Por Flaviana Serafim
Entrevista com Rose Nogueira
Image Os horrores da tortura, da prisão e o afastamento de um filho durante a ditadura. Passar por tudo isso e, ainda hoje, continuar na militância política, não é para qualquer um.
A mulher, mãe, jornalista e militante dos direitos humanos Rose Nogueira viveu e sentiu tudo isso na pele, literalmente. Os relatos que ela compartilha aqui são fortes, emocionantes, e retratam momentos dolorosos dos que lutaram pela democracia.
Mas, independente das experiências terríveis pelas quais passou – como ser levada ao DOPS deixando o filho de apenas um mês para trás – Rose explica porque mantem seu engajamento político até hoje. “Quando você tem uma ideologia e acredita num mundo melhor, onde a tua presença é para melhorar o mundo, você só existe para isso. Existimos para poder melhorar o mundo”.
Atualmente editora da TV Brasil (rede de TV publica do governo), Rose é ex-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e integra várias entidades na luta pelos direitos humanos. Em 46 anos de jornalismo, também fez história como uma das criadoras do programa TV Mulher, na Rede Globo, um marco dos anos 80.
Dos ensinamentos de seus longos anos de luta e enorme resistência, Rose relembra um, apreendido com uma colega na prisão: “Pegue sua agulha porque as mulheres são assim... A gente amarra uma mágoa em cada nó e assim nós vamos ficando muito mais fortes”.
[Site do Zé Dirceu] Você é jornalista e foi uma das criadoras do programa TV Mulher, um dos marcos dos anos 80 da TV brasileira e marco, também, quando se fala sobre as mulheres ainda hoje...
[Rose Nogueira] Até hoje as escolas de comunicação fazem trabalho sobre o TV Mulher, da Rede Globo, como se o programa estivesse no ar. A TV Mulher foi um marco mesmo e uma coisa muito engraçada quando começamos: fui convidada pelo (publicitário) Carlito Maia e era um projeto secreto da Globo.
Naquele tempo, nem sei o motivo, eu andava muito com o Zé Dirceu e conversava sobre a criação do programa. Algumas idéias tiveram a influência dele nesses nossos diálogos.
TV Mulher era um programa ao vivo e tinha que ser uma coisa rápida. Na criação, brincamos dizendo que seria em preto e branco porque os homens estavam muito atrasados. E preto e branco dentro da TV colorida, o que também causaria uma diferença para o telespectador.
TV Mulher recebia 10 mil cartas por semana
Até o programa ir ao ar, a mulher era cidadã de segunda categoria no Brasil. O feminismo crescia no mundo inteiro. Lembro que nós falávamos dos direitos das mulheres em geral e também dos direitos da empregada. Aí ligavam pessoas reclamando, xingando, opinando. A participação do público era enorme.
Sabe quantas cartas recebíamos por semana? Dez mil! A maioria delas eram escritas por mulheres espancadas, que sofriam o ciúme dos maridos, ou a traição. O programa tinha uma seção só sobre direitos, palavra que não existia na época da ditadura. Fazíamos campanha forte contra o racismo. Falávamos de sexo e saúde na TV, o que ninguém fazia ainda.
Linguagem do programa fazia pensar, refletir
A linguagem do TV Mulher era outra inovação. Eu desenvolvia um texto, que depois dividi com algumas pessoas, onde você repete algumas palavras chave. O telespectador podia ficar até de costas que entendia o que era falado. E era a primeira vez que um texto para TV era pensado de modo a fazer pensar, refletir.
Era uma linguagem que permitia a reflexão e até então todo mundo acreditava que a TV só produzia pessoas idiotas. Eu me divertia muito fazendo o TV Mulher porque ficava sozinha, escrevendo o texto inteiro na hora do programa. Até hoje eu não sei como fiz aquilo!
[Site do Zé Dirceu] A sua trajetória também é marcada pela luta contra a repressão da ditadura. Você é ex-presa política e está há anos engajada na luta pelos direitos humanos. O que te levou à militância?
[Rose Nogueira] Sou jornalista há muito tempo, comecei com 17 anos, no início da década de 1960. Anos depois, quando fui trabalhar na Editora Abril, eu já freqüentava o Partidão (Partido Comunista Brasileiro – PCB). E por amor, amor de namoro mesmo.
Namorei o jornalista Paulo Viana e ele era irmão do Cícero Viana, dirigente do partido. Não era filiada, mas abracei imediatamente a ideologia do PCB.
Eu fiz 18 anos em 1964, ano do golpe militar, e, como o partido começou a ser perseguido, eu já vivia no clima da época. O Cícero foi para a clandestinidade e o meu namoro com o Paulo foi ficando cada vez mais tenso.
