa que versava sobre medidas econômicas específicas.
Um novo começo
Em uma entrevista ao Bloomberg em 2 de julho, Varoufakis deixou claro o que estava de fato em jogo no referendo. A escolha era entre a continuidade das políticas da União Europeia dos últimos anos que levaram a Grécia à beira da ruína – a ficção do “prorrogar e fingir” (prorrogando o período de quitação, mas fingindo que todas as dívidas seriam eventualmente pagas) – e um novo começo realista que não dependerá mais sobre tais ficções e forneceria um plano concreto sobre como dar início à efetiva recuperação da economia grega. Sem um plano como esse, a crise simplesmente voltaria a se recolocar. No mesmo dia, o próprio FMI admitiu que a Grécia precisa de uma alívio de dívida para criar uma “margem de respiro” e fazer com que a economia volte a andar (ele propõe um moratório de 20 anos em cima dos pagamentos da dívida).
O “NÃO” do referendo grego foi portanto muito mais que uma escolha entre duas abordagens diferentes diante da crise econômica. O povo grego heroicamente resistiu à vergonhosa campanha de medo que mobilizava os mais baixos instintos de autopreservação. Os gregos anteviram a brutal manipulação de seus oponentes que falsamente apresentaram o referendo como uma escolha entre o Euro e o Drachma, entre a Grécia na Europa e a “Gréxit”.
O “NÃO” do povo grego foi um “não” aos eurocratas que a cada dia confirmam que são incapazes de arrancar a Europa de sua inércia. Foi um “não” à continuidade do business as usual; um clamor desesperado dizendo a todos que as coisas não podem continuar da forma de sempre. Foi uma decisão por autêntica visão política contra a estranha combinação de fria tecnocracia e frases racistas fáceis e esquentadas a respeito da preguiça e da irresponsabilidade financeira dos gregos. Foi uma rara vitória de princípios contra o oportunismo egoísta e essencialmente autodestrutivo. O “não” que venceu foi um “sim” à consciência plena da crise na Europa; um “sim” à necessidade de encenar um novo começo.
Agora cabe à União Europeia agir. Será que ela será capaz de despertar de sua inércia auto-satisfeita e compreender o sinal de esperança lançado pelo povo grego? Ou despencará sua ira sobre a Grécia para poder continuar com seu sonho dogmático?
Me disseram que uma nova versão dessa piada está agora circulando em Atenas. Um jovem grego visita o consulado australiano na capital grega e solicita um visto de trabalho. “Mas por que você quer sair da Grécia?” pergunta o funcionário. “Por dois motivos,” responde o grego. “Estou preocupado que a Grécia caia for a da União Européia, que levará a mais miséria e caos no país…” “Mas não se preocupe,” interrompe o sujeito, “a Grécia vai permanecer na União Europeia e se submeter à disciplina financeira.” “Bem,” responde o grego calmamente, “esse é justamente meu segundo motivo.”
Seriam então ambas as escolhas, para parafrasear o camarada Stalin, “escolhas piores”?
Chegou a hora de irmos além dos debates irrelevantes sobre os possíveis enganos e erros de avaliação do governo grego. O que está em jogo agora é simplesmente grande demais para isso.
O fato das tentativas de fechar os termos de uma formula de compromisso sempre acabarem se esvaindo no último momento das negociações em curso entre a Grécia e os gestores da União Europeia já é algo profundamente sintomático. Pois não se trata efetivamente de detalhes financeiros – a diferença, a esse ponto é mínima. A União Europeia acusa os gregos de falarem só em termos mais gerais, fazendo promessas vagas sem detalhes específicos, ao passo que os gregos acusam a União Europeia de tentar controlar seu país até os menores detalhes e impondo condições à Grécia que são mais duras que as impostas no governo anterior. Mas o que espreita essas repreensões é um conflito muito mais profundo.
O primeiro ministro grego Alexis Tsipras recentemente comentou que se ele se reunisse a sós com Angela Merkel para um jantar, eles teriam encontrado uma formula poucas horas. O que ele queria dizer é que ele e Merkel, dois políticos, tratariam o desacordo como uma problema fundamentalmente político. À diferença portanto dos gestores tecnocráticos como Jeroen Dijsselbloem, o presidente do Eurogroup. Aliás, se há um “malvadão” emblemático nessa história toda é esse sujeito, cujo lema é: “Se eu entrar para o lado ideológico das coisas, não resolverei nada.”
