Vazamentos, delações e conversa mole, por Alberto Dines
Jornalismo investigativo só vale com independência
No Observatório da Imprensa
Os fados brindaram os organizadores do 10º Congresso da ABRAJI com uma preciosa e impagável agenda para discutir o estado da arte do gênero. Há uma semana, tanto a mídia dita ‘tradicional” como a recém-nascida, dita digital, só tratam do teor da delação do empreiteiro Ricardo Pessoa, dono da UTC, à força-tarefa da Operação Lava Jato.
Nenhum jornal ou jornalista, dito investigativo ou apenas curioso, preguiçoso ou inconformado, com ou sem “aquilo” roxo, golpista ou antigolpista teve a coragem moral para arguir os responsáveis por um vazamento claramente seletivo, manipulado e, sobretudo, indevido. Este é um dado fundamental para avaliar as mazelas da mídia do século XXI que se alimenta exclusivamente com o que considera fato e factual, sem qualquer apego pelos métodos empregados para obtê-los.
A delação premiada é um recurso processual legítimo desde que respeitada a contrapartida — o rigoroso sigilo dos depoimentos pelas autoridades até a conclusão do devido processo. Publicar a delação — no todo ou em parte — antes do encerramento do caso é uma violação capaz de comprometer as investigações complementares, colocar vidas em risco, confundir a opinião pública e embaralhar o próprio juízo dos magistrados. (A presidente Dilma Rousseff confundiu o processo legal de delação com o denunciador de heresias, o malsim, adjetivo espanhol oriundo do hebraico (malxim) para designar os informantes pagos pela Inquisição para incriminar inocentes).
A mídia vibrou com o festim oferecido graciosamente pelo generoso empreiteiro. Sem gastar um níquel, sem convocar uma única estrela do elenco dos “investigativos”, os donos da informação encheram páginas e mais páginas com fatos quentíssimos, tórridos, embora ainda não picantes.
A imprensa gasta fortunas para exibir uma suposta credibilidade, mas não tem a hombridade para questionar os responsáveis pelos vazamentos que tanto aproveitam. Com vinte linhas firmes, sem arrogância ou prepotência a grande mídia mostraria um mínimo de dignidade e responsabilidade social.
Seu grande receio é ser levada a sério e assim convencer as autoridades para fechar as torneiras frouxas e jamais violar o segredo de justiça. Em outras palavras: os grandes grupos jornalísticos não confiam no seu dream-team investigativo porque no universo midiático brasileiro sem vazamentos e infrações não há avanços nem revelações.
A cobrança da transparência
Prova: quantos “furos” autênticos – e não primícias de vazamentos – foram obtidos pela reportagem da grande mídia em investigações paralelas desde o início da Operação Lava Jato há cerca de um ano?
Sem a ajuda de autoridades boquirrotas, fascinadas pelos holofotes ou simplesmente engajadas no jogo de poder nossos escândalos ainda estariam escandalosamente guardados nos armários. Não esqueçamos que o Mensalão iniciou-se com o misterioso vídeo de um flagrante de pagamento de propina a um diretor dos Correios entregue nas redações de “Veja” e TV Globo e por elas divulgado. Seus produtores permanecem até hoje mais ou menos incógnitos, porém certamente alheios à profissão jornalística.
Talentos não faltam, consciência e decência, idem. O que falta em nossas redações é independência. Nossos jornalões morrem de medo de treinar equipes autônomas de investigativos altamente capacitados e capazes de levantar inconveniências impróprias para publicação. O sonho de domesticar repórteres investigativos é diabólico e felizmente inalcançável. Melhor não correr riscos.
Transparência cobra-se, exige-se. Não é atributo para ser assumido. Pelo menos neste país do faz-de-conta, onde se reclamam contas apenas de adversários.
Esse é um tópico que nenhum dos nove congressos anteriores da ABRAJI ousou pautar. Convém não esquecer que a nobre entidade foi criada, mantida e financiada pela ANJ, Associação Nacional de Jornais. Qual o mal, qual o perigo desta associação?
Com os recursos investidos no evento da ABRAJI (incluídas as despesas com publicidade) cada um dos grandes jornais poderia ter mantido alguns veteranos repórteres dizimados em recentes degolas.
Os mentores da ANJ não pretendiam criar um pool de repórteres investