O DIA EM QUE FIZ UM CAFÉ PARA ALLENDE
(SEGUIDO DE VERSIóN EN ESPAñOL UN CAFECITO PARA ALLENDE)
Eu estava lá, em janeiro de 1970, lá na avenida Bulnes, em Santiago de Chile, lá no meio da multidão, no comício da Unidad Popular, quando
o senador Salvador Allende, do Partido Socialista, foi proclamado o
candidato das esquerdas. No palanque, ao fundo, gigantesco painel branco
sobre o qual uns trinta artistas plásticos pintaram ali, na hora,
coletivamente, um mural colorido. Apenas dois oradores: Pablo Neruda, do
Partido Comunista, que em breve discurso renunciou a sua
pré-candidatura e em seguida Allende que falou já como candidato. O
resto foi festa.
Com
alguns brasileiros exilados, entre eles o titiriteiro Euclides Souza, o
Dadá, que hoje mora em Curitiba, e o jornalista Tarcisio Lage que virou
holandês, eu estava lá, eu e os meus 22 anos. Entoamos com a multidão: Se siente, se siente, Allende presidente! Ouvimos as palavras de ordem: Jota, Jota, Ce Ce: Juventudes Comunistas de Chile! Crianças cantavam em jogral: Pica el ajo, pica el ají, sale Allende, claro que sí! Cantores
e grupos musicais alegravam a festa: Isabel e Ángel Parra, Victor Jara,
Quilapayún, Intillimani e outros menos conhecidos.
A
avenida Bulnes fervilhava como um formigueiro humano, da Alameda até o
Parque Almagro, com gente pendurada nos galhos das árvores para ver
melhor o palanque. Bandeiras, cartazes, faixas. As pessoas, em pequenas
rodas, bailavam cueca e refalosa, rodopiando e girando
graciosamente um lenço na mão. Cantavam e festejavam o sonho de
construir uma pátria sem injustiça, sem miséria, sem exploração. Os
chilenos estavam enamorados da vida. Nutriam esperanças. Transbordavam
alegria. Santiago era uma festa. Os exilados brasileiros estávamos
ébrios de civismo (e do bom vinho chileno).
El cafecito
A
campanha eleitoral durou uns oito meses. Acompanhei parte dela de um
lugar privilegiado, ao lado do poeta Thiago de Mello, que até o golpe
militar de 1964 havia sido adido cultural do Brasil no Chile, onde
escreveu o Estatuto do Homem e conquistou a amizade de
intelectuais e artistas chilenos, entre eles Neruda, Violeta Parra,
Allende, o pintor Nemesio Antúnez - diretor do Museu Nacional de Belas
Artes, Isidora Aguirre - dramaturga e autora de La Pérgola de las flores, a atriz Inés Moreno e tantos outros intelectuais.
Os
chilenos, solidários, acolheram Thiago com carinho em seu exílio.
Isabel, uma das filhas de Allende - hoje senadora por Atacama - que
estava de férias em Valparaíso, cedeu seu apartamento de Santiago, em
uma torre no bairro La Providencia, para Thiago e Lurdinha que me
haviam perfilhado. Naquele verão, morei com eles dois meses. Num
domingo à tarde, acho que em fevereiro, toca a campainha. Abro a porta e
tomo um susto: diante de mim, em carne e osso, Salvador Allende,
acompanhado de Inés Moreno.
Eu, ali, em pé, diante dos dois, na soleira da porta. Allende - "El pije" - porte elegante, vestia sua tradicional guayabera branca
de linho, manga comprida, com discreto bordado nos quatro bolsos. Inés
Moreno, atriz e poeta, já era minha conhecida, pois residia no mesmo
prédio, em outro andar, e frequentava os saraus da casa de Thiago. Era
uma bela mulher, magra e espigada, aparentando uns quarenta e poucos
anos. Vinham visitar Thiago. Informei que o poeta tinha ido passar o fim
de semana em Viña del Mar. Eu estava sozinho. E de tão espantado, nem sabia como agir.
Allende
em pé, na porta, e eu paralisado diante dele, bloqueando sua passagem.
Foi quando com fino humor, me perguntou se podia entrar na casa de sua
filha. Estava em plena campanha e havia decidido tirar uma folga naquela
tarde. Entraram. Conversamos sobre política, Chile, Brasil, literatura,
música e amenidades. Ele conhecia a bossa-nova e gostava de João
Gilberto. No meio da conversa, com um toque de ironia, perguntou:
- No hay café en casa de brasileño?
Com o maior prazer, passei, então, um café, al tirito, nomás,
como minha mãe me ensinou: jogando o pó dentro da água fervendo para
imediatamente coar num filtro de papel na falta de coador de pano. Tomamos
café os três, eu ali, de quase-penetra, intrometido num pedaço da
História, pegando uma carona naquele momento singular, olhos bem
abertos, apreendendo tudo e dando gracias a la vida por me haver dado tanto.
Chirimoya alegre
Inés recitou algo tocando violão, talvez um poema retirado do seu livro Mi mano en tu mano,do
qual não consigo me lembrar. Eu já conhecia seu talento de declamadora,
sua voz aveludada. Na primeira vez em que a ouvi, num jantar oferecido
por Thiago, ambos recitaram juntos, alternando vozes, o Romancero Gitano de Garcia Lorca. Um espetáculo! Naquela sala, cabia toda a Andaluzia. Irromperam os dois rios de Granada que "bajan de la nieve al trigo", o Guadalquivir "con sus barbas granates", as meninas mirando a lua, os gitanos, a guarda civil, os carabineiros com "sus negras capas ceñidas" e até o cadáver de Antoñito el Camborio.
"Ay, amor, que se fue por el aire!" A
tarde acabou, despedimo-nos de Inés que subiu para seu apartamento. Com
um gesto inesperado, Allende retribuiu o café me convidando a tomar
sorvete. Ele próprio dirigiu o carro, comigo no banco do carona, até uma
sorveteria da moda, no sopé da Cordilheira dos Andes, em Las Condes. Em
poucos meses, seria o presidente da República e três anos depois
morreria no Palácio La Moneda, resistindo ao golpe. Agora, estava ali, sem qualquer segurança, nem mesmo um motorista.
Ocupamos uma mesa. Saboreamos sorvete de ‘chirimoya alegre’, o que me permitiu matar as saudades do Amazonas. A chirimoya é
irmã do nosso biribá e prima da graviola. Fica alegre quando sua polpa é
misturada com suco de laranja, um pouco de passas e nozes. Alegres
também estavam as pessoas que vinham até a mesa abraçar Allende, embora Las Condes e o vizinho Vitacura fossem bairros de ricos, sede de embaixadas com luxuosas mansões. Aos que conheciam o poeta, ele me apresentava: “Un brasileño, amigo de Thiago”.
Eu
estava ali como Pilatos no Credo, mas consciente de estar vivendo
aquele momento ao lado de um homem bom, límpido, decente, de tanta
importância para a história dos povos humildes de nossa América. No
início de setembro, Allende era eleito e dois meses depois assumia a
presidência. O resto nós já sabemos.
Si vas para Chile
Dizem
que o moribundo, na hora da verdade, recorda momentos vitais de sua
existência. Suspeito que quando chegar minha vez, cenas que vivi no
Chile ocuparão boa parte do filme. Minha estadia durou menos de um ano,
mas foi um momento histórico muito intenso. Nos anos 1960-70, milhares
de brasileiros saíram do Brasil, muitos foram recebidos fraternalmente
pelos chilenos que compartilharam conosco casa, pão, vinho, música,
poesia, alegria, sonhos. Como foram generosos esses chilenos! Dormi em
casas de desconhecidos, que me acolheram como um parente querido.
Quando
finalmente deixei o Chile, na despedida Inés Moreno rasgou no meio um
bilhete de 1 (um) escudo chileno, que tinha no centro a figura de Arturo
Prat, um herói naval do século XIX. Ela ficou com a parte que continha o
Arturo e me deu a outra metade. Se alguém a procurasse com o Prat na
mão, significava que ia enviado por mim. Era mais um gesto de
solidariedade, de proteção, muito mais simbólico que prático.
Passei
pelo Chile vinte e cinco anos depois, em meados dos anos 90, quando
Thiago lá estava de volta como adido cultural e organizou um encontro
com Inés. Encontrei Inés, mas o Arturo não encontrou Prat, ambos
havíamos perdido nossas metades (o escudo já nem era mais a moeda do
Chile).
Tudo
isso lembrei agora nesta semana, ao acompanhar a cobertura da mídia
brasileira e internacional sobre a rememoração dos 40 anos do golpe
militar, quando Allende foi homenageado como merece. Com o coração na
mão, li o artigo La sombra de Inés Moreno escrito em 2003 pelo jornalista Luis Alberto Mansilla na revista Punto Final, noticiando a morte da atriz:
- Nos
últimos dias, ela já não podia falar. Comunicava-se escrevendo em
pedaços de papel que entregava às suas filhas. Um deles era uma citação
de Borges, que expressava suas últimas percepções: "toda pessoa que
viveu projeta uma sombra que nunca acaba".
Deixo aqui e no Diário do Amazonas a sombra de Salvador Allende e de Inés Moreno, com aroma de café e sabor de chirimoya alegre. “Si vas para Chile, te ruego viajero, que digas a ella, que de amor me muero”.
Versão em espanhol: EL DIA EN QUE LE SERVÍ UN CAFECITO A ALLENDE
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José Ribamar Bessa Freire: Doutor em Letras
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2003). É professor da
Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de mestrado e doutorado, e professor
da UERJ, onde coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas da Faculdade
de Educação. Ministra cursos de formação de professores indígenas em diferentes
regiões do Brasil, assessorando a produção de material didático. Assina coluna
no Diário do Amazonas e mantém
o blog Taqui Pra Ti . Colabora
com esta nosssa Agência Assaz Atroz.
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