JEAN-CLAUDE JUNCKER | Presidente da Comissão Europeia
“Tsipras tem que contar aos gregos que não vai cumprir suas promessas”
Para Junker, Syriza e Podemos têm diagnóstico certo da crise, mas não a solução
Em algum momento nos últimos dois anos, depois de perder as eleições em Luxemburgo, Jean-Claude Juncker (Redange, 1954) flertou com a ideia de deixar a política e escrever suas memórias. Depois pensou que é melhor calar sobre as coisas que não se pode falar. “Seria preciso contar intimidades inconfessáveis.” Juncker deixou o projeto para voltar a seu habitat natural: ganhou as eleições europeias e, apesar das reticências de Berlim, dirige a Comissão Europeia que ele mesmo denomina como “a última oportunidade”, pela necessidade de eliminar definitivamente essa combinação de múltiplas crises condimentada com um formidável “eurodesencanto”. Continua calado sobre algumas coisas depois de várias décadas na primeira linha da política europeia, embora fora do microfone conte histórias suculentas totalmente impublicáveis. E nesta entrevista com o EL PAÍS oferece uma visão moderadamente otimista da Europa, embora se permite duvidar: elogia a Espanha pelas reformas, mas avisa que o mais honesto é dizer que a crise continuará existindo até que o desemprego diminua; concorda que Alexis Tsipras assumiu responsabilidades, mas afirma que ele ainda precisa explicar aos gregos que não vai cumprir certas promessas. Partidos como Syriza e Podemos, diz, têm um diagnóstico correto da situação e, no entanto, suas propostas levariam ao “bloqueio total” do projeto europeu.
A Europa continua sendo um lugar interessante e contraditório: um ex-vice-presidente do Goldman Sachs, Mario Draghi, desafia a ortodoxia da Alemanha. E um líder conservador de uma espécie de paraíso fiscal, Juncker, enfrenta as receitas de Berlim com uma dose de flexibilidade para as regras fiscais; ativa um plano de investimentos com inusitado contorcionismo financeiro, mas também com certo aroma pseudo-keynesiano; e promete acabar com as maracutaias das multinacionais com os impostos apesar de estar no centro do furacão pelos abusos de seu país. Entre o discurso estilo Churchill de sangue, suor e lágrimas que Merkel encarna e o I have a dream de Martin Luther King de Tsipras, Juncker procura uma via intermediária mais pragmática, menos próxima ao tom moralizante dos últimos (e muito alemães) tempos. Adverte contra a tentação do fracasso: lembra que algumas coisas só despertam uma lealdade apaixonada quando são perdidas. E lamenta que o pior da crise “seja o ressurgimento de velhos ressentimentos”.
Pergunta. Qual é o maior problema da Europa?
Resposta. O desencanto das pessoas com as instituições é um desafio, mas o maior problema é o desemprego. Com esses números altos de desemprego, especialmente da juventude, na Espanha, embora as coisas estejam melhorando, não podemos dizer às pessoas, nem a nós mesmos, que a crise acabou. O mais honesto é dizer que continuaremos com grandes dificuldades enquanto o desemprego não baixar para níveis normais. Estamos no meio da crise: isto ainda não terminou.
P. Surpreende esse realismo: a Espanha fez três reformas trabalhistas em cinco anos e a Comissão que você preside as apresenta como exemplo todos os dias, apesar de que o desemprego é de 23% e o desemprego da juventude supera 50%.
R. Minha impressão é que o Governo espanhol reformou a economia. Tomou decisões complicadas. Aprovou duras reformas estruturais, embora possamos discutir sua envergadura e ambição. Solucionou a crise bancária. E a recuperação está aí: talvez não tenha chegado ainda ao emprego, e isso pode dar a impressão equivocada aos espanhóis de que as coisas não estão indo na direção correta.
P. Ninguém coloca em dúvida as estatísticas, mas explique-as aos 5,5 milhões de desempregados.
R. As reformas estruturais demoram a dar resultados. Entendo a impaciência, os cidadãos exigem resultados imediatos. Mas é preciso dar tempo ao tempo.