Isso nos traz ao ponto chave da questão: Tsipras e Yanis Varoufakis, o ex-ministro das finanças que renunciou no dia 6 de julho, falam como se eles fossem parte de um processo político aberto em que as decisões são essencialmente “ideológicas” (baseadas em preferências normativas), enquanto os tecnocratas da União Europeia falam como se tudo fosse uma questão de medidas regulatórias detalhadas. Quando os gregos rejeitam essa abordagem e levantam questões mais fundamentalmente políticas, eles são acusados de mentirosos, de estarem evitando soluções concretas etc. E está claro que a verdade aqui está do lado grego: a negação do “lado ideológico” advogada por Dijsselbloem é o que há de mais puramente ideológico. Ela mascara (no sentido de apresentar falsamente) como medidas peritas puramente regulatórias, medidas que estão efetivamente enraizadas em decisões politico-ideológicas.
Por conta dessa assimetria básica, o “diálogo” entre Tsipras ou Varoufakis e seus interlocutores da União Européia muitas vezes fica parecendo um diálogo entre um jovem estudante que quer travar um debate sério sobre questões básicas, e um professor arrogante que, em suas respostas, humilhantemente ignora a questão principal e repreende o aluno com questões técnicas (“Você não formulou corretamente a questão! Você esqueceu de levar em conta tal e tal ponto!”). Ou ainda, fica parecendo um diálogo entre uma vítima de estupro que desesperadamente relata o que lhe aconteceu, e um policial que continuamente a interrompe exigindo detalhes técnicos. Essa passagem da política propriamente dita à administração especialista e pretensamente neutra caracteriza a totalidade do nosso processo politico: decisões estratégicas baseadas em poder são cada vez mais mascaradas como regulamentações administrativas baseadas em avaliações técnicas neutras, e são cada vez mais negociadas secretamente e implementadas sem consulta democrática alguma.
A luta que se trava hoje é luta pela cultura econômica e política dominante (Leitkultur) na Europa. As potências da União Europeia defendem o status quo tecnocrático que preserva e mantém há décadas a inércia da Europa.
Como costumo lembrar, em suas Notas para uma Definição de Cultura, o grande conservador T.S.Eliot ensina que há momentos em que a única escolha que resta é entre a heresia e a descrença — nessas horas, a única maneira de poder manter viva uma religião é fazendo um corte sectário no âmago de seu corpo principal. Essa é nossa posição hoje, em relação à Europa: só uma nova “heresia” (representada hoje pelo Syriza) pode salvar o que ainda vale a pena salvar do legado europeu: a democracia, a confiança no povo, a solidariedade igualitária. A Europa que vencerá, se o Syriza for atropelado, é uma “Europa com valores asiáticos” (o que, é claro, nada tem a ver com a Ásia, mas tem tudo a ver com a tendência visível e atual no capitalismo contemporâneo, de suspender a democracia).
Na Europa Ocidental gostamos de olhar para a Grécia como se fôssemos observadores distanciados que acompanham, com compaixão e simpatia, o suplício de uma nação empobrecida. Esse confortável ponto de vista repousa sobre uma ilusão fatídica. Verdade é que o que se passa na Grécia nessas últimas semanas nos diz respeito a todos: o que está em jogo é o futuro da Europa. Portanto, quando lemos sobre a Grécia desses dias, não nos esqueçamos que, como diziam os antigos, de te fabula narratur (trocando o nome, a fábula vale para você também).
Um ideal de Europa
Um ideal está gradualmente emergindo da reação do establishment europeu ao referendo grego. Talvez a melhor expressão dele esteja na manchete de uma recente coluna de Gideon Rachman no Financial Times: “O elo mais frágil da Eurozona são seus eleitores.”
Nesse mundo ideal, a Europa se livra desse “elo mais frágil” e os peritos são concedidos o poder para impor diretamente as medidas econômicas necessárias – se é que houverem eleições, sua função só será a de confirmar o próprio consenso dos especialistas. O problema é que essa política de especialistas está baseada numa ficção, a ficção de “prorrogar e fingir” (prorrogar o período da reembolso, fingindo que todas as dívidas serão eventualmente pagas).
Por que essa ficção é tão teimosa? Não é só que essa ficção faz com que a prorrogação da dívida seja mais aceitável aos eleitores alemães; e também não é só que a anulação da dívida grega possa desencadear reivindicações semelhantes em Portugal, na Irlanda e na Espanha. É que quem está no poder não querem de fato que a dívida seja plenamente quitada. Os credores e gestores da dívida acusam os países endividados de não sentirem culpa suficiente – são acusados de sentirem-se inocentes. Seu prazer se encaixa perfeitamente no que a psicanálise chama de “superego”: e o paradoxo do superego, como bem percebeu Freud, é justamente que o quanto mais obedecemos suas demandas, mais culpa sentimos.
