Ricardo Kotscho
Quando a gente vai ficando mais velho, tudo tem muito tempo, e a gente acaba se esquecendo. Ao ler os comentários enviados de manhã, o nosso bravo e fiel leitor Manoel Ferreira, das 11h05, me lembrou que hoje o golpe militar de 1º de abril de 1964, que jogou o Brasil na mais longa e funda ditadura, completa 45 anos.
Foi o ano em que comecei a trabalhar em jornal, primeiro na Folha Santamarense e pouco tempo depois na Gazeta de Santo Amaro, que resiste até hoje, sob o comando de Armando da Silva Prado Neto.
O golpe mudou de nome na grande imprensa que o apoiou, virou Revolução de 1964, e até a data comemorativa foi depois mudada para 31 de março para não coincidir com o dia da mentira.
Me lembro vagamente desse dia. Eu fazia o primeiro ano colegial no Liceu Pasteur, na Vila Mariana, e fomos dispensados das aulas. Fanático por jornais e revistas, fui folhear na banca mais próxima da escola as edições extras que noticiavam a movimentação militar, iniciada antes da hora em Minas Gerais, pelas tropas do general Olímpio Mourão Filho, na virada de 31 de março para 1º de abril.
Quarenta e cinco anos depois, por uma destas boas coincidências da vida, acabei de chegar agora de visita que fiz a um velho amigo, testemunha ocular desta história, que estava no centro do furacão, ao lado do então governador Adhemar de Barros, no antigo Palácio dos Campos Elísios.
Falo de Elpídio Reali Jr., o Realinho, que está passando uma temporada no Brasil para tratamento de saúde. Em 1964, ele era repórter do Correio da Manhã, o grande jornal carioca da epoca, e já trabalhava na Rádio Panamericana, que virou Jovem Pan, onde está até hoje, como correspondente em Paris.
Por volta da meia noite, muita gente entrando e saindo do gabinete do governador que apoiava o golpe, Adhemar de Barros estava ao telefone trocando informações com Carlos Lacerda, então governador do Rio, um dos líderes civis do movimento.
A certa altura, Adhemar colocou na linha para falar com Lacerda o célebre Tico-Tico, como era conhecido o repórter José Carlos de Moraes, dos Diários Associados, e atendeu a outra ligação.
Do outro lado da linha, estava Dr. Rui, codinome de Ana Capriglione, sua amante não muito secreta, a demonstrar que o amor é sempre mais forte do que qualquer golpe militar.
Durante todo o dia, Reali Jr. assistiu ao desfile de grandes empresários paulistas que passaram pelo gabinete para cumprimentar o governador, entre eles o diretor do Estadão, Júlio Mesquita Filho, ferrenho adversário de Adhemar de Barros.
Naquele momento, acima de qualquer divergência política, o mais importante para todos eles era derrubar o governo popular de João Goulart.
Na mesma hora, Raul Martins Bastos, outro amigo que foi comigo visitar o Realinho, estava voltando de férias no sul do país, vindo de ônibus (sim, naquele tempo jornalistas, mesmo os mais importantes, viajavam de ônibus) de Curitiba para São Paulo.
Dormiu a noite toda e, quando percebeu que o ônibus chegara com bastante atraso a São Paulo, soube pelo motorista o motivo: a grande movimentação de tropas militares na estrada, que atrapalhou o tráfego.
Chefe da rede de sucursais e correspondentes do Estadão, meu compadre Raul correu para o jornal, ainda a tempo de pegar a confraternização de muitos de seus colegas comemorando o golpe militar que o jornal ajudou a deflagrar no país.
Raul e Reali também só se lembraram deste dia a meu pedido, graças ao alerta do leitor Manoel Ferreira, que escreveu no final do seu comentário:
“Mas, se não recordarmos, de vez em quando, os erros do passado, poderemos repetí-los no presente e no futuro”.
Concordo com ele neste ponto, embora divirja da maioria dos seus comentários. Ferreira é um dos mais ácidos críticos do governo Lula neste Balaio e de tudo o que está acontecendo no país em todas as instituições.
A exemplo dele, tenho notado nas últimas semanas que outros leitores estão subindo o tom da sua indignação com os fatos noticiados, a ponto de muitos pedirem a volta da ditadura militar e até da monarquia, sem falar nos que fazem campanha sistemática pelo voto nulo.
Calma lá, pessoal. Com todos os seus defeitos e fraquezas, falcatruas e mazelas, posso garantir, como repórter sobrevivente daqueles anos de chumbo, que a democracia ainda é o melhor regime para se viver em sociedade.
Nunca tivemos um período tão profundo e duradouro de liberdade públicas em nosso país, e é isso que precisamos preservar, até para que cada um possa extravasar aqui pela internet, que não existia naquele tempo, toda a sua ira contra as autoridades constituídas, sem correr o risco de ir em cana ou ser torturado.
Se cada um fizer a sua parte, participando mais da vida política do país, e não só em época de eleição, como muitos da minha geração fizeram na resistência à ditadura, certamente vamos fortalecer a nossa jovem democracia em lugar de jogá-la fora da bacia.
Não podemos confundir nossos eventuais representantes ou ocupantes temporários de cargos públicos nos três poderes com as instituições permanentes que nos garantem esta liberdade, tão importante quanto o ar que respiramos. Ditadura, nunca mais.
Fonte:Balaio do Kotscho.
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