1964: Primeiro de Abril é a verdadeira data do golpe
Por João Vicente Goulart
As refomas de base derrubaram Jango
Há 45 anos, derrubavam as forças armadas – títeres do Estado norte-americano intervencionista – o governo popular, democrático e, essencialmente constitucional do Brasil, pois seu presidente havia sido eleito duas vezes pelo voto direto. Naquela época, eram duas eleições diferentes. Elegia-se, por voto direto, em um escrutínio, o presidente da República. Em outro, o vice-presidente. Como vice, Jango derrotou o vice de Janio, Milton Campos, e posteriormente, teve confirmado o seu mandato em um plebiscito nacional que lhe devolveu, com a aprovação de mais de 80% dos eleitores, os poderes constitucionais presidencialistas usurpados por uma anterior tentativa de golpe, em 1961. Na renúncia de Jânio, os golpistas eram Odílio Denny, Silvio Heck, e Grun Moss.
Os argumentos, hoje, passados tantos anos da ditadura cruel que implantaram à força das baionetas e tanques, sufocando a liberdade de ir, de vir, de pensar, de votar, de opinar, de criar os nossos filhos dentro de uma pátria livre e soberana, são aquela mesma cantilena. A direita, apoiada pela mídia vendida, inventou que a população foi às ruas pedir aos militares a intervenção para deter o comunismo. Ora, mera balela, que só serve de argumento para os desinformados.
O tal povo nas ruas, de que tanto falaram certos militares e setores das elites – ainda hoje inconformados com o novo rumo social do planeta, que não mais admite privilégios – era na verdade o Padre Payton, conhecido clérigo a serviço da CIA (a agência de espionagem norte-americana), que organizou as marchas da família pela pátria e pela liberdade. Eles, e somente eles, consentiram as empresas multinacionais e lhes entregaram o subsolo da Nação, as reservas minerais, a Amazônia, o controle do nosso espaço aéreo, os transportes, as comunicações.
As tais manifestações que deram origem ao golpe, sabe-se desde sempre, foram organizadas pelos IPES e IBADES que, sorrateiramente presididos pela mentalidade parda do general Golbery do Couto e Silva, financiaram campanhas de parlamentares brasileiros em 1962. O dinheiro do capital norte-americano foi distribuído pela CIA. Eles mesmo admitem isso, a exemplo do réu confesso: O embaixador Lincoln Gordon, em livro lançado no Brasil em 2002 sob o título A segunda chance do Brasil.
Estes argumentos que hoje tentam distorcer as verdadeiras razões do golpe tendem, com o tempo, a sucumbir diante da verdade histórica e o país deverá retomar o caminho das reformas que, até hoje, são mais do que necessárias, pois, sem elas a renda nacional permanecerá ainda nas mãos de alguns poucos banqueiros e privilegiados.
Mas existem coisas ainda mais obscuras neste levantamento da história nacional. Uma delas aconteceu em 1963. Naquele ano, instalou-se uma comissão parlamentar de inquérito sobre os IBADEs e IPÊS que identificava os parlamentares financiados pelo dinheiro clandestino da CIA. A CPI era presidida pelo então deputado Ulisses Guimarães e relatada pelo deputado Pedro Aleixo. Esses documentos literalmente sumiram dos anais do nosso glorioso Congresso Nacional.
Este é um importante documento histórico que confirmaria o conluio político-militar e justificaria a atitude do senador Áureo de Moura Andrade, de declarar vaga a Presidência da República, com o presidente João Goulart em território nacional. Jango esperou, em sua fazenda de São Borja, a posse de Ranieri Mazzilli para configurar golpe de Estado, partindo para o derradeiro exílio – onde foi assassinado – apenas no dia 4 de Abril.
Esta declaração do senador Áureo aconteceu no dia Primeiro de Abril. É claro que esta é uma data que não interessa aos militares da época, oligarcas de plantão e falcões estadosunidenses, após rasgar a Constituição Nacional. É o Dia da Mentira. Mentira esta que querem perpetuar como “revolução”.
O golpe contra Jango aconteceu pelos acertos de seu governo. Governo este, aliás, taxado como incapaz por aqueles que usurparam do povo brasileiro o direito à liberdade e à democracia. Os "incapazes" de Jango, que queriam um Brasil mais justo, eram ninguém menos do que Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Evandro Lins e Silva, Hermes Lima, Luis Salmeron, Josué de Castro, Anísio Teixeira, Paulo Freire, Waldir Pires, Santiago Dantas, Raúl Riff, Armando Monteiro e tantos outros.
A verdadeira motivação do golpe, na verdade, era impedir as reformas de base. Estas conduziriam o Brasil a um processo de desenvolvimento econômico no mercado interno, sem depender dos algozes internacionais que, até hoje, manipulam os grandes trusts, o capital transnacional, que gerou a crise econômica em que o mundo vê-se atolado, agora, até o pescoço. Trata-se do capital sem fronteiras, sem nome e sem destino, que subverte a dignidade humana e aleija um bilhão de seres humanos através da fome, da miséria, da violência e da opressão.
A verdade é que derrubaram um projeto de reformas essenciais. Jango tinha mobilizado os sindicatos, os camponeses, os estudantes, as entidades de classe, os operários, pois as elites estavam organizadas, com o apoio inestimável da tal grande imprensa – como acontece ainda hoje – em uma campanha feroz de desestabilização constitucional contra as reformas.
