quarta-feira, 29 de abril de 2009

ASSEMBLÉIA GERAL DA ONU - Dia Internacional da Mãe Terra.

Discurso de Leonardo Boff no dia 22 de abril de 2009

Senhor Presidente Miguel d’Escoto Brockmann
Senhor Presidente do Estado Plurinacional de Bolívia, Sua Excelência Evo Morales Ayma
Distinguidos delegados
Irmãos e Irmãs todos


No de 2000 a Carta da Terra nos fazia esta severa advertência: "Estamos num momento crítico da história da Terra, na qual a humanidade deve escolher o seu futuro... A escolha nossa é: ou formamos uma aliança global para cuidar da Terra e cuidar-nos uns dos outros ou arriscamos a nossa própria destruição e a da diversidade da vida"

Se a crise econômico-financeira é preocupante, a crise da não-sustentabilidade da Terra se apresenta ameaçadora. Os cientistas que acompanham o estado da Terra, especialmente a Global Foot Print Network têm falado do Earth Overshoot Day, do dia em que foram ultrapassados os limites da Terra. E isso ocorreu exatamente no dia 23 de setembro de 2008, uma semana após o estouro da crise econômico-financeira nos EUA. A Terra ultrapassou em 40% sua capacidade de reposição dos recursos necessários para as demandas humanas. Neste momento necessitamos mais de uma Terra para atender a nossa subsistência.

Como garantir a sustentabilidade da Terra já que esta é a premissa para resolver as demais crises: a social, a alimentar, a energética e a climática? Agora já não temos uma Arca de Noé que salve alguns e deixa perecer os demais. Todos devemos nos salvar juntos.

Como asseverou recentemente com muita propriedade o Secretário Geral desta Casa, Ban Ki-Moon:"não podemos deixar que o urgente comprometa o essencial". O urgente é resolver o caos econômico, mas o essencial é garantir a vitalidade e a integridade do planeta Terra. É decisivo superar a crise financeira, porém o imprescindível e essencial é: como vamos salvar a Casa Comum e a Humanidade que é parte dela?

Esta é a razão para termos adotado a resolução sobre o Dia Internacional da Mãe Terra que, a partir de agora, se celebrará no dia 22 de abril de cada ano.

Dado o agravamento da situação ambiental, especialmente do aquecimento global, temos que atuar juntos e rapidamente. Não temos tempo a perder nem nos é permitido errar. Caso contrário, há o risco de que a Terra possa continuar mas sem nós.

Em nome da Terra, nossa Mãe, de seus filhos e filhas sofredores e dos demais membros da comunidade de vida, quero agradecer a esta Assembléia Geral por haver sabiamente aprovado esta resolução.

Neste contexto, me permito fazer uma breve apresentação do fundamento que sustenta a idéia da Terra como nossa Mãe.

Desde a mais alta ancestralidade, as culturas e religiões sempre têm testemunhado a crença na Terra como Grande Mãe, Magna Mater, Inana e Pachamama.

Os povos originários de ontem e de hoje tinham e têm clara consciência de que a Terra é geradora de todos os viventes. Somente um ser vivo pode produzir vida em suas mais diferentes formas. A Terra é, pois, nossa Mãe universal.

Durante séculos e séculos prevaleceu esta visão até a emergência recente do espírito científico no século XVI. A partir de então, a Terra já não é mais considerada como Mãe, senão como uma realidade sem espírito, entregue ao ser humano para ser submetida, mesmo com violência. A mãe-natureza que devia ser respeitada se transformou em natureza-selvagem que deve ser dominada. A Terra se viu convertida num baú cheio de recursos naturais, disponíveis para a acumulação e o consumo humano.

Neste novo paradigma não se coloca a questão dos limites de suportabilidade do sistema-Terra nem dos recursos naturais não renováveis. Pressupunha-se que os recursos seriam infinitos e que poderíamos ir crescendo ilimitadamente na direção do futuro. O que efetivamente é uma grande ilusão.

A preocupação principal era e é: como ganhar mais no tempo mais rápido possível e com um investimento menor? A realização histórica deste propósito fez surgir um arquipélago de riqueza rodeado por um mar de miséria.

O PNUD de 2007-2008 o confirma: os 20% mais ricos do mundo absorvem 82,4% de todas as riquezas da Terra enquanto os 20% mais pobres têm que se contentar com apenas 1,6%. Estes dados provam que uma ínfima minoria monopoliza o consumo e controla os processos econômicos que implicam pilhagem da natureza e grande injustiça social.

Entretanto, a partir dos tardios anos 70 do século passado se tem imposto a constatação de que um planeta pequeno, velho e limitado como a Terra já não pode suportar um projeto ilimitado. Faz-se urgente outro modelo que tenha como eixo a Terra, a vida e o bem viver planetário no quadro de um espírito de colaboração, de responsabilidade coletiva e de cuidado.

Agora a preocupação central é: como viver e produzir em harmonia com a Terra, com os seres humanos, como o universo e com a Última Realidade, distribuindo equitativamente os benefícios entre todos e alimentando solidariedade para com as gerações presentes e futuras? Como viver mais com menos?

