sábado, 10 de julho de 2010

ECONOMIA - Neoliberalismo obrigatório.

Do site Esquerda.net.

Neoliberalismo obrigatório

“Inclina a cerviz, altivo sicambro; adora o que queimaste e queima o que adoraste”, ordenou o bispo Remígio ao bárbaro Clóvis quando este teve de se converter ao cristianismo para ser rei de França. E isso mesmo parecem ter exigido ao social-democrata José Luis Rodríguez Zapatero os chefes de Governo do Eurogrupo, em Bruxelas, a 7 de Maio passado, quando se juntaram ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e aos mercados financeiros para o obrigar a renegar toda a veleidade social, e a converter-se imediatamente ao credo neoliberal. Artigo de Ignacio Ramonet

Somente cinco dias depois, com o fanatismo dos conversos (mas com pretenso «pungimento interno»), o Presidente do Governo – que afirmava, em 2004, «governarei para os mais fracos», e reiterava, em 2008, «governarei a pensar nos que não têm tudo» – anunciava um plano de ajuste terrivelmente impopular. Cinco milhões de pensionistas, três milhões de funcionários, centenas de milhares de idosos necessitados de assistência e meio milhão de futuros pais de 2011 sofrerão as consequências do corte brutal.

Ao mesmo tempo, outros chefes de governo social-democratas, na Grécia e em Portugal, viam-se também forçados a ir a Canossa, retractar-se e humilhar-se, e a acatar as teses ultraliberais que até então, em princípio, tinham combatido.

Insólita mudança. Porque há menos de dois anos, após a quebra do banco Lehman Brothers nos Estados Unidos, os partidários do neoliberalismo estavam derrubados e à defensiva. Eram eles quem renegava então. A “crise do século” parecia demonstrar o fracasso da sua ideologia da desregulação e a necessidade de recorrer de novo ao Estado para salvar a economia e preservar a coesão da sociedade.

Os Governos, inclusive os de direita, retomavam a sua função de actores primordiais da área económica; nacionalizavam entidades financeiras e empresas estratégicas, injectavam massivamente liquidez no sistema bancário, multiplicavam os planos de estímulo… Tanto dirigentes como economistas felicitavam-se por essas decisões que correspondiam às lições tiradas da crise de 1929, quando se demonstrou que as políticas de deflação, de austeridade e de restrição do crédito conduziram à Grande Depressão.

Por isso, no Outono de 2008, todo o mundo anunciou o “regresso a Keynes”. Os Estados Unidos lançaram um plano de resgate dos bancos de 700.000 milhões de dólares, seguido de outro de 800.000 milhões de dólares. Os vinte e sete da União Europeia (UE) puseram-se de acordo num pacote de estímulo de 400.000 milhões de euros. E o governo de José Luis Rodríguez Zapatero, constatando, em Novembro de 2008, que «os três anos consecutivos de superávit orçamental permitem-nos agora incorrer em déficit sem pôr em risco a credibilidade das finanças públicas», anunciou um ambicioso Plano de Estímulo à Economia e ao Emprego de 93.000 milhões de euros.

Além disso, em várias Cimeiras do G-20, os dirigentes dos Estados mais poderosos decidiam acabar com os paraísos fiscais, controlar os fundos de alto risco (hedge funds) e sancionar os abusos dos especuladores causadores da crise. José Manuel Durão Barroso, Presidente da Comissão Europeia, declarava: "As autoridades políticas não tolerarão mais que os especuladores voltem a levantar cabeça e nos arrastem para a situação anterior".

E, no entanto, voltámos à situação anterior. De novo os mercados e os especuladores têm a faca e o queijo na mão. E as autoridades políticas ajoelham-se. Que aconteceu? O peso da dívida soberana consentida pelos Estados para salvar os bancos [1] serviu de pretexto para uma espectacular mudança de situação. Sem o mínimo reparo, os mercados e a especulação financeira, apoiados pelas agências de qualificação (totalmente desacreditadas há apenas uns meses), atacam directamente, no seio da UE, os Estados endividados, acusados agora de viver acima das suas possibilidades. O objectivo principal é o euro. O Wall Street Journal [2] revelou que um grupo de importantes responsáveis estadunidenses de hedge funds, reunido a 8 de Fevereiro num hotel de Manhattan, teria decidido aliar-se para fazer baixar a moeda única europeia para 1 euro face a 1 dólar. Naquele momento, o euro valia 1,37 dólares; hoje já só vale 1,22 e continua ameaçado…

Os mercados querem a sua desforra. E reclamam, com mais vigor que nunca, em nome da “indispensável austeridade”, o desmantelamento da protecção social e a drástica redução dos serviços públicos. Os Governos mais neoliberais aproveitam para exigir maior “integração europeia” em cujo nome tratam de forçar a adopção de dois instrumentos que não existem: um governo económico da União e uma política fiscal comum.

Com o apoio do FMI, a Alemanha impôs planos de ajuste a todos os membros da UE (Grécia, Portugal, Espanha, Itália, França, Reino Unido, Roménia, Hungria, etc.) cujos Governos, de repente obcecados pela redução do gasto público, acataram sem chiar. Ainda que isso ameace a Europa de cair numa profunda Depressão.

Na mesma linha, Bruxelas deseja sancionar os países que não respeitem o Pacto de Estabilidade [3]. Berlim pretende ir mais longe e acrescentar uma sanção altamente política: a suspensão do direito de voto no Conselho Europeu. Com um objectivo claro: nenhum Governo deve sair do carril neoliberal.
No fundo, esse é o saldo político da actual crise da dívida soberana: não parece ficar espaço, no seio da UE, para nenhuma opção de progresso. Admitirão os cidadãos semelhante regressão? Pode aceitar-se que fique descartada qualquer solução democrática de esquerda de impulsionar o avanço social?

[1] Um relatório da Comissão Europeia assinala que o total de fundos comprometidos para os bancos ascende a 3,3 biliões de euros, ou seja, a 28% do PIB da UE!, El País, Madrid, 20 de Junho de 2010.

[2] Susan Pulliam, Hedge Funds Try ‘Career Trade’ Against Euro, The Wall Steet Journal, Nova York, 26 de Fevereiro de 2010.

[3] Adoptado em 1997 e que limita a 3% do PIB o déficit público.

Fonte: Le Monde diplomatique en español
http://infoalternativa.org/spip.php?article1789

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