Por mais que possa parecer estranho aos espiões, muitas pessoas comuns que não são espias nem estão envolvidas em atividades ilegais ficaram surpreendidas por saber que a sua privacidade foi amplamente invadida, e não gostaram da experiência.
O que tem feito a NSA é o que se chama de mining metadata. Trata-se de fazer com que os serviços que transmitem e-mails e chamadas telefónicas entreguem à NSA todos e quaisquer registos que possuam para que a agência analise os “padrões” que supostamente revelariam atividade “terrorista” real ou potencial.
Supostamente, o elemento inicial que suscitaria a suspeita seria alguma comunicação entre alguém fora dos Estados Unidos e uma pessoa dentro deste país. Contudo, este critério depois foi alargado para incluir todas as comunicações entre a pessoa no interior dos Estados Unidos e todas as outras. E logo incluiu todas as comunicações entre estes “outros” e os outros com quem se comunicam. Chegados a este ponto, estamos já a falar de uma rede que inclui virtualmente toda a população dos Estados Unidos.
A justificação legal para esta atividade é a secção 215 do Patriot Act, que permite ao FBI pedir uma autorização para produzir “resultados tangíveis”, no sentido de proteger contra o “terrorismo internacional”. A autorização é adjudicada (sempre com sucesso) pelo Tribunal FISA (Foreign Intelligence Surveillance, Vigilância de Espionagem Externa). Os critérios de julgamento e os argumentos usados pelo governo diante do Tribunal são secretos. Foi esta hoje extensa atividade que revelou Edward Snowden, e que causou todo o escândalo. Para alguns, as revelações foram uma surpresa completa. Para outros, apenas confirmaram o que há muito se suspeitava. Para o governo, foram um grande embaraço.
Houve três principais reações às revelações. A primeira foi a do governo dos EUA. Enquanto o presidente Barack Obama afirmava que o debate sobre estas questões era desejável, e prometia algum aumento de “transparência” no processo de decisão, também processava Snowden da forma mais dura possível, procurando trazê-lo para um tribunal norte-americano para ser julgado e severamente punido.
A segunda grande reação foi a de outros governos pelo mundo afora, que descobriram que eram um objeto ativo da espionagem dos EUA (algo que evidentemente já sabiam). Ao mesmo tempo, as revelações de Bradley Manning e de Edward Snowden juntas também revelaram o grau de cooperação entre os governos da Europa ocidental e do Japão com as operações da NSA.
Mas a mais interessante reação ocorreu no Congresso dos EUA. Até então, a oposição a essas atividades pelos deputados fora bastante marginal. Subitamente, tornou-se de larga escala. Dois membros da Câmara de Representantes, Justin Amash e John Conyers, juntaram forças para propor uma medida que teria restringido a “coleta indiscriminada” destes registos.
Há duas coisas a assinalar acerca da emenda Amash-Conyers. Justin Amash é um republicano de extrema-direita, um chamado republicano libertário. John Conyers é um proeminente e veterano membro da ala “progressista” (ou “esquerda”) do Partido Democrata. A segunda coisa a notar é que foram confrontados por outra dupla inusitada – o presidente Obama e o presidente da Câmara de Representantes, John Boehner.
Era o “establishment” contra os “extremos”. A votação foi 205 a favor (94 republicanos e 111 democratas) e 217 contra ( 134 republicanos e 83 democratas) com 12 abstenções.
A derrota da emenda só foi garantida através de um lóbi mais intenso de Obama e Boehner. Além disso, e mais importante, o próprio autor da Secção 215, o deputado James Sensenbrenner (republicano do Wisconsin), denunciou asperamente o governo por não ter posto em prática a intenção do que ele escreveu. Disse que a menção aos registos “relevantes” tinha a intenção de limitar a autoridade do governo, não de ampliá-la. Também recordou ao “establishment” que a cláusula expira em 2015 e disse: “A menos que se considere que há um problema, ela não vai ser renovada”.
Como ficámos? O governo (seja democrata ou republicano) tentará suavizar a sua retórica em relação aos dissidentes, apesar de continuar a invadir a privacidade de toda a gente. Usarão (ou criarão) conspirações terroristas para justificá-lo. Mas as fugas de informação minaram a sua legitimidade e é isto que lhes dói, e é por isso que o governo está a ser tão vingativo com os responsáveis por essas fugas.
Será que alguma coia como a emenda Amash-Conyers será aprovada em breve? É difícil dizer, mas bastante possível. E se for aprovada, o que acontece? Bem, depende um pouco de quem estiver no poder. Será que Amash seria tão duro em relação a um putativo presidente Rand Paul? Possivelmente não. O que podemos dizer, não obstante, é que a legitimidade e a autoridade do governo dos EUA, internamente, erodiu-se gravemente. Quando se junta isto o grave e contínuo declínio da legitimidade e autoridade geoestratégica, os Estados Unidos começam a parecer um dos países menos estáveis no sistema-mundo, não um dos seus alicerces.
Immanuel Wallerstein
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