O domínio estratégico do petróleo é das estatais
Fonte: Carta Maior
Autor: Marcelo Zero
Qual é a maior empresa de petróleo do mundo? A Exxon? A Shell? A Chevron? A BP?
As maiores empresas de petróleo e gás do mundo são estatais - as chamadas national oil companies (NOCs).
Entre
elas, estão a Saudi Aramco (Arábia Saudita), a NIOC (Irã), a KPC
(Kuwait), a ADNOC (Abu Dhabi), a Gazprom (Rússia), a CNPC (China), a
PDVSA (Venezuela), a Statoil (Noruega), a Petronas (Malásia), a NNPC
(Nigéria), a Sonangol (Angola), a Pemex (México) e a Petrobras.
Numa
estimativa conservadora, feita em 2008, antes do pré-sal ser bem
conhecido, as NOCs já dominavam 73% das reservas provadas de petróleo do
mundo e respondiam por 61% da produção de óleo. Segundo a Agência
Internacional de Energia, a tendência é a de que as NOCs sejam
responsáveis por 80% da produção adicional de petróleo e gás até 2030,
pois elas dominam as reservas.
Nem sempre foi assim.
Até
1970, as chamadas international oil companies (IOCs), as grandes
multinacionais, as Sete Irmãs, dominavam inteiramente 85% das reservas
mundiais de petróleo. Outros 14% das jazidas eram dominados por empresas
privadas menores e as NOCs tinham acesso a apenas 1% das reservas. As
estatais que existiam na época, como a YPF (Argentina) a Pemex (México),
a Petrobras e a PDVSA, não tinham a menor influência real nesse
mercado.
As IOCs faziam o que bem entendiam.
Ditavam
a produção e o preço do petróleo e derivados no mundo, sempre com a
perspectiva de curto prazo de obter o maior lucro possível e remunerar
acionistas. Fortemente verticalizadas, as Sete Irmãs se encarregavam da
pesquisa, da prospecção, da produção, do refino e da distribuição.
Conteúdo nacional? Só o suor de trabalhadores locais de baixa
qualificação. Tudo isso começou a mudar ao final da década de 1960.
O
nacionalismo árabe, de inspiração nasserista, incitou uma onda de
nacionalização do petróleo, que se iniciou na Argélia, em 1967, e na
Líbia de Khadafi (o ódio do Ocidente a Khadafi não era gratuito), em
1969 e 1970. Tal onda nacionalizante se estendeu rapidamente por todo o
Oriente Médio, no início da década de 1970. Governos nacionalizaram
jazidas e expropriaram ativos das multinacionais para criar as suas
próprias companhias de petróleo.
Em
1972, Arábia Saudita, Qatar, Kuwait e Iraque, onde estavam as
principais reservas mundiais, já tinham iniciado esses processos. Isso
mudou inteiramente o mercado do petróleo.
Os
governos passaram a se apropriar de uma renda muito maior da cadeia do
óleo, até mesmo porque descobriram que as IOCs escondiam deles os reais
custos de produção, reduzindo artificialmente a remuneração devida aos
países. E os Estados, não as Sete Irmãs, começaram a ditar o ritmo da
produção e da comercialização do petróleo, não mais com a perspectiva de
obter o máximo de dividendos no curto prazo, mas com o objetivo
estratégico de maximizar o uso de um recurso natural finito e não
renovável.
No
âmbito internacional, esse novo domínio estatal permitiu que os países
produtores, reunidos na OPEP, passassem a influenciar efetivamente o
preço do petróleo, que se transformou numa commodity mundial.
Em
1973, após a Guerra do Yom Kippur entre árabes e israelenses, os países
árabes impuseram um embargo aos EUA, à Europa e ao Japão, que apoiaram
Israel, o qual fez disparar os preços do óleo no mundo. Foi o primeiro
choque do petróleo, o qual teria sido impossível de realizar num mercado
governado apenas pelos interesses das grandes multinacionais. Ao longo
da década de 70, o domínio estratégico dos Estados sobre o petróleo
cresceu com a ampliação e a sedimentação dos processos de nacionalização
das reservas, a criação de grandes companhias estatais e o
fortalecimento das já existentes.
Significativamente,
a onda privatizante que verificou no mundo todo nos anos 80 e 90, sob o
paradigma do neoliberalismo, não afetou, de modo substancial, o domínio
estatal sobre a cadeia do petróleo.
Houve
alguns episódios de privatizações totais ou parciais, especialmente na
América Latina e no Leste europeu. Na Argentina, por exemplo, ocorreu a
privatização da YPF, a segunda estatal do petróleo a ser criada, em
1928. No Brasil, a Petrobras teve o seu capital aberto na Bolsa de Nova
Iorque. Na Rússia, alguns setores da indústria de hidrocarbonetos foram
também privatizados.
