Obsolescência planejada: armadilha silenciosa na sociedade de consumo
PRODUÇÃO DA DESTRUIÇÃO
O
crescimento pelo crescimento é irracional. Precisamos descolonizar
nossos pensamentos construídos com base nessa irracionalidade para
abrirmos a mente e sairmos do torpor que nos impede de agir
por Valquíria Padilha, Renata Cristina A. Bonifácio
"É comum um
telefone celular ir ao lixo com menos de oito meses de uso ou uma
impressora nova durar apenas um ano. Em 2005, mais de 100 milhões de
telefones celulares foram descartados nos Estados Unidos. Uma CPU de
computador, que nos anos 1990 durava até sete anos, hoje dura dois anos.
Telefones celulares, computadores, aparelhos de televisão, câmeras
fotográficas caem em desuso e são descartados com uma velocidade
assustadora. Bem-vindo ao mundo da obsolescência planejada!
Na sociedade de
consumo, as estratégias publicitárias e a obsolescência planejada
mantêm os consumidores presos em uma espécie de armadilha silenciosa,
num modelo de crescimento econômico pautado na aceleração do ciclo de
acumulação do capital (produção-consumo-mais produção). Mészáros (1989,
p.88) diz que vivemos na sociedade descartável que se baseia na “taxa de
uso decrescente dos bens e serviços produzidos”, ou seja, o capitalismo
não quer a produção de bens duráveis e reutilizáveis. A publicidade é o
instrumento central na sociedade de consumo e um grande motivador de
nossas escolhas, pois é por meio dela que geralmente nos são
apresentados os produtos de que passamos a sentir necessidade. A função
da publicidade é persuadir visando a um consumo dirigido. Para aquecer
as vendas, trabalha arduamente para convencer o consumidor da
necessidade de produtos supérfluos. É o que Bauman (2008) chama de
“economia do engano”. Para Latouche (2009, p.18), “a publicidade nos faz
desejar o que não temos e desprezar aquilo que já desfrutamos. Ela cria
e recria a insatisfação e a tensão do desejo frustrado”.
A obsolescência planejada
Para mover esta
sociedade de consumo precisamos consumir o tempo todo e desejar novos
produtos para substituir os que já temos – seja por falha, por acharmos
que surgiu outro exemplar mais desenvolvido tecnologicamente ou
simplesmente porque saíram de moda. Serge Latouche, no documentário A
história secreta da obsolescência planejada,1 diz que nossa necessidade
de consumir é alimentada a todo momento por um trio infalível:
publicidade, crédito e obsolescência.
Planejar quando
um produto vai falhar ou se tornar velho, programando seu fim antes
mesmo da ação da natureza e do tempo de uso é a obsolescência planejada.
Trata-se da estratégia de estabelecer uma data de morte de um produto,
seja por meio de mau funcionamento ou envelhecimento perante as
tecnologias mais recentes. Essa estratégia foi discutida como solução
para a crise de 1929. O conceito teve início por volta de 1920, quando
fabricantes começaram a reduzir de propósito a vida de seus produtos
para aumentar venda e lucro. A primeira vítima foi a lâmpada elétrica,
com a criação do primeiro cartel mundial (Phoebus) para controlar a
produção. Seus membros perceberam que lâmpadas que duravam muito não
eram vantajosas. A primeira lâmpada inventada tinha durabilidade de
1.500 horas. Em 1924, as lâmpadas duravam 2.500 horas. Em 1940, o cartel
atingiu seu objetivo: a vida-padrão das lâmpadas era de 1.000 horas.
Para que esse objetivo fosse atingido, foi preciso fabricar uma lâmpada
mais frágil.
Em 1928, o lema
era: “Aquilo que não se desgasta não é bom para os negócios”. Como
solução para a crise, Bernard London propôs, num panfleto de 1932, que
fosse obrigatória a obsolescência planejada, aparecendo assim pela
primeira vez o termo por escrito. London pregava que os produtos
deveriam ter uma data para expirar, acreditando que, com a obsolescência
planejada, as fábricas continuariam produzindo, as pessoas consumindo
e, portanto, haveria trabalho para todos, que trabalhando poderiam
consumir e assim fazer o ciclo de acumulação de capital se manter. Nos
anos 1930, a durabilidade começou a ser propagada como antiquada e não
correspondente às necessidades da época. Nos anos 1950, a obsolescência
planejada ressurgiu com o enfoque de criar um consumidor insatisfeito,
fazendo assim que ele sempre desejasse algo novo. Ainda no pós-guerra
assentaram-se as bases da sociedade de consumo atual, por meio do estilo
de vida norte-americano (American way of life), baseado na liberdade,
na felicidade e na ideia de abundância em substituição à ideia do
suficiente.
Os tipos de obsolescência
Podemos
considerar três tipos de obsolescência: obsolescência de função, de
qualidade e de desejabilidade. “Pode haver obsolescência de função.