P. Não houve já tempo suficiente para ver os resultados das políticas europeias? Já foram cinco anos de resgate na Grécia, por exemplo, e não parece que a situação esteja fácil para Tsipras.
R. Tsipras deu um passo fundamental; começou a assumir responsabilidades. Mas tem um problema: ainda terá que explicar que algumas das promessas com a quais ganhou as eleições não serão cumpridas. Tsipras tem o mérito de fazer as perguntas corretas. Mas nunca deu respostas. Se deu alguma resposta foi exclusivamente nacional, quando é evidente que sobre a Grécia e seu programa há 19 opiniões públicas que contam. As eleições não mudam os tratados: está claro que pode existir outras posturas sobre a crise grega; pode haver mais flexibilidade, mas a vitória de Tsipras não lhe dá o direito de mudar tudo. A foto grega é bastante colorida dependendo de quem olha, se são os alemães, os gregos, os portugueses ou os espanhóis.
P. O último acordo evitou uma sacudida nos mercados. E, no entanto, não é um desses chutes para a frente que você denunciava quando deixou a chefia do Eurogrupo?
O plano Juncker só começará em junho, mas já está em marcha a identificação de projetos. Espanha e França acabam de duplicar sua capacidade de interconexão – para permitir que a energia que não seja utilizada por um país possa ser vendida a outros –, mas ainda estão muito distantes do objetivo de 10% estabelecido pela UE. Os projetos em estudo são um cabo submarino de quase 400 quilômetros que uniria o golfo de Vizcaya e Aquitânia (França), com um custo de 1,9 bilhão de euros, e várias conexões nos Pireneus: Navarra-Bordéus (280 quilômetros), Sabiñánigo-Marsillon (quase 100 quilômetros) e Monzón-Cazaril (160 quilômetros), além do gasoduto Midcat, pela Catalunha.
A França, que nos últimos anos colocou travas a esse tipo de inciativa, agora está muito pressionada pelos Vinte e OIto, pela necessidade de reduzir a dependência russa depois do conflito com a Ucrânia.
R. A atmosfera está estranha. Muitos países têm a impressão de que a Grécia é uma história interminável, com dois programas que deverão ser três; os gregos têm a mesma sensação. As coisas melhoraram: o déficit público e o desemprego caíram, e a situação havia ficado mais fácil até as eleições. Mesmo assim, para um grego de 27 anos que não tenha encontrado trabalho, pouco importam as estatísticas: está preocupado porque não tem emprego. E isso, que vale para a Grécia e para a Espanha, não é tão fácil de mudar a curto prazo, nem sequer com reformas.
P. Tsipras foi eleito com uma mensagem antiausteridade, anti-troika, com a promessa de reestruturar a dívida. Teme que outros partidos, como o Podemos, agarrem essa bandeira?
R. Esse novo tipo de partido com frequência analisa a situação de forma realista, aponta os enormes desafios sociais com precisão. Mas se eles ganham as eleições são incapazes de cumprir suas promessas, de transformar seus programas em realidades. As propostas de alguns desses partidos não são compatíveis com as regras europeias: levariam a uma situação de total bloqueio.
P. “Morte à troika”, dizia um alto cargo da Comissão anterior. Chegou esse momento?
R. As pessoas descobrem agora que há anos estou falando que seria conveniente colocar um ponto final na troika. Em parte por um problema de dignidade: talvez não tenhamos sido suficientemente respeitosos.
P. É isso que diz Tsipras.
R. É diferente. Meu enfoque consiste em apontar que os países resgatados se sentavam para negociar com funcionários, não com a Comissão ou o Eurogrupo (instância que reúne ministros de Finanças e outras autoridades da zona do euro). Isso não era adequado. Há um segundo problema: quando lançamos um programa de ajuste é imprescindível uma avaliação do impacto social. Isso não foi feito, e hoje vemos que 25% dos gregos foram expulsos do sistema de previdência social. Devíamos prever esse tipo de consequências.