Fui para a Folha da Tarde (FT) que era um jornal meio dirigido ao movimento estudantil da época, e aos intelectuais de esquerda. Um dos chefes de reportagem era o Frei Betto. Aquela altura eu já tinha me separado do Paulo Viana e conheci no jornal o editor de cultura Luiz Roberto Clauset. Mais uma vez eu me apaixonei, casei e engravidei, em 1968.
A Ação Libertadora Nacional (ALN)
usava nossa casa para fazer reunião
Naquele ano veio o Ato Institucional nº 5 e aí começou a censura, a presença do censor na redação e a brabeza da ditadura. No jornal, o primeiro a entrar na clandestinidade foi o Frei Betto. Tanto que ele ia fazer o sermão do meu casamento e não pôde.
Eu não tinha mais aproximação com o PCB. O Cícero havia saído da direção do partido, junto com o Carlos Marighella e outros que fundaram a Ação Libertadora Nacional (ALN), pela qual eu tinha a maior simpatia. A ALN usava a nossa casa para fazer reunião, algumas pessoas se esconderam lá na clandestinidade. Nosso apoio era total.
Em 1969, a repressão tinha aumentado violentamente. Organizações criadas pela Polícia Civil, como Escuderie Le Coq e pelo Esquadrão da Morte, passaram a comandar a repressão política. O delegado Sergio Paranhos Fleury começou a mandar no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e um pouco no país também.
Briguei com o delegado Fleury
e disse que não iria com o bebê para o DOPS
Por conta da prisão dos padres dominicanos contrários à ditadura, a polícia foi levada a minha casa, eu e meu marido fomos presos. Eu tinha um bebê com apenas 31 dias na época, e nós fomos levados para o DOPS.
Eu briguei com o delegado Fleury e até hoje me pergunto como eu tomei aquela atitude. Atribuo isso à maternidade porque é o que te faz qualquer bicho. As fêmeas defendem sua cria, e eu virei bicho mesmo! Disse que não iria com o bebê de forma alguma para o DOPS.
O Fleury acabou me amarrando numa cadeira até vir me buscar no dia seguinte. Fiquei em casa com dois investigadores e prenderam todo mundo que apareceu lá. Aprisionaram um senhor que foi só entregar o documento do nosso carro, um fotógrafo que era meu amigo e até o porteiro do prédio.
[Site do Zé Dirceu] Além de presa e levada para o DOPS, você tinha um bebê...
[Rose Nogueira] Depois de ser presa no DOPS pela equipe do delegado Fleury, meu filho ficou com a minha sogra. Passei por todas as coisas que todos que estiveram ali viveram – tortura, humilhação, tudo o que você possa imaginar.
Fiquei no DOPS por quase dois meses, tive prisão preventiva decretada e segui para o presídio Tiradentes (SP). Fui processada e enquadrada em três artigos da Lei de Segurança Nacional com pena total de 36 anos, e meu marido também.
Tive febre puerperal e nunca mais pude ter filhos,
fui obrigada a tomar uma injeção para secar meu leite
Esse é um período que nunca mais se esquece. No meu caso, foi o momento em que eu conheci as pessoas mais extraordinárias de toda a minha vida. A prisão une as pessoas. Lá dentro você é você, não é possível ser outra pessoa.
Mas também foi o momento mais trágico porque, devido a uma febre puerperal que eu tive depois do nascimento do meu filho, eu nunca mais pude engravidar novamente. Tenho um filho só. Também fui obrigada a tomar uma injeção para secar meu leite.
[Site do Zé Dirceu] E quanto tempo você ficou no presídio Tiradentes?
[Rose Nogueira] Por quase oito meses. E também foi quando eu conheci as mulheres mais maravilhosas da minha vida, que são minhas amigas até hoje. Somos amigas, nos encontramos e nos emocionamos até hoje.
Quase todas mantém esse compromisso de cuidar do outro, o compromisso com a causa política, com a democracia e a defesa da liberdade. E o compromisso de combate à tortura, que é o meu caso. Vou me dedicar a isso até o último dia de minha vida porque é a forma pela qual eu acredito transformar a democracia.
Na prisão, fazíamos trabalhos manuais
para não enlouquecer
[Site do Zé Dirceu] E o convívio no presídio? Muita gente enlouquece depois dessas experiências.
[Rose Nogueira] No presídio Tiradentes nós tínhamos uma disciplina coletiva, seguida por todos. A hoje ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, na época também militava contra a ditadura, foi presa e integrou nosso grupo, inclusive. Mesmo na prisão, as mulheres nunca deixaram de lado esse ponto de vista do humano, do sentimental, da preocupação de uma com as outras.