Nessa situação, um produto existente torna-se antiquado quando é
introduzido um produto que executa melhor a função. Obsolescência de
qualidade. Nesse caso, quando planejado, um produto quebra-se ou se
gasta em determinado tempo, geralmente não muito longo. Obsolescência de
desejabilidade. Nessa situação, um produto que ainda está sólido, em
termos de qualidade ou performance, torna-se gasto em nossa mente porque
um aprimoramento de estilo ou outra modificação faz que fique menos
desejável” (Packard, 1965, p.51).
Slade (2006)
chama a “obsolescência de função” de “obsolescência tecnológica”, que é o
tipo de obsolescência mais antiga e permanente desde a Revolução
Industrial até hoje, em razão da inovação tecnológica. Assim, a
obsolescência tecnológica, ou de função, sempre esteve atrelada a
determinada concepção de progresso visto como sinônimo de avanços
tecnológicos infinitos. Os telefones celulares e os notebooks são o
melhor exemplo disso. A “obsolescência de qualidade” é quando a empresa
vende um produto com probabilidade de vida bem mais curta, sabendo que
poderia estar oferecendo ao consumidor um produto com vida útil mais
longa. Na década de 1930, faziam-se constantes apelos aos consumidores
para trocarem suas mercadorias por novas em nome de se tornarem bons e
verdadeiros cidadãos norte-americanos. O último e mais complexo tipo de
obsolescência é o da desejabilidade, ou “obsolescência psicológica”, que
é quando se adotam mecanismos para mudar o estilo dos produtos como
maneira de manipular os consumidores para irem repetidamente às compras.
Trata-se, na verdade, de gastar o produto na mente das pessoas. Nesse
sentido, os consumidores são levados a associar o novo com o melhor e o
velho com o pior. O estilo e a aparência das coisas tornam-se
importantes como iscas ao consumidor, que passa a desejar o novo. É o
design que dá a ilusão de mudança por meio da criação de um estilo. Essa
obsolescência pode ser também conhecida como “obsolescência percebida”,
que faz o consumidor se sentir desconfortável ao utilizar um produto
que se tornou ultrapassado por causa do novo estilo dos novos modelos.
A lógica da
sociedade capitalista precisa criar ou renovar estratégias que favoreçam
a acumulação do capital (por meio não só da expropriação da mais-valia
na produção, mas também pelo lucro obtido na venda dos produtos).
Mészáros (1989) nos mostra que a taxa de uso decrescente no capitalismo é
um mecanismo inevitável da produção destrutiva do capital. O autor
considera esse fenômeno intrínseco ao modo de produção capitalista, o
qual precisa estimular a sociedade descartável para perdurar enquanto
sistema econômico hegemônico. Ele diz: “É, pois, extremamente
problemático o fato de que [...] a ‘sociedade descartável’ encontre o
equilíbrio entre produção e consumo necessário para a sua contínua
reprodução, somente se ela puder artificialmente consumirem grande
velocidade (isto é, descartar prematuramente) grandes quantidades de
mercadorias, que anteriormente pertenciam à categoria de bens
relativamente duráveis. Desse modo, ela se mantém como sistema produtivo
manipulando até mesmo a aquisição dos chamados ‘bens de consumo
duráveis’, de tal sorte que estes necessariamente tenham que ser
lançados ao lixo (ou enviados a gigantescos ‘cemitérios de automóveis’
como ferro-velho etc.) muito antes de esgotada sua vida útil” (Mészáros,
1989, p.16).
A sociedade do
consumo visa atender às necessidades de acumulação do capital mais do
que às necessidades básicas de seus membros. Se a satisfação de todos
fosse realmente a finalidade do sistema produtivo, os bens seriam
reutilizáveis. Mas, como o capitalismo “tende a impor à humanidade o
mais perverso tipo de existência imediata” (Mészáros, 1989, p.20), toda a
sociedade fica submetida à lógica de acumulação do capital segundo a
qual a não aceleração do ciclo produção-consumo se torna um obstáculo.
Assim, a obsolescência planejada passa a ser uma estratégia fundamental
para satisfazer as exigências expansionistas do modo de produção
capitalista. “[...] quanto menos uma dada mercadoria é realmente usada e
reusada (em vez de rapidamente consumida, o que é perfeitamente
aceitável para o sistema), [...] melhor é do ponto de vista do capital:
com isso, tal subutilização produz a vendabilidade de outra peça de
mercadoria” (Mészáros, 1989, p.24).
Tudo acaba virando lixo
A obsolescência
planejada é uma tecnologia a serviço do capital. Para aumentar a
acumulação de riquezas privadas, o capital devasta, destrói, esgota a
natureza. O aumento da riqueza do capital é proporcional ao aumento da
destruição da natureza. Na sociedade da obsolescência induzida, tudo
acaba em lixo. Quanto mais rápida e passageira for a vida dos produtos,
maior será o descarte. A publicidade é o motor que faz toda essa
dinâmica funcionar. Esse modelo de sociedade baseada na estratégia da
obsolescência planejada está sendo determinante no esgotamento dos
recursos naturais (que ocorre na etapa da produção) e no excesso de
resíduos (que ocorre na etapa do consumo e do descarte). Magera (2012)
salienta que a humanidade, que existe no planeta há milhares de anos,
conseguiu alcançar a maioria de todos os avanços tecnológicos e
informacionais apenas nos últimos duzentos anos. Mas essa sociedade do
consumo, que, em nome do progresso, aumenta o volume e a velocidade das
coisas produzidas industrialmente, eleva também o volume de lixo. Ao
mesmo tempo, os consumidores não são estimulados a se conscientizar
sobre a geração de resíduos. O lixo é algo do qual as pessoas querem se
desfazer o mais rápido possível e, de preferência, que seja levado para
bem longe.