P. Além da Grécia, a Europa começa a mudar: mais flexibilidade fiscal, investimentos e um BCE mais ativo. Os EUA crescem o dobro e têm metade do desemprego, talvez porque tenham aplicado outras políticas. É muito tarde? Foram cometidos erros aqui?
R. Os EUA e a zona do euro não são comparáveis. Na Europa continuamos pensando que a consolidação fiscal e as reformas são importantes, mas está claro que só isso não é suficiente: é preciso investir para evitar que 23 milhões de europeus continuem sem empregos. Para isso criamos o plano de investimentos de 315 bilhões de euros (1,04 trilhão de reais). Os bancos públicos da Alemanha e da Espanha já se somaram ao projeto. Estamos em um bom caminho.
P. Mas descartam investir no capital de fundo. Só injetariam fundos na fase final dos projetos para seus respectivos países. Isso o decepciona?
R. Não concordo com seu ponto de vista. Quando a foto global do plano estiver pronta teremos mais contribuições. Mas, mesmo sem elas, o plano é como um poema: fala por si.
P. Você esteve entre os pais das atuais regras do euro, que nem impediram a crise, nem depois serviram para administrá-la bem. Não foram criadas para um mundo que não existe mais?
R. A Europa não é um Estado com um Governo e um Tesouro. Com o desenho atual da zona do euro, as regras são imprescindíveis para coordenar as políticas econômicas. O Pacto de Estabilidade já permite flexibilidade; a União Bancária é um salto adiante para evitar a incubação de outra crise financeira. A União Econômica e Monetária é um processo em contínua construção.
P. Por que no Sul temos a impressão de que a flexibilidade com as regras chega bem quando os problemas alcançam a França, como já ocorreu na década passada com a Alemanha?
R. Você confunde as datas: A Alemanha não seguiu ao pé da letra o pacto de 2003, e a reforma foi feita em 2005. Com relação à decisão de dar mais dois anos à França, vários países, inclusive os do Sul, criticaram essa medida. E, no entanto, não vejo grande entusiasmo na França, que está obrigada a modificar seu orçamento e cumprir seus compromissos. Dá para ter a impressão de que a França recebeu um presente, mas é um presente envenenado.
P. Como explica a um espanhol que depois de três reformas trabalhistas e uma de pensões, a Espanha obteve dois anos em 2013 para eliminar seu déficit e que a França obteve quatro anos desde então sem uma única reforma desse mesmo calibre?
R. A França não fez reformas suficientes, mas colocou em marcha esse processo. Reformou sua estrutura regional e aprovou a lei Macron, embora não tenha sido suficientemente ambiciosa. Paris enviou um documento de 47 páginas que deixa explícito como vai abordar as reformas. Sabe que precisa melhorar. E vai fazer isso.
P. Haverá multas?
R. Tenho certeza de que o Governo francês entendeu que as sanções são uma possibilidade.
P. O tradicional eixo franco-alemão parece coisa do passado. Qual sua opinião sobre o que Tony Judt denominava “o inquietante poder da Alemanha”?
R. A Grécia é o exemplo de que essa impressão de que a Alemanha lidera a Europa com mão de ferro não corresponde à realidade. Vários países foram mais severos que a Alemanha: Holanda, Finlândia, Eslováquia, os bálticos, Áustria. Nas últimas semanas, Espanha e Portugal foram muito exigentes em relação à Grécia.
P. Como foi evoluindo sua relação com Merkel? Sua Comissão quer ser mais política: isso inclui atuar como um contrapeso a Berlim?
R. Não estou interessado em desafiar Merkel ou algum outro primeiro-ministro. Minha relação com ela é excelente.
P. Um dos desafios de seu mandato é o referendo britânico sobre a participação do país na UE. Não se cansa de tantos apocalipses?
R. Minha experiência me diz que as revoluções nunca são anunciadas: as rupturas do status quo só têm êxito se chegarem de surpresa. Quero meditar sobre as propostas do Reino Unido. Eles têm suas linhas vermelhas e eu tenho as minhas: a livre circulação de pessoas é inegociável. Mas estou surpreso de que países do Sul, como a Espanha, ou os do Leste, com longas tradições de emigração, não tenham reagido com mais firmeza.
P. Que proposta a Comissão vai fazer sobre imigração?
R. Entendo a ênfase que alguns países colocam em lutar contra os abusos, mas a resposta é mudar a legislação nacional, não as regras europeias. Se hoje atacam a livre circulação, daqui a dois anos haverá ataques contra outras liberdades.
P. Esse tipo de proposta corre de forma paralela ao avanço do populismo. Mas os europeus se incomodam com outras coisas: a evasão fiscal, por exemplo. Você é a pessoa adequada para acabar com esse assunto depois do Luxleaks?
R. O problema de Luxemburgo é igual ao de muitos outros países. Mas o ecossistema mudou: vários sócios foram obrigados a fazer ajustes que minam seus Estados de Bem-Estar e não toleram mais esses comportamentos com os impostos. Os europeus não aceitam mais que as multinacionais, com ajuda de consultoras, evitem tão facilmente o pagamento de impostos. Quanto ao Luxleaks, em Luxemburgo as regras são claras, embora provavelmente não sejam corretas; não é o ministro de Finanças que toma essas decisões, mas a administração tributária. Sei que ninguém acredita, mas é assim.
P. A Europa tem problemas em casa (Grécia), em sua periferia (Rússia) e corre o risco de perder uma ou duas gerações de jovens pelo drama do desemprego. Vê os sintomas de esgotamento?
R. Vivemos em um mundo cada vez mais complicado e perigoso. A UE deu passos para melhorar sua governança, mas continua sendo difícil compartilhar soberania e superar forças nacionalistas desagregadoras: a crise fez com que aflorasse problemas que estavam sendo geridos há anos. Mas não vejo alternativa ao projeto europeu, a não ser as utopias regressivas apresentadas por alguns populismos demagógicos. Qual teria sido o cenário se os países não tivessem a mesma moeda? Teríamos uma resposta comum para uma Rússia que faz tudo que pode para nos dividir?
P. Sem uma recuperação digna desse nome é inevitável que saiam velhos diabos do armário. Que consequências terá a fratura Norte-Sul?
R. O mais triste dos três últimos anos é comprovar que continuam existindo velhos ressentimentos que achávamos que tinham desaparecido. Muitas das análises alemãs sobre a Grécia são inaceitáveis; muitas das reações gregas ao que a Alemanha decide são inaceitáveis. A recuperação não é apenas frágil: a integração europeia em conjunto está ameaçada. É uma flor delicada.
A Europa continua sendo um lugar interessante e contraditório: um ex-vice-presidente do Goldman Sachs, Mario Draghi, desafia a ortodoxia da Alemanha. E um líder conservador de uma espécie de paraíso fiscal, Juncker, enfrenta as receitas de Berlim com uma dose de flexibilidade para as regras fiscais; ativa um plano de investimentos com inusitado contorcionismo financeiro, mas também com certo aroma pseudo-keynesiano; e promete acabar com as maracutaias das multinacionais com os impostos apesar de estar no centro do furacão pelos abusos de seu país. Entre o discurso estilo Churchill de sangue, suor e lágrimas que Merkel encarna e o I have a dream de Martin Luther King de Tsipras, Juncker procura uma via intermediária mais pragmática, menos próxima ao tom moralizante dos últimos (e muito alemães) tempos. Adverte contra a tentação do fracasso: lembra que algumas coisas só despertam uma lealdade apaixonada quando são perdidas. E lamenta que o pior da crise “seja o ressurgimento de velhos ressentimentos”.
Pergunta. Qual é o maior problema da Europa?