Imaginem um professor pervertido, que dá aos alunos tarefas impossíveis, e depois, sadicamente, goza quando vê a ansiedade e o pânico deles. O verdadeiro objetivo de emprestar dinheiro ao devedor não é receber de volta a dívida paga e o lucro, mas a continuação indefinida da situação de dívida, que mantém o devedor em dependência e subordinação perpétuas. Vale para a maior parte dos devedores, porque há devedores e devedores. Não só a Grécia, mas também os EUA nunca, nem teoricamente, conseguirão pagar sua dívida – o que hoje já reconhecem publicamente. Quer dizer que há devedores que podem chantagear os credores, porque os credores não podem ser deixados entregue à própria sorte e falir (caso de grandes bancos), devedores que podem controlar as condições dos pagamentos (governo dos EUA), e, finalmente, devedores que podem ser arrastados em praça pública e humilhados (a Grécia).
Imagine um professor cruel que prescreve tarefas impossíveis para seus alunos, e sadicamente goza quando vê a ansiedade e pânico dos estudantes. O verdadeiro objetivo de emprestar dinheiro ao devedor não é o de receber depois a dívida reembolsada junto com determinado lucro, mas sim a continuação indefinida da dívida que mantém o devedor em permanente situação de dependência e subordinação. É claro que isso vale só para a maior parte dos devedores, porque há devedores e devedores. Vale lembrar que não apenas a Grécia mas também os próprios EUA não seriam, nem teoricamente capazes de quitar sua dívida, como agora já se admitiram publicamente. Então, quer dizer, há devedores que podem chantagear seus credores porque não podem se permitir entrar em falência (grandes bancos), há devedores que podem controlar as condições de sua quitação (governo estadunidense), e por fim, devedores que podem ser usurpados e humilhados (Grécia).
Os credores e gestores da dívida basicamente acusam o governo do Syriza de não sentir culpa o suficiente – são acusados de se portarem como inocentes. É por isso que o Syriza incomoda tanto o estabilshment da União Européia: ele reconhece a dívida, mas sem culpa. Eles se livraram da pressão do superego. Varoufakis personificou essa postura em suas negociações com Bruxelas: ele plenamente reconheceu o peso da dívida, e argumentou um tanto racionalmente que, na medida que a política da União Europeia obviamente não funcionou, outra opção deveria ser encontrada.
Paradoxalmente, o que Varoufakis e Tsipras estão defendendo repetidamente é que o governo do Syriza é a única chance para que os credores recebam ao menos parte do seu dinheiro de volta. O próprio Varoufakis se pergunta sobre o enigma do porquê dos bancos estarem despejando dinheiro na Grécia e colaborando com um estado clientelista sabendo muito bem como as coisas – a Grécia nunca teria se endividado tanto sem a conivência do establishment ocidental. O governo no Syriza tem plena consciência de que a principal ameaça não vem de Bruxelas – ela está no interior da própria Grécia, um estado clientelista e corrompido. O que se deve criticar na burocracia da União Europeia é que, ao mesmo tempo em que criticava a corrupção e a ineficiência da Grécia, apoiava a própria força política (o Nova Democracia) que encarnava essa corrupção e ineficácia.
O governo do Syriza busca justamente romper esse impasse – tome por exemplo a declaração programática de Varoufakis (publicada no Guardian) que concentra o objetivo estratégico fundamental do partido:
“Uma saída da Grécia, de Portugal ou da Itália da Eurozona logo levaria a uma fragmentação do capitalismo europeu, produzindo uma região de grave superávit recessivo ao leste do Reno e norte dos Alpes, enquanto o resto da Europa estaria sujeita a uma pesada estagflação. Quem você acha que se beneficiaria com esse movimento? Uma esquerda progressista, que irá ressurgir como uma fênix das cinzas das instituições públicas europeias? Ou os nazistas do Aurora Dourada e toda sorte de neofascistas, xenófobos e especuladores oportunistas? Eu não tenho dúvida alguma a respeito de qual dos dois se sairá melhor de uma desintegração da eurozona. Eu, pelo menos, não estou preparado para cair no embalo dessa versão pós-moderna do que foi a década de 1930. Se isso significa que sobrou para nós, os marxistas adequadamente erráticos, salvar o capitalismo europeu de si mesmo, que seja. Não por amor ao capitalismo europeu, nem pela Eurozona, tampouco por Bruxelas e muito menos pelo Banco Central Europeu, mas simplesmente porque queremos minimizar o desnecessário custo humano da crise.”
