Na esquina das ruas Rego Freitas e Major Sertório, próximo da sede de IMPRENSA, há um bar onde, freqüentemente, compro cigarros. Hoje, no mesmo horário de sempre, e atendido sempre pelo mesmo caixa, presenciei a conversa entre um freqüentador e um balconista sobre o encontro do G20. Chamaram a atenção deles tanto a irreverente deferência com que Obama tratou a Lula quanto a imagem, reproduzida pelos jornais, da foto oficial do encontro, em que Lula se senta ao lado da Rainha Elizabeth, da Inglaterra. Ambos estavam orgulhosos do presidente.
Desde criança, sempre nutri uma estranha afeição à realeza britânica, em especial à rainha. Sua imagem, não sei porquê, tem a capacidade de me prender por alguns instantes. Guardei essa relação sempre com alguma reserva - me parecia, de alguma forma, anacrônico, ultrapassado e subserviente admirar uma figura que remonta aos modelos autoritários de poder, como a monarquia. Há poucos anos, eu e Mercedes Stéfani, minha professora de filosofia no ensino médio, conversávamos sobre a Rainha. Ela confessou a mim sua admiração pela monarca e revelava, para o meu espanto, ter guardado, durante muitos anos, recortes de jornais e revistas sobre a rainha, além daquelas antigas edições de Manchete que davam capa para ela ou para outras realezas. A admiração de Mercedes, ela mesma uma iluminista em suas convicções, endossou a minha própria admiração secreta, e, a partir de então, passei a confessar a simpatia pela Rainha sem o mesmo constrangimento de antes. Falávamos, naquele encontro, do poder simbólico que emana da tradição e todas essas bobagens que apenas desocupados num sábado à tarde podem se dar ao luxo.
Num primeiro momento, poderíamos interpretar Lula como sendo o oposto de Elizabeth. Ela, rainha por investidura, fruto de uma linhagem que remonta, indiretamente, ao século VII, com ramificações em todos os Estados europeus. Ele, para começar, brasileiro, migrante sertanejo, pobre, operário, sindicalista e de esquerda. Ela, segundo seu título oficial, "Elizabeth II, pela Graça de Deus, do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e de Seus outros Reinos e Territórios Rainha, Chefe da Comunidade Britânica das Nações, Defensora da Fé". Ele, um Silva, apenas. Lado a lado, seriam a melhor imagem de um paradoxo. Mas não.
Logo depois da confissão mútua entre mim e Mercedes, fui a Londres a trabalho. Nas horas vagas, queria entender um pouco melhor o repertório simbólico que emana da realeza. Para isso, sentei-me uma tarde diante do Palácio de Buckingham, nos degraus do Victoria Memorial e observei, durante algumas horas, a reação das pessoas em frente à casa real. Um olho no povo, outro na janela, nada me retirava a inútil esperança que Elizabeth fosse na sacada verificar, por exemplo, o tempo, àquela altura na casa dos 5o C. Não vi a rainha, mas, conforta-me, cheguei perto. Tampouco já vi Lula, mas também cheguei perto. Algum tempo depois, repetiria o gesto em frente ao Palácio da Alvorada, com suas dezenas de metros de separação entre a fachada e a grade. As duas experiências me pareceram muito semelhantes. Tanto quanto, a mim, Lula e Elizabeth, apesar das diferenças, parecem representar algo muito parecido aos seus povos. Ambos são, e cada um a sua maneira, signos identitários de seus povos. A Rainha, por vocação. Lula, por mérito.
Aí está algo que a imprensa ainda não soube reconhecer. Quando as pesquisas de popularidade do presidente apontam os surpreendentes indicadores que têm revelado, os repórteres, comentaristas, colunistas e editorialistas de jornais e emissoras de rádio se debruçam, intrigados, sobre os números empilhados, tecem comparações, conjecturas e procuram explicações. Todas, naturalmente, de ordem objetiva: o assistencialismo dos programas de distribuição de renda, a boutade presidencial, o investimento em publicidade governamental etc. Todos passam muito longe de compreender que Lula tem a melhor aprovação entre os governantes da história do Brasil e o planeta porque, simplesmente, ele é o signo da fé do povo brasileiro em si mesmo.
O pensador francês Roland Barthes escreveu, há mais de 50 anos, um notável e delicioso ensaio sobre as famílias reais européias. Na ocasião, os príncipes decidiram viajar em um iate e mostraram-se como nunca haviam sido vistos. Determinada princesa apareceu na foto com saias compradas em lojas de departamento e o príncipe, com barba por fazer. Para Barthes, a face humana dos príncipes só lhes faria bem. Quanto mais humanos parecessem, mais divinos, diante do povo, se tornariam. O esforço de Elizabeth, nesses longos 56 anos de reinado, tem sido convencer que o destino a pôs no trono, mas que ela pode ser humana tanto quanto cada um de seus súditos. O filme "A Rainha" (dir. Stephen Frears, 2006), aliás, retrata bem esse conflito e como ele ressoa nos jornais. Lula, por vez, opera esse dilema ao avesso. Se o destino (via democracia) o pôs no poder, seu esforço reside em, dia após dia, convencer a opinião pública, os jornalistas e outros governantes de que está apto a conduzir seu país, não porque é divino, mas sobretudo porque é humano.
O que os jornalistas não perceberam, os dois homens do bar no centro paulistano sabem muito bem. Estar ao lado da Rainha na foto oficial - mesmo com a protocolar explicação de que isso ocorrera porque Lula é, entre todos os presentes do G20, o mandatário com mais tempo em governo - significa para o brasileiro comum que um país sem pedigree, como o nosso, tem o legítimo direito de assento no imaginário global.
* Rodrigo Manzano é Diretor Editorial da IMPRENSA e professor de Jornalismo na graduação e pós-graduação do UniFIAMFAAM, em São Paulo
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