Resposta. O desencanto das pessoas com as instituições é um desafio, mas o maior problema é o desemprego. Com esses números altos de desemprego, especialmente da juventude, na Espanha, embora as coisas estejam melhorando, não podemos dizer às pessoas, nem a nós mesmos, que a crise acabou. O mais honesto é dizer que continuaremos com grandes dificuldades enquanto o desemprego não baixar para níveis normais. Estamos no meio da crise: isto ainda não terminou.
P. Surpreende esse realismo: a Espanha fez três reformas trabalhistas em cinco anos e a Comissão que você preside as apresenta como exemplo todos os dias, apesar de que o desemprego é de 23% e o desemprego da juventude supera 50%.
R. Minha impressão é que o Governo espanhol reformou a economia. Tomou decisões complicadas. Aprovou duras reformas estruturais, embora possamos discutir sua envergadura e ambição. Solucionou a crise bancária. E a recuperação está aí: talvez não tenha chegado ainda ao emprego, e isso pode dar a impressão equivocada aos espanhóis de que as coisas não estão indo na direção correta.
P. Ninguém coloca em dúvida as estatísticas, mas explique-as aos 5,5 milhões de desempregados.
R. As reformas estruturais demoram a dar resultados. Entendo a impaciência, os cidadãos exigem resultados imediatos. Mas é preciso dar tempo ao tempo.
P. Não houve já tempo suficiente para ver os resultados das políticas europeias? Já foram cinco anos de resgate na Grécia, por exemplo, e não parece que a situação esteja fácil para Tsipras.
R. Tsipras deu um passo fundamental; começou a assumir responsabilidades. Mas tem um problema: ainda terá que explicar que algumas das promessas com a quais ganhou as eleições não serão cumpridas. Tsipras tem o mérito de fazer as perguntas corretas. Mas nunca deu respostas. Se deu alguma resposta foi exclusivamente nacional, quando é evidente que sobre a Grécia e seu programa há 19 opiniões públicas que contam. As eleições não mudam os tratados: está claro que pode existir outras posturas sobre a crise grega; pode haver mais flexibilidade, mas a vitória de Tsipras não lhe dá o direito de mudar tudo. A foto grega é bastante colorida dependendo de quem olha, se são os alemães, os gregos, os portugueses ou os espanhóis.
P. O último acordo evitou uma sacudida nos mercados. E, no entanto, não é um desses chutes para a frente que você denunciava quando deixou a chefia do Eurogrupo?
Reunião com Rajoy sobre energia
Reunião Espanha-França-Portugal com a mediação da Comissão Europeia para desencalhar de uma vez por todas as interconexões energéticas da Península Ibérica. O chefe de Governo, Mariano Rajoy, se reunirá hoje em Madri com o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker; o presidente francês, François Hollande, e o primeiro-ministro português, Pedro Passos Coelho, para analisar projetos de interconexões energéticas que podem ser financiados pela União Europeia. A essa mini-cúpula assistirão também o comissário europeu do setor, Miguel Arias Cañete, e o presidente do Banco Europeu de Investimentos (BEI), Werner Hoyer, chamado para desempenhar um papel importante no plano de investimentos, que pretende contribuir com 315 bilhões de euros em projetos atrativos para o setor privado.O plano Juncker só começará em junho, mas já está em marcha a identificação de projetos. Espanha e França acabam de duplicar sua capacidade de interconexão – para permitir que a energia que não seja utilizada por um país possa ser vendida a outros –, mas ainda estão muito distantes do objetivo de 10% estabelecido pela UE. Os projetos em estudo são um cabo submarino de quase 400 quilômetros que uniria o golfo de Vizcaya e Aquitânia (França), com um custo de 1,9 bilhão de euros, e várias conexões nos Pireneus: Navarra-Bordéus (280 quilômetros), Sabiñánigo-Marsillon (quase 100 quilômetros) e Monzón-Cazaril (160 quilômetros), além do gasoduto Midcat, pela Catalunha.
A França, que nos últimos anos colocou travas a esse tipo de inciativa, agora está muito pressionada pelos Vinte e OIto, pela necessidade de reduzir a dependência russa depois do conflito com a Ucrânia.
P. Tsipras foi eleito com uma mensagem antiausteridade, anti-troika, com a promessa de reestruturar a dívida. Teme que outros partidos, como o Podemos, agarrem essa bandeira?
R. Esse novo tipo de partido com frequência analisa a situação de forma realista, aponta os enormes desafios sociais com precisão. Mas se eles ganham as eleições são incapazes de cumprir suas promessas, de transformar seus programas em realidades. As propostas de alguns desses partidos não são compatíveis com as regras europeias: levariam a uma situação de total bloqueio.
P. “Morte à troika”, dizia um alto cargo da Comissão anterior. Chegou esse momento?
R. As pessoas descobrem agora que há anos estou falando que seria conveniente colocar um ponto final na troika. Em parte por um problema de dignidade: talvez não tenhamos sido suficientemente respeitosos.
P. É isso que diz Tsipras.
R. É diferente. Meu enfoque consiste em apontar que os países resgatados se sentavam para negociar com funcionários, não com a Comissão ou o Eurogrupo (instância que reúne ministros de Finanças e outras autoridades da zona do euro). Isso não era adequado. Há um segundo problema: quando lançamos um programa de ajuste é imprescindível uma avaliação do impacto social. Isso não foi feito, e hoje vemos que 25% dos gregos foram expulsos do sistema de previdência social. Devíamos prever esse tipo de consequências.
P. Além da Grécia, a Europa começa a mudar: mais flexibilidade fiscal, investimentos e um BCE mais ativo. Os EUA crescem o dobro e têm metade do desemprego, talvez porque tenham aplicado outras políticas. É muito tarde? Foram cometidos erros aqui?
R. Os EUA e a zona do euro não são comparáveis. Na Europa continuamos pensando que a consolidação fiscal e as reformas são importantes, mas está claro que só isso não é suficiente: é preciso investir para evitar que 23 milhões de europeus continuem sem empregos. Para isso criamos o plano de investimentos de 315 bilhões de euros (1,04 trilhão de reais). Os bancos públicos da Alemanha e da Espanha já se somaram ao projeto. Estamos em um bom caminho.
P. Mas descartam investir no capital de fundo. Só injetariam fundos na fase final dos projetos para seus respectivos países. Isso o decepciona?
R. Não concordo com seu ponto de vista. Quando a foto global do plano estiver pronta teremos mais contribuições. Mas, mesmo sem elas, o plano é como um poema: fala por si.
P. Você esteve entre os pais das atuais regras do euro, que nem impediram a crise, nem depois serviram para administrá-la bem. Não foram criadas para um mundo que não existe mais?
R. A Europa não é um Estado com um Governo e um Tesouro. Com o desenho atual da zona do euro, as regras são imprescindíveis para coordenar as políticas econômicas. O Pacto de Estabilidade já permite flexibilidade; a União Bancária é um salto adiante para evitar a incubação de outra crise financeira. A União Econômica e Monetária é um processo em contínua construção.
P. Por que no Sul temos a impressão de que a flexibilidade com as regras chega bem quando os problemas alcançam a França, como já ocorreu na década passada com a Alemanha?
R. Você confunde as datas: A Alemanha não seguiu ao pé da letra o pacto de 2003, e a reforma foi feita em 2005. Com relação à decisão de dar mais dois anos à França, vários países, inclusive os do Sul, criticaram essa medida. E, no entanto, não vejo grande entusiasmo na França, que está obrigada a modificar seu orçamento e cumprir seus compromissos. Dá para ter a impressão de que a França recebeu um presente, mas é um presente envenenado.
P. Como explica a um espanhol que depois de três reformas trabalhistas e uma de pensões, a Espanha obteve dois anos em 2013 para eliminar seu déficit e que a França obteve quatro anos desde então sem uma única reforma desse mesmo calibre?
R. A França não fez reformas suficientes, mas colocou em marcha esse processo. Reformou sua estrutura regional e aprovou a lei Macron, embora não tenha sido suficientemente ambiciosa. Paris enviou um documento de 47 páginas que deixa explícito como vai abordar as reformas. Sabe que precisa melhorar. E vai fazer isso.
P. Haverá multas?
R. Tenho certeza de que o Governo francês entendeu que as sanções são uma possibilidade.
P. O tradicional eixo franco-alemão parece coisa do passado. Qual sua opinião sobre o que Tony Judt denominava “o inquietante poder da Alemanha”?
R. A Grécia é o exemplo de que essa impressão de que a Alemanha lidera a Europa com mão de ferro não corresponde à realidade. Vários países foram mais severos que a Alemanha: Holanda, Finlândia, Eslováquia, os bálticos, Áustria. Nas últimas semanas, Espanha e Portugal foram muito exigentes em relação à Grécia.
P. Como foi evoluindo sua relação com Merkel? Sua Comissão quer ser mais política: isso inclui atuar como um contrapeso a Berlim?
R. Não estou interessado em desafiar Merkel ou algum outro primeiro-ministro. Minha relação com ela é excelente.
P. Um dos desafios de seu mandato é o referendo britânico sobre a participação do país na UE. Não se cansa de tantos apocalipses?
R. Minha experiência me diz que as revoluções nunca são anunciadas: as rupturas do status quo só têm êxito se chegarem de surpresa. Quero meditar sobre as propostas do Reino Unido. Eles têm suas linhas vermelhas e eu tenho as minhas: a livre circulação de pessoas é inegociável. Mas estou surpreso de que países do Sul, como a Espanha, ou os do Leste, com longas tradições de emigração, não tenham reagido com mais firmeza.
P. Que proposta a Comissão vai fazer sobre imigração?
R. Entendo a ênfase que alguns países colocam em lutar contra os abusos, mas a resposta é mudar a legislação nacional, não as regras europeias. Se hoje atacam a livre circulação, daqui a dois anos haverá ataques contra outras liberdades.
P. Esse tipo de proposta corre de forma paralela ao avanço do populismo. Mas os europeus se incomodam com outras coisas: a evasão fiscal, por exemplo. Você é a pessoa adequada para acabar com esse assunto depois do Luxleaks?
R. O problema de Luxemburgo é igual ao de muitos outros países. Mas o ecossistema mudou: vários sócios foram obrigados a fazer ajustes que minam seus Estados de Bem-Estar e não toleram mais esses comportamentos com os impostos. Os europeus não aceitam mais que as multinacionais, com ajuda de consultoras, evitem tão facilmente o pagamento de impostos. Quanto ao Luxleaks, em Luxemburgo as regras são claras, embora provavelmente não sejam corretas; não é o ministro de Finanças que toma essas decisões, mas a administração tributária. Sei que ninguém acredita, mas é assim.
P. A Europa tem problemas em casa (Grécia), em sua periferia (Rússia) e corre o risco de perder uma ou duas gerações de jovens pelo drama do desemprego. Vê os sintomas de esgotamento?
R. Vivemos em um mundo cada vez mais complicado e perigoso. A UE deu passos para melhorar sua governança, mas continua sendo difícil compartilhar soberania e superar forças nacionalistas desagregadoras: a crise fez com que aflorasse problemas que estavam sendo geridos há anos. Mas não vejo alternativa ao projeto europeu, a não ser as utopias regressivas apresentadas por alguns populismos demagógicos. Qual teria sido o cenário se os países não tivessem a mesma moeda? Teríamos uma resposta comum para uma Rússia que faz tudo que pode para nos dividir?
P. Sem uma recuperação digna desse nome é inevitável que saiam velhos diabos do armário. Que consequências terá a fratura Norte-Sul?
R. O mais triste dos três últimos anos é comprovar que continuam existindo velhos ressentimentos que achávamos que tinham desaparecido. Muitas das análises alemãs sobre a Grécia são inaceitáveis; muitas das reações gregas ao que a Alemanha decide são inaceitáveis. A recuperação não é apenas frágil: a integração europeia em conjunto está ameaçada. É uma flor delicada.
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