Tínhamos a obrigação de fazer trabalhos manuais para não enlouquecer. Todas eram obrigadas a fazer. Nossa preocupação era para que pudéssemos aliviar aquele sofrimento. As famílias mandavam linha, retalhos. Os livros os militares tiraram de nós. Censuravam tudo.
Mas lembro que podia entrar na prisão qualquer livro de economia. Tanto que uma das coisas que eu mais lembro sobre a Dilma é exatamente sua vontade de estudar naqueles tempos. Ela estudava o dia inteiro. Ficava às vezes fazendo algum bordado porque era obrigada, mas ela estudava sem parar.
A gente amarra uma mágoa em cada nó
e assim vamos ficando mais fortes
Um dia eu estava chorando por causa do meu filho. Chorava quando minha família o levava lá e, quando não levavam, eu também chorava. Sempre fui muito chorona, desde criança, e meu pai dizia: “Vai derreter! Vai derreter porque as meninas são feitas de açúcar”. Eu fui criada pensando que as meninas são de açúcar... E açúcar é forte! É bom, não é?...
Eu me lembro de uma senhora chamada Ivone, uma professora do Partidão (PCB) que estava presa. Ela bordava e ensinava a todas as mulheres. Quando chorava, depois de uma visita no presídio, a Dona Ivone chegou perto de mim e falou assim: “vamos, vamos tecer, vamos bordar. Pegue sua agulha porque as mulheres são assim. ..Olha, pra nós é mais fácil porque a gente amarra um mágoa em cada nó. E assim nós vamos ficando muito mais fortes”.
E ela tinha razão. Cada geração tem os seus nós. Eu continuo amarrando as mágoas e tocando o barco.
[Site do Zé Dirceu] E a prisão foi até...
[Rose Nogueira] Até 1970. Mas meu marido continuou preso. Fiquei muito afastada do meu filho porque não queria que minha família o levasse para me visitar na prisão. Eu tinha medo que o levassem embora.
Por outro lado, o presídio Tiradentes era um “alívio” porque ali ninguém era torturado. Estávamos ligados à Justiça Militar. Mas nada impedia que um juiz permitisse a sua volta pro DOPS, OBAN ou DOI-CODI se não tivesse alguma coisa esclarecida. Isso aconteceu com várias colegas.
Em 1950 ou no ano 2000,
a tortura é crime de lesa humanidade
[Site do Zé Dirceu] Você é ex-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais em São Paulo. Como avalia os debates sobre a punição dos agentes públicos, os que torturaram e mataram durante a ditadura? E a questão do reconhecimento da tortura pelo Estado? Por que ainda é polêmica?
[Rose Nogueira] O Estado cometeu um crime contra os cidadãos e tem que pagar pelo que cometeu. Mas o Estado não pode ser preso, então, desde tempos remotos é direito universal – quando o Estado comete um crime tem que pagar a pena dele. Ele vai pagar da maneira que todos conhecem, que é em dinheiro, e também vai te pedir perdão oficialmente.
[Site do Zé Dirceu] É, o pagamento dessa indenização é outra controvérsia...
[Rose Nogueira] A indenização não é o “cala boca” para o torturador. Tanto que estamos querendo a punição deles. Não é punir colocando na cadeia, mas declarar que eles foram torturadores, que a tortura existiu. Quando o Estado paga aos ex-presos e perseguidos políticos, está cumprindo a pena pelo crime que cometeu.
Durante a ditadura, o Estado torturou, matou e, em alguns casos, desapareceu com os corpos. Isso é crime de lesa pátria, de lesa humanidade. Foi em nome do Estado brasileiro que as pessoas viveram aquele período. Quando alguém é torturado, não importa se em 1950 ou em 2002, é um crime que lesa a toda a humanidade.
Existimos para poder melhorar o mundo,
isso é natural do ser humano
[Site do Zé Dirceu] De onde vem a força, a coragem para resistir à tortura, prisão e continuar lutando?
[Rose Nogueira] Quando eu lembro de mim naquela época da ditadura, não é a pessoa que você está vendo aqui hoje falando... No DOPS, fiquei muitos dias sem falar uma palavra...Nem que eu quisesse.... não saía. Fiquei muda diante de tamanha perversidade.
Mas qQuando você tem uma ideologia e acredita num mundo melhor, onde a tua presença é para melhorar o mundo, você só existe para isso.
Existimos para poder melhorar o mundo, mesmo que seja da cadeira onde você está sentada. Isso é natural no ser humano.
Fonte:Blog do Zé Dirceu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário