REF.: COMO FICA O JOGO POLÍTICO COM MARINA VICE DE CAMPOS
Nenhuma notícia poderia ser melhor para a esquerda em geral do que a aliança entre Marina Silva e Eduardo Campos. Esquerda já teve um sentido confuso. Hoje, tem um sentido claro. É de esquerda quem defende que o Estado deve ser fortalecido, de modo a fazer frente às forças de mercado quando necessário, e que deve promover políticas distributivas que aproximem as sociedades capitalistas dos pressupostos básicos da democracia - igualdade de oportunidades e igualdade (efetiva, e não apenas formal) perante a lei. Isto posto, repito - a aliança entre os dois é uma excelente notícia para toda a esquerda.
Em primeiro lugar, o PSDB e seus arredores ficam sitiados no espaço discursivo da direita. Estarão cada vez mais identificados à luta pela diminuição da carga tributária, pelo relaxamento dos direitos trabalhistas, pela segurança pública vista da ótica da classe média. Cada vez mais a direita irá se identificar com o discurso moralista que, associado a uma política banditizada pelas próprias regras do jogo atual, resulta na constante possibilidade de uma "virada de mesa" pela via do Judiciário. Cada vez mais seu programa estará voltado para um "desenvolvimentismo" baseado na crença de que a melhor coisa que o Estado tem a fazer é ficar a uma distância segura da competição selvagem entre os agentes econômicos, limitando-se a garantir uma arena institucional previsível onde os combates possam prosseguir sem peais. O discurso reformista do velho PSDB irá agonizar juntamente com o último de seus representantes - José Serra - paradoxalmente um dos principais artífices desse discurso tresloucado e truculento que tanto seduz o mesmíssimo tipo de pessoa que, quando Covas chegou ao poder, votava em Paulo Maluf.
Em segundo lugar, Marina Silva e Eduardo Campos colocarão o PT diante da necessidade de recuperar um discurso e uma prática capazes de entusiasmar suas bases. Acho sintomático que, exatamente quando esse acordo se firma, um político como Cândido Vaccarezza entre na linha de tiro das bases petistas. Vaccarezza, que estaria muito mais à vontade num partido como o PMDB, nomeando prepostos para lugares-chave na máquina do Estado, será uma presença incômoda num ambiente eleitoral que certamente terá como um de seus ingredientes a denúncia de uma certa indistinção ética entre tucanos e petistas. Como ele, muitos outros. Ou o PT encontra maneiras de neutralizá-los, diminuindo seu poder de influenciar os rumos do partido, ou partidos como o PSB terão chances cada vez maiores de substitui-lo na liderança da esquerda brasileira.
Finalmente, submetida a Eduardo Campos, Marina será forçada a deixar em segundo plano seu lado mais sombrio: a ameaça que ela encarna de uma instrumentalização religiosa do Estado no que diz respeito aos direitos das minorias. Ela continuará sendo quem é, e pensando aquilo que pensa. Será sempre uma força política contra o direito ao aborto, contra a integração pacífica da homossexualidade ao cotidiano, contra a eutanásia, contra a descriminalização das drogas. Tem uma visão rígida do que seja uma unidade familiar e coloca a promoção dessa unidade familiar (tal como ela a entende) no centro de suas preocupações políticas. Se pudesse, não hesitaria em usar o poder do Estado para reprimir tudo aquilo que possa liberar, no indivíduo, anseios de se contrapor a essa ordem familiar tradicional. O problema do aborto, para ela, não é de maneira alguma a "morte de um inocente" - ainda que ela possa dizer, pensar, e até achar sinceramente que acredita nisso. Racionalizações à parte, o problema central, para quem pensa como Marina Silva, é a manutenção do vínculo entre sexo, reprodução e casamento. É esse culto à ordem familiar tradicional que dá formato definido ao discurso que defende a repressão policial às drogas, que tolera o homossexualismo ('fazer o quê?") como se tolera uma doença para a qual infelizmente ainda não temos cura, que desconfia dos efeitos disruptivos que poderia ter sobre a sociedade humana um enfrentamento mais tranquilo e racional da morte. Marina Silva é de esquerda, sem dúvida, na acepção fixada acima. Mas é profundamente conservadora, apesar de tudo o que possa dizer, pensar ou acreditar com a mais absoluta sinceridade. Eu votaria em Paulo Maluf, se fosse o caso. Em Marina Silva, jamais.
Submetida a Eduardo Campos, no entanto, fica por assim dizer neutralizado esse seu lado que afasta dela pessoas que pensam como eu. O mínimo denominador dos dois é claramente progressista, e será capaz de introduzir no debate político uma exigência de explicitação absolutamente saudável. Os tucanos podem continuar xingando os petistas de ladrões - já se resignaram a essa cretinice há um bom tempo. O diálogo entre o PSB e o PT será de outro tipo. Envolverá esse tipo de oportunismo, mas envolverá também um debate substantivo a respeito do alargamento dos limites da política distributiva levada a efeito por Lula e por Dilma.
Submetida a Aécio, teríamos o pior dos mundos. O pior lado de Marina ganharia proeminência, e o pior lado dos tucanos (essa cegueira incurável à dimensão PRESENTE da tragédia social brasileira) seria legitimado pelos tons esquerdizantes que Marina daria ao discurso da oposição. Ao discurso, bem entendido. No poder, sua influência sobre a área econômica seria tão grande como a de minha tia Wanda. É importante que o PT mantenha Marina Silva e Eduardo Campos num horizonte de entendimentos possíveis. Que as pontes não sejam dinamitadas. Num segundo turno contra Aécio, o apoio de ambos pode ser decisivo. Pode haver também um segundo turno entre o PSB e o PT, com Aécio e sua tropa de choque vergonhosamente derrotados. Mas isso é o melhor dos mundos. Se vier, a continuidade das políticas sociais estará garantida, e é isso o que, do meu ponto de vista, realmente interessa.
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