Mauro Santayana
O comparecimento do banqueiro Daniel Dantas à CPI das interceptações telefônicas de pouco adiantará. Como ocorreu antes, ele será tratado como um respeitável senhor. Dentro da elasticidade ética de grande parcela do Parlamento, todos os passos de sua vida são considerados virtuosos. Teve a virtude de nascer em uma família de títulos e cabedais. Entre os títulos, os papéis do Império que fizeram de um de seus ancestrais barão de Jeremoabo. Essas circunstâncias benéficas o tornaram filho de um amigo do senhor da Bahia, Antonio Carlos Magalhães, que o encaminhou aos gabinetes do poder. Foi aluno do professor Mário Henrique Simonsen, um dos baluartes do empresariado nacional e ministro do governo militar.
Dantas contratou outro gênio, também procedente das oligarquias, o professor Mangabeira Unger, para que ambos – o advogado com a ductilidade das leis – modelassem o gelatinoso polvo financeiro do Opportunity. Como o Tartufo, de Molière, ele sempre soube agarrar sua oportunidade, onde a encontrou.
Diante de sua importância, os parlamentares se curvam, titubeiam na timidez das perguntas, escolhem seus vocábulos no dicionário das amabilidades. Mesmo que o seu silêncio não estivesse protegido pela Justiça, os cuidados dos inquisidores o assegurariam. É muito difícil – embora estejamos em tempos surpreendentes – que alguém o faça revelar alguma coisa.
Há, em torno do banqueiro, vasta e poderosa conspiração protetora. É a mesma conspiração que busca blindar os donos da Daslu, e de outros prósperos negócios. Os grandes senhores podem roubar do povo, ao sonegar impostos; associar-se a bandidos estrangeiros, a fim de contrabandear mercadorias, legítimas ou de grifes falsificadas; enviar bilhões de dólares ao exterior, conforme fizeram bancos de Foz do Iguaçu, durante o governo passado, com a complacência do Banco Central; pagar e receber propinas, dependendo do lado do balcão em que estejam. O pobre que for apanhado levando um pacote de biscoitos de algum supermercado para o filho faminto será agredido e espezinhado pelos seguranças e autuado em flagrante por furto. Mais do que isso: os pobres que não tiverem a paciência de esperar pelo próximo trem, e quiserem enfiar-se de qualquer maneira nos vagões superlotados, como ocorreu agora no Rio, correm o risco de serem golpeados. Pouco importa se o instrumento da agressão seja um cordão com crachá e apito ou com os punhos: trata-se de ignomínia que a classe média alienada vê com indiferença, mas da qual as vítimas sentem a dor e humilhação.
Há mais de 50 anos, o admirável cronista Rubem Braga encontrou imagem para a indiferença dos ricos e da classe média alta diante do sofrimento dos pobres. Escreveu que a situação era semelhante à de um balão que pairasse a 500 metros do solo, de onde os privilegiados enxergassem a humanidade rasteira nas ruas, nas favelas, no sofrimento cotidiano, enquanto se divertissem. Em entrevista concedida a Terra Magazine, Fernando Lyra criticou o ministro Gilmar Mendes. "Ele fala o tempo todo sobre o Brasil de cima, mostra sua preocupação com isso, enquanto do Brasil de baixo ninguém sabe quem morreu, assim como não se sabe quem matou. É a explicitação do apartheid".
A insânia dos poderosos impede-os de perceber que alguma coisa se move no mundo, com a arregimentação veloz dos cidadãos. Para o bem e para o mal, as informações hoje circulam em segundos, e é possível, como ocorreu na Moldávia, reunir milhares de pessoas nas praças públicas. Quando a situação se torna intolerável, essa mobilização é inevitável.
Nos primeiros anos da Revolução Francesa, com a economia perturbada pela situação política e os gastos de guerra, alguém perguntou a um lavrador de beira de estrada se ele não estava descontente. Sua resposta foi simples: podia lhe faltar, naquela conjuntura, o pão para os filhos, mas ele se sentia orgulhoso, porque adquirira uma dignidade que o feudalismo lhe negava. Nenhum senhor iria manchar mais a honra de sua filha, nem o tratar como animal de lida.
Quando as favelas são cercadas com arame farpado, antes que sejam removidas, como querem muitos, os bancos de jardim ajustados contra o sono dos mendigos, os usuários dos trens agredidos por seguranças de uma empresa concessionária de serviços públicos, e o banqueiro Daniel Dantas é tratado com reverência, parece que voltamos ao ancien-régime.
Fonte:JB
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