E aquí no Brasil, pesquisa recente revelou que a grande maioria dos jovens não tem a menor idéia do que foi o AI5.
Carlos Dória
Ramírez
Cartagena das Índias (Colômbia)
Não há nada pior do que o esquecimento, diz o escritor Lyonel Trouillot enquanto admiramos o anoitecer que avança como uma leve névoa sobre Porto Príncipe, sentados no terraço do Ibo Lele, um hotel cujo glamour perdido é testemunhado por fotos das estrelas de Hollywood penduradas nas paredes do bar, rostos que não dizem mais nada nem ao cinéfilo mais fiel. O poeta Jorge Castera nos acompanha à mesa, e os dois sofrem, com humor, as feridas abertas do seu país. Rir das feridas abertas é uma forma de não esquecer.
O esquecimento. Entre os jovens, ninguém mais lembra quem foi Francoise "Papa Doc" Duvalier, o médico rural que se proclamou presidente vitalício do Haiti e passou o trono ao seu filho, um adolescente de 136 kg de peso, "Baby Doc" Duvalier, ambos frios assassinos que mataram milhares de pessoas em nome do seu santo poder, mantido graças aos seus capangas, os Tonton Macutes (Bicho Papão), que também caíram no esquecimento.
Eu comento com eles que na Nicarágua, os jovens também não sabem que existiu a dinastia Somoza e que durou meio século, mas, além disso, as pesquisas mostram que uma porcentagem alta dos maiores de 40 anos sente saudades do último Somoza e pensa que ele foi um grande presidente, enquanto muitos jovens nem imaginam que para derrubar a Somoza foi necessário uma revolução.
A risada de Trouillot brilha como o fio de uma alegre faca. O próprio Papa Doc escreveu um "Catecismo da Revolução" com orações que deveriam ser feitas a ele e a sua esposa Simone. Para a sua esposa, uma Saudação Angelical, como se ela fosse a Virgem Maria. Para ele, um Pai Nosso, e o declama: "Doutor nosso que está para sempre no Palácio Nacional, abençoado seja o seu nome pelas presentes e futuras gerações. Seja feita a sua vontade, tanto em Porto Príncipe como nas outras províncias. Dê-nos um novo Haiti, e não perdoe nunca a ofensas antipatrióticas que a cada dia proferem contra a nossa pátria. Deixe-os cair em tentação sob o peso das suas babas venenosas, e não os libere de mal nenhum, amém".
O que me chama a atenção, digo, é que Duvalier acreditasse estar promovendo uma revolução. Uma revolução negra, diz Castera, a sustentação filosófica dele sempre foi a raça. A supremacia negra, como ao longo da historia do Haiti, desde a independência. A filosofia transformada em crime, e as crenças religiosas manipuladas à sua vontade.
Papa Doc acreditava, ou queria que acreditassem, que ele era a encarnação do espírito do Baron Samedi, o deus da morte no vodu, invisível e onipresente, que percorre os cemitérios à noite sempre vestido de rigoroso preto, como o próprio Papa Doc se vestia, para celebrar rituais noturnos com os cadáveres dos seus inimigos.
Um militar que tinha sido seu aliado rebelou-se contra ele. Quando foi preso, teve a sua cabeça decepada e enviada ao Palácio Nacional conservada em gelo. Papa Doc a colocou sobre a sua mesa de trabalho e fazia perguntas ao além sobre o destino do seu governo. Para neutralizar as suas relações com os espíritos, os inimigos do governo desenterraram o cadáver do seu pai e o cobriram de excrementos.
Eu conto aos meus companheiros sobre a cabeça de Pedrón Altamirano, um assessor de Sandino, assassinado por ordem do velho Somoza. A sua cabeça foi levada a Manágua dentro de um saco de cal viva para ser exposta no quartel do Campo de Marte por vários dias, quando já cheirava mal. Eu relatei esse fato no meu romance ¿Te dio miedo la sangre? (Sentiu medo do sangue?)
Jean Bertrand Aristide, o sacerdote salesiano duas vezes presidente e duas vezes derrubado, não caiu no esquecimento e, exilado na África do Sul, surge nas conversas como um fantasma inquieto. Pergunto sobre Aristide. A noite chegou e se enche com o canto dos coquís, pequenos sapinhos que cantam na escuridão.
"O autoritarismo, a concentração do poder em um único homem que acaba por acreditar que está predestinado foi um mal constante no Haiti desde a independência", diz Trouillot. "Há frases retiradas dos discursos de Duvalier e de Aristide que são idênticas. Ambos têm a mesma origem, vieram da pobreza, do desamparo, mas as suas respostas foram messiânicas e erradas". A única coisa que eu posso responder é que se colocamos um espelho na frente do rosto do Haiti, o reflexo me devolve a imagem da Nicarágua.
Atrás de cada líder que surge na historia estão os espíritos para erguê-lo ou derrotá-lo. No dia 11 de setembro de 1988, o padre Aristide rezava uma missa na humilde igreja de San Juan Bosco quando os Tonton Macutes entraram à sua procura e mataram dezenas de fiéis, mas ele conseguiu fugir. A mão divina já estava sobre a sua cabeça protegendo-o, e depois o perdeu.
O branco edifício do Palácio Nacional, coroado por três cúpulas e que parece iluminado por um brilho sobrenatural, exerce um encantamento imperioso sobre aqueles que passam pelas suas portas como presidentes. Eles se sentem indefesos, e tecem mecanismos de poder que os leva ao fracasso; assim, o padre Aristide inventou as milícias, chamadas de As Quimeras, para que o defendessem. Mas esses grupos de jovens armados acabaram matando pelas ruas os inimigos da sua revolução.
Os espíritos dos cemitérios vodu são os únicos que têm boa memória e não se esquecem de repetir a historia com a sua mão implacável.
Sergio Ramírez é autor de mais de 30 livros entre novelas, contos, ensaios e memórias. Sua obra foi traduzida para 17 idiomas e tem ganhado prêmios como o Alfaguara, o Dashie Hammett e o Prêmio Laure Bataillon 1998 de melhor livro estrangeiro traduzido na França. Foi vice-presidente da Nicarágua.
Fonte:Terra Magazine.
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