Leonard (2011)
apresenta inúmeros dados relacionados à extração de recursos naturais e à
produção e geração de resíduos no final do ciclo. Alguns exemplos: para
produzir uma tonelada de papel, são usadas 98 toneladas de vários
outros materiais; 50 mil espécies de árvores são extintas todos os anos;
os norte-americanos possuem cerca de 200 milhões de computadores, 200
milhões de televisores e 200 milhões de celulares; nos Estados Unidos
são consumidos cerca de 100 bilhões de latinhas de alumínio anualmente. A
autora mostra que todo o nosso sistema produtivo-consumista,
potencializado pelas estratégias de obsolescência, produz uma destruição
assustadora dos recursos naturais ao mesmo tempo que aumenta
consideravelmente a geração de lixo. Com a taxa decrescente do valor de
uso dos produtos, tudo o que o sistema consegue é aumentar a acumulação
do capital enquanto aumenta a destruição do planeta.
Produção de
tecnologias verdes ou programas de reciclagem não resolvem essa gama de
problemas. É urgente rever o modelo de crescimento econômico que se
sustenta nos pilares da obsolescência planejada.
Decrescimento econômico
Podemos afirmar
que a espinha dorsal desta sociedade de consumo atual é a aceleração do
ciclo produção-consumo-mais produção-mais consumo, gerando descarte e
resíduos. O consumo é visto como o motor responsável pelo crescimento
econômico – entendido como algo sempre bom e necessário – com base em um
paradigma produtivista-consumista. A publicidade continua uma aliada
fundamental para manter acesa a chama do consumo e da taxa decrescente
do valor de uso das mercadorias, fazendo dos consumidores vítimas de uma
armadilha invisível.
Rever os
princípios que norteiam esse modelo de crescimento econômico é
necessário. Inspiramo-nos no movimento recente do decrescimento
econômico, que tem o economista francês Serge Latouche como um dos
principais expoentes. O PIB não pode mais continuar sendo visto como uma
taxa que deve sempre crescer. Não é razoável pensar num crescimento
infinito quando o planeta é finito. O movimento pelo decrescimento
econômico parece-nos uma saída para muitos dos problemas que apontamos
aqui. Não se trata de voltar ao tempo das cavernas, mas sim de parar
imediatamente com esse modelo de crescimento, de progresso e de
felicidade ancorado na sociedade de consumo. O crescimento pelo
crescimento é irracional. Precisamos descolonizar nossos pensamentos
construídos com base nessa irracionalidade para abrirmos a mente e
sairmos do torpor que nos impede de agir. Latouche diz: “A palavra de
ordem decrescimento tem como principal meta enfatizar fortemente o
abandono do objetivo do crescimento ilimitado, objetivo cujo motor não é
outro senão a busca do lucro por parte dos detentores do capital, com
consequências desastrosas para o meio ambiente e, portanto, para a
humanidade” (2009, p.4). A nova lógica que deverá ser construída é a de
que podemos ser felizes trabalhando e consumindo menos. Nesse projeto,
não faz sentido falar em desenvolvimento sustentável – mais um slogan da
moda que os capitalistas inventaram. Falar em ecoeficiência é continuar
na “diplomacia verbal”.
O assunto não
se esgota aqui, obviamente, mas é fundamental desvelar o princípio da
obsolescência planejada para que possamos renovar nossas utopias de um
mundo onde a natureza seja preservada, onde haja mais presença e menos
presente, mais laços humanos e menos bens de consumo.
Valquíria Padilha
Professora de Sociologia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP/USP) e autora de Shopping center: a catedral das mercadorias (Boitempo, 2006).
Renata Cristina A. Bonifácio
Graduada em Administração de Empresas pela FEA-RP/USP.
1 Disponível em: .
Referências bibliográficas
BAUMAN, Z. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
HAUG, W. F. Crítica da estética da mercadoria. São Paulo: Editora Unesp, 1997.
LATOUCHE, S. Pequeno tratado do decrescimento sereno. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
LEONARD, A. A história das coisas. Da natureza ao lixo, o que acontece com tudo que consumimos. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
MAGERA, M. Os caminhos do lixo. Campinas (SP): Átomo, 2012.
MÉSZÁROS, I. Produção destrutiva e o estado capitalista. São Paulo: Ensaio, 1989.
PACKARD, V. Estratégia do desperdício. São Paulo: Ibrasa, 1965.
SLADE, G. Made
to break: technology and obsolescence in America [Feito para quebrar:
tecnologia e obsolescência nos Estados Unidos]. Harvard University
Press, 2006
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