Jango propôs, no comício do dia 13, na Central do Brasil, Centro do Rio de Janeiro, enviando ao Congresso Nacional a mensagem de 1964, as reformas agrária, urbana, política, educacional, tributária, bancária e da remessa de lucros. Elas dariam a soberania necessária ao povo brasileiro para trilhar o caminho de sua emancipação.
O que o golpe impediu, até agora, é que, no Brasil de hoje, oito milhões de irmãos brasileiros sem teto estivessem morando dignamente em suas casas próprias, caso tivesse sido implantada a reforma urbana.
A reforma bancaria teria impedido, através da justa distribuição do crédito controlado, a escandalosa concentração de renda que hoje no Brasil nos aponta 10% da população como detentores de 90% da renda nacional, traduzindo-nos em um país de contrastes. Temos uma pequena Suécia cravada em nosso território e meio a uma imensa Serra Leoa, do Oiapoque ao Chuí.
A reforma tributaria não nos teria deixado chegar a este caudaloso mar de tributos e impostos, algo em torno de 38%, sem nenhum ou quase nenhum retorno em saúde pública, educação, saneamento, segurança alimentar, etc.
A reforma política, tão necessária até hoje, impediria que o Congresso fosse comandado por interesses variados e oblíquos. Salvo as heróicas iniciativas, nas eleições são empossados apenas aqueles que pertencem a grupos étnicos, religiosos, financeiros ou possuem milhões de dólares para concorrer nas urnas. Temos, na imensa maioria, apenas parlamentares que subservem à esta ou àquela corporação econômica.
A reforma administrativa seria o freio à orgia com o dinheiro público, a barreira à corrupção através de um Judiciário que faz diferença entre Direito e Justiça.
A reforma sobre a remessa de lucros das empresas multinacionais era – como é até agora – o desespero das elites capitalistas. Estes oligopólios não respeitam a soberania dos países e continuam a falar em livre mercado, globalização e outros bichos mais. Esta reforma, que significa ainda hoje uma estocada na voracidade do capital internacional, esta sim, assinada por Jango, é o grande calcanhar de Aquiles do Império, que a teme e tenta evitar a qualquer custo.
A falta de regulamentação desta sangria, que é a remessa sem controle das divisas nacionais, significa o nosso empobrecimento constante. Isso Jango queria reverter. Somente nos últimos dez anos, foram remetidos ao exterior, para suas matrizes, mais de US$ 100 bilhões de nosso país. Somente no ultimo trimestre, segundo dados do Banco Central, foram transferidos mais de US$ 5 bilhões. Esse é o preço, até agora, da nossa verdadeira independência.
E a reforma agrária, esta sim, é uma incontrolável peça de debates e disputas ideológicas que não fazem mais sentido em um país continental como é o nosso Brasil. Jango decretou que fosse iniciada nas estradas, ferrovias e açudes federais, para um melhor escoamento da produção agrícola ali desenvolvida. O presidente deposto pela força das armas entendia que não era justa a valorização exacerbada de uma propriedade – latifúndios de perder de vista – quando o dinheiro do Estado, de todos nós, majorava seu valor com a construção de estradas asfaltadas ou de melhoramentos através de recursos públicos. Na maioria das vezes, estas obras significavam a soma de um valor intrínseco dez vezes maior do que a original.
Era nestes terrenos que precisava ser feita a reforma agrária. Com escoamento, assistência técnica, desenvolvimento de pesquisa agrária e tecnológica. Não como hoje, quando se colocam contingentes humanos enormes, famílias e mais famílias, em terras da selva amazônica ou em áreas remotas, distantes dos centros de consumo.
A realidade é que derrubaram Jango não para deter o comunismo, como queria o Padre Payton, da CIA, comandando comadres pela Avenida Paulista. Derrubaram Jango para deter o avanço social através das reformas de base propostas de forma democrática. Precisavam dos fuzis, e não de votos, para calar a esperança de um povo. Precisavam dos canhões para sufocar a liberdade. Precisavam da conspiração para rasgar a Carta Magna. E agora, no dia 1° de Abril, o Dia da Mentira, as mesmas elites que sujaram as mãos no sangue e no sofrimento de todos aqueles que ousaram resistir, continuam a dizer que não mataram, não torturaram, não oprimiram, não fecharam o Congresso, não cassaram e não permaneceram no poder durante 21 anos. Têm, ainda nos dias atuais, a displicência de dizer, no editorial de um dos jornalões que aplaudiram a passeata das mal amadas, que tudo não passou de uma "ditabranda".
Governaram sem um voto sequer dos brasileiros. Essa é verdade. A Historia é lenta, mas implacável. Ela sempre será reescrita pela verdade, pelos fatos. Nunca por aqueles que, vitoriosos em um primeiro momento, iludiram-se por imaginá-la definitiva. A História se impõem pela Justiça e não morre com os covardes, nos sótãos escuros do esquecimento.
Para terminar, deixo uma frase do inesquecível professor Darcy Ribeiro, para a reflexão:
“Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando, lutando, como um cruzado pelas causas que comovem. Elas são muitas, demais: A salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade, somei mais fracassos do que vitórias em minhas lutas, mas isso não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que venceram nessas batalhas”.
João Vicente Goulart é filho do ex-presidente João Goulart e presidente do Instituto João Goulart.
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