Contudo,
o aumento dos preços do petróleo ocorrido a partir do início deste
século provocou nova onda de nacionalizações e de criação de estatais.
Na Rússia, Putin reverteu as privatizações, conformando uma
poderosíssima Gazprom. O mesmo ocorreu em países da Ásia Central, como o
Azerbaijão e o Uzbequistão. Na Bolívia, o governo Morales nacionalizou
as jazidas de hidrocarbonetos. Na Argentina, o governo Kirchner
desapropriou a Repsol, que havia se apossado dos despojos da YPF.
Essa
tendência praticamente mundial ao controle estatal do petróleo não
ocorre por acaso. No estudo de mais de mil páginas intitulado Oil and
Governance: State-owned Enterprises and the World Energy Supply,
publicado em 2012 pela Cambridge Press e que analisa a experiência de 15
grandes NOCs (inclusive a Petrobras), os organizadores mencionam
algumas fortes razões para o surgimento e a persistência dessa
tendência. Há, é óbvio, motivos políticos, como o apelo do nacionalismo e
a conveniência de obter ganhos geopolíticos com o controle efetivo e
direto de bens sensíveis e estratégicos como os hidrocarbonetos, como
faz a Rússia, por exemplo.
Mas
há também razões vinculadas estritamente à racionalidade econômica de
longo prazo. O controle direto das jazidas e da produção do petróleo
permitiria, com maior facilidade:
1)
Influenciar o preço dos hidrocarbonetos no mercado interno, conferindo,
se necessário, subsídios em energia ao setor produtivo.
2)
Instaurar políticas de conteúdo nacional, que se aproveitem das
oportunidades e sinergias criadas pela produção de hidrocarbonetos para
criar uma longa cadeia nacional do petróleo, estimulando indústrias e o
setor de serviços.
3)
Ditar o ritmo de exploração das reservas e de comercialização do óleo,
conforme o interesse nacional e dentro de uma visão estratégica de
aproveitar ao máximo a existência de um recurso natural finito e não
renovável.
4) Gerar e obter informações detalhadas sobre as jazidas de óleo e gás, seu potencial e seus custos de exploração.
5) Desenvolver tecnologia própria relativa à cadeia dos hidrocarbonetos.
Alguns
podem argumentar que pelo menos parte desses objetivos poderia ser
alcançada sem a participação necessária de uma NOC. Em tese, um bom
modelo regulador tornaria possível a consecução desses objetivos
estratégicos e de longo prazo sem a participação direta de uma estatal
como grande operadora das jazidas.
A experiência internacional demonstra, contudo, que isso é muito difícil.
No
estudo mencionado, entre as 15 grandes NOCs analisadas, somente 2 não
são grandes operadoras: a NNPC, da Nigéria, e a Sonangol, de Angola.
Essas grandes companhias africanas desempenham funções básicas de
regulação e não têm capacidade técnica de operar na prospecção e na
produção dos hidrocarbonetos.
No
caso da Nigéria, a análise mostra que o país não consegue controlar a
contento seu setor petrolífero, base da economia nigeriana. As grandes
companhias multinacionais que lá atuam dominam inteiramente a produção e
a prospecção e remuneram o Estado com base em suas próprias informações
sobre custos e volume produzido.
A
NNPC, por não ser operadora, não tem condições técnicas reais de
avaliá-los. Também não há política efetiva de criação de uma cadeia de
petróleo na Nigéria. Soma-se a isso, uma péssima gestão da estatal e sua
submissão a um sistema político fortemente fisiológico. A NNPC não
consegue ser nem operadora competente, nem reguladora efetiva do setor,
apresentando um desempenho muito pobre. Desse modo, a Nigéria não tem a
gestão estratégica de seu recurso natural mais valioso.
No
que tange à Sonangol, embora o capítulo a ela dedicado a destaque como
uma reguladora eficiente e estável, que não atrapalha as operações das
multinacionais lá instaladas, as informações que chegam diretamente de
Angola conformam um quadro muito ruim.
Conforme
Francisco de Lemos Maria, que assumiu a presidência da empresa em 2012,
o atual modelo operacional caracteriza-se pela crescente dependência da
Sonangol, quer da contribuição de terceiros para a geração de
resultados, quer de outsourcing de serviços, do básico ao
especializado.
Segundo
esse novo presidente, o sistema de hidrocarbonetos em Angola é
“insustentável”. Com efeito, a prometida “angolonização” dos insumos e
dos serviços da cadeia do petróleo não funcionou e, agora, a nova
presidência vem envidando esforços para transformar a Sonangol também
numa operadora eficiente e robusta.
Parece
haver, portanto, uma correlação positiva, entre ter capacidade de
gestão estratégica dos hidrocarbonetos e contar com uma NOC que tenha
efetiva capacidade de operar as jazidas. É evidente que as NOCs não são
uma panaceia em si e podem, inclusive, ser instrumento de distorções e
ineficiências, especialmente em países com ralos controles democráticos
da gestão estatal. Mas a sua existência facilita muito, sem dúvida, a
gestão estratégica dos recursos do petróleo por parte dos Estados
nacionais. Mesmo o tão elogiado modelo norueguês de gestão dos
hidrocarbonetos, que contém elementos liberalizantes, se assenta, no
fundamental, na Statoil, que opera, com muita eficiência, cerca de 80%
das reservas de petróleo da Noruega.
Deve-se
ter em mente que as grandes nacionalizações do petróleo na década de
1970 foram suscitadas essencialmente pela necessidade que os Estados
detectaram de ter acesso a informações fidedignas sobre as jazidas e os
custos de produção e operacionalização das atividades da cadeia do
petróleo. De um modo geral, as grandes multinacionais da época ocultavam
essas informações dos governos, os quais, por não contarem com
operadoras próprias, não tinham como aferir ou contestar os dados
apresentados pelas empresas.
Por
isso, a grande maioria dos governos não se limitou a mudar o modelo de
regulação, mas também se preocupou em criar NOCs, como grandes
operadoras, para dar sustentáculo prático e técnico aos novos parâmetros
de gestão estratégica dos hidrocarbonetos. Afinal, informação é poder.
No
caso da Petrobras, sua utilidade para o Brasil e sua competitividade
única no mundo reside justamente nas informações e na tecnologia que ela
detém. A Petrobras é a única, entre todas as grandes NOCs, que foi
criada antes de haver a constatação da existência de reservas provadas
de petróleo em seu território de atuação. Todas as outras foram geradas
num ambiente de certeza de reservas provadas e/ou de fácil
nacionalização de ativos pré-existentes.
Desse
modo, a Petrobras teve de investir pesadamente, desde o início, em
prospecção e desenvolvimento próprio de tecnologia, principalmente de
tecnologia de exploração em águas profundas e ultra-profundas, o que já
lhe valeu merecidos grandes prêmios internacionais.
Por
conseguinte, o grande diferencial da Petrobras, no concorrido mercado
dos hidrocarbonetos, reside na sua tecnologia de vanguarda e no domínio
das informações estratégicas sobre as jazidas, particularmente as do
pré-sal. Esse diferencial permitiu à Petrobras manter-se como a grande
operadora do petróleo no Brasil, mesmo após os famosos contratos de
risco da década de 1970 e da adoção do modelo de concessão, na década de
1990. Pois bem, retirar da Petrobras a condição de operadora única do
pré-sal pode subtrair da empresa esse diferencial único, e, do Brasil, a
capacidade de gerir estrategicamente os fantásticos, mas finitos
recursos do pré-sal.
De
fato, a depender do ritmo dos leilões do pré-sal, a Petrobras não
conseguiria participar da maioria, o que poderia resultar em seu
alijamento da maior parte do pré-sal. Deve-se ter em mente que, num
ambiente de crise e de estrangulamento das receitas, a tentação de
acelerar, numa perspectiva de curto prazo, os leilões do pré-sal pode
eclipsar as considerações estratégicas de longo prazo.
Para
a empresa, tal alijamento resultaria num célere enfraquecimento e,
provavelmente, numa dificuldade em honrar sua dívida contraída
justamente para ter condições de explorar o pré-sal. Todo o seu capital
tecnológico e informacional poderia ser vendido ou perdido e ela
acabaria se transformando, em um cenário mais pessimista e no longo
prazo, numa grande NNPC ou Sonangol, dedicada a atuar secundariamente
como reguladora. Para o país, o quadro de alijamento da Petrobras da
maior parte do pré-sal ou mesmo de parte significativa dele,
provavelmente resultaria numa grande dificuldade para gerir
estrategicamente os seus recursos oriundos dos hidrocarbonetos.
Encontraríamos,
nesse cenário, obstáculos consideráveis para controlar o ritmo da
produção, amealhar os royalties efetivamente devidos e implantar a
política de conteúdo nacional.
Nesse
sentido, retirar da Petrobras a condição de operadora única do pré-sal
pode ser o início de seu fim e o começo sub-reptício de uma Petrobax.
Pode ser também, num sentido maior, o início do fim de um Brasil
desenvolvido, soberano e justo.
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Marcelo
Zero é sociólogo, especialista em Relações Internacionais e membro do
Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI).
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