A política financeira do governo do Syriza seguiu à risca essas diretrizes: sem déficit, disciplina estreita, mais dinheiro arrecadado por impostos. Certa imprensa alemã recentemente caracterizou Varoufakis como um psicótico que vive em seu próprio universo paralelo – mas será que ele é tão radical?
O que irrita tanto em Varoufakis não é seu radicalismo mas sua pragmática modéstia racional – se olharmos atentamente às propostas oferecidas pelo Syriza, não se pode evitar de perceber que elas já fizeram parte do próprio padrão de programa social-democrata moderado (na Suécia na década de 1960, o programa do governo era muito mais radical). É um triste sintoma dos nossos tempos que hoje você tem que pertencer a uma esquerda “radical” para advogar essas mesmas medidas – um sinal de tempos sombrios mas também uma chance para a esquerda ocupar o espaço que, décadas atrás, era o da centro-esquerda moderada.
Mas talvez ficar insistindo no quão modestas são na verdade as políticas do Syriza, de que não passam da boa e velha social democracia, de certa forma erre o ponto principal. Será mesmo que se repetirmos isso o bastante, eventualmente convenceremos os eurocratas de não somos realmente perigosos e passarão a nos ajudar? Essa posição passa ao largo do fato de que o Syriza é efetivamente perigoso, e ele representa sim uma ameaça à presente orientação da União Europeia. Porque o capitalismo global de hoje não dá conta de voltar para o velho welfare state.
Então há algo de desentendido nas reafirmações da suposta modéstia do projeto do Syriza: ele efetivamente quer algo que não é possível no interior das coordenadas do sistema global existente. Uma séria escolha estratégica terá de ser feita: e se tiver chegado o momento de tirar a máscara da modéstia e abertamente defender uma mudança muito mais radical como necessária para garantir um ganho ainda que modesto?
Muitos críticos do referendo grego alegaram que tratou-se de um caso de pura encenação demagógica, ironicamente assinalando que não estava nem claro o que efetivamente o referendo estava determinando. Mas a verdade é que o referendo não tinha a ver com Euro vs Drachma, com “Grécia dentro da UE” vs “Grécia fora da União Europeia”: o governo grego repetidamente sublinhou sua disposição de continuar na UE e na Eurozona. Mais uma vez, os críticos pegaram uma questão política fundamental levantada pelo referendo e traduziram ela como uma decisão administrativa que versava sobre medidas econômicas específicas.
Um novo começo
Em uma entrevista ao Bloomberg em 2 de julho, Varoufakis deixou claro o que estava de fato em jogo no referendo. A escolha era entre a continuidade das políticas da União Europeia dos últimos anos que levaram a Grécia à beira da ruína – a ficção do “prorrogar e fingir” (prorrogando o período de quitação, mas fingindo que todas as dívidas seriam eventualmente pagas) – e um novo começo realista que não dependerá mais sobre tais ficções e forneceria um plano concreto sobre como dar início à efetiva recuperação da economia grega. Sem um plano como esse, a crise simplesmente voltaria a se recolocar. No mesmo dia, o próprio FMI admitiu que a Grécia precisa de uma alívio de dívida para criar uma “margem de respiro” e fazer com que a economia volte a andar (ele propõe um moratório de 20 anos em cima dos pagamentos da dívida).
O “NÃO” do referendo grego foi portanto muito mais que uma escolha entre duas abordagens diferentes diante da crise econômica. O povo grego heroicamente resistiu à vergonhosa campanha de medo que mobilizava os mais baixos instintos de autopreservação. Os gregos anteviram a brutal manipulação de seus oponentes que falsamente apresentaram o referendo como uma escolha entre o Euro e o Drachma, entre a Grécia na Europa e a “Gréxit”.
O “NÃO” do povo grego foi um “não” aos eurocratas que a cada dia confirmam que são incapazes de arrancar a Europa de sua inércia. Foi um “não” à continuidade do business as usual; um clamor desesperado dizendo a todos que as coisas não podem continuar da forma de sempre. Foi uma decisão por autêntica visão política contra a estranha combinação de fria tecnocracia e frases racistas fáceis e esquentadas a respeito da preguiça e da irresponsabilidade financeira dos gregos. Foi uma rara vitória de princípios contra o oportunismo egoísta e essencialmente autodestrutivo. O “não” que venceu foi um “sim” à consciência plena da crise na Europa; um “sim” à necessidade de encenar um novo começo.
Agora cabe à União Europeia agir. Será que ela será capaz de despertar de sua inércia auto-satisfeita e compreender o sinal de esperança lançado pelo povo grego? Ou despencará sua ira sobre a Grécia para poder continuar com seu sonho dogmático?
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