Foi neste contexto que se resgatou a visão da Terra como Mãe. Já não é mais a percepção dos antigos mas uma constatação empírica e científica. Foi mérito dos cientistas e sábios como James Lovelock, Lynn Margulis e José Lutzenberger nos anos 70 do século passado, ter demonstrado que a Terra é um superorganismo vivo que se autoregula. Ela articula permanentemente o físico, o químico e o biológico de forma tão sutil e equilibrada que, sob a luz do sol, propicia a produção e a manutenção de todas as formas de vida. Por milhões de anos o nível do oxigênio, essencial para a vida, se mantém em 21%, o nitrogênio, decisivo para o crescimento, em 79% e o nível de sal dos oceanos em 3,4%. E assim todos os elementos necessários para a vida. Não é que sobre a Terra haja vida. A Terra mesma é viva, chamada de Gaia, a deusa grega para significar a Terra viva.

Que toda a Terra está cheia de vida no-lo comprova o conhecido biólogo Edward O. Wilson. Escreve ele:"Num grama de terra ou seja, em menos de um punhado, vivem cerca de dez bilhões de bactérias pertencentes até a seis mil espécies diferentes". Efetivamente, a Terra é Mãe fecunda.

A Terra existe já há 4, 4 bilhões de anos. Num momento avançado de sua evolução, de sua complexidade e de sua auto-organização, começou a sentir, a pensar e a amar. Foi quando emergiu o ser humano. Com razão, nas línguas ocidentais homo / homem vem de húmus, terra fecunda. E em hebraico Adam se deriva de adamah, terra cultivável. Por isso, o ser humano é a própria Terra que anda, que sente, que pensa e que ama, como dizia o poeta indígena e cantador argentino Atahualpa Yupanqui.

A visão dos astronautas confirma a simbiose entre Terra e Humanidade. De suas naves espaciais testemunhavam de forma comovedora: "daqui, contemplando este resplancedente planeta azul-branco, não se percebe nenhuma diferença entre Terra e Humanidade. Formam uma única entidade". Mais que como povos, nações e etnias devemos nos entender como criaturas da Terra, como filho e filhas da Mãe comum.

Entretanto, olhando a Terra mais de perto, nos damos conta de que ela se encontra crucificada. Possui o rosto do terceiro e quarto mundo, porque vive sistematicamente agredida. Quase a metade de seus filhos e filhas padece fome e sede e são condenados a morrer antes do tempo. A cada quatro segundos, consoante dados da própria ONU, morre uma pessoa estritamente de fome.

Por isso, são expressões de amor à Mãe Terra, as políticas sociais de muitos países, como por exemplo, de meu pais, o Brasil, sob o governo do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, particularmente o programa Fome Zero e Bolsa-Família. Em seis anos se devolveu vida e dignidade a 50 milhões de pessoas que antes viviam na pobreza e na fome.

Temos que baixar a Terra da cruz e ressuscitá-la. Para esta tarefa gigantesca somos inspirados por um documento precioso: a Carta da Terra. Nasceu da sociedade civil mundial. Em sua elaboração envolveu mais de cem mil pessoas de 46 países. Em 2003 uma resolução da UNESCO a apresentou "como um instrumento educativo e uma referência ética para o desenvolvimento sustentável". Participaram ativamente de sua concepção Mikhail Gorbachev, Maurice Strong e Steven Rockfeller e eu mesmo entre outros. A Carta entende a Terra como dotada de vida e como nosso Lar Comum. Apresenta pautas concretas que podem salvá-la, cuidando-a com compreensão, com compaixão e com amor, como cabe a toda mãe. Oxalá, um dia, esta Carta da Terra, possa ser apresentada, discutida e enriquecida por esta Assembléia Geral. Caso seja aprovada, teríamos um documento oficial sobre a dignidade da Terra junto com a declaração sobre a dignidade da pessoa humana.

Mas cabe fazer uma advertência. Para sentir a Terra como Mãe não é suficiente a razão dominante que é funcional e instrumental. Necessitamos enriquecê-la com a razão sensível, emocional e cordial, pois ai se enraíza o sentimento profundo, se elaboram os valores, se cultivam o cuidado essencial, a compaixão e os sonhos que nos inspiram ações salvadoras. Nossa missão, no conjunto dos seres, é a de ser os guardiões e cuidadores desta sagrada herança que recebemos do universo: a Terra, nossa Mãe.

Para terminar permito-me fazer uma sugestão: que se coloque na cúpula interna da Assembléia uma destas imagens belíssimas e plásticas da Terra vista a partir de fora da Terra. Suspensa no transfundo negro do universo, ela evoca em nós sentimentos de reverência e de mútua pertença. Ao contemplá-la, tomamos consciência de que ai está o nosso Lar Comum.

Pediria ainda que fosse aprovada uma recomendação de que no dia 22 de abril, dia Internacional da Mãe Terra, se fizesse um momento de silêncio em todos os lugares públicos, nas escolas, nas fábricas, nos escritórios, nos parlamentos para que nossos corações entrem em sintonia com o coração de nossa Mãe Terra.

Concluo. Tal como está, a Terra não pode continuar. É urgente que mudemos nossas mentes e nossos corações, nosso modo de produção e nosso padrão de consumo, caso quisermos ter um futuro de esperança. A solução para a Terra não cai do céu. Ela será o resultado de uma coalizão de forças em torno a uma consciência ecológica integral, uns valores éticos multiculturais, uns fins humanísticos e um novo sentido de ser. Só assim honraremos nossa Casa Comum, a Terra, nossa grande generosa Mãe.

Muito obrigado.

Leonardo Boff
Representante do Brasil e da Comissão da Carta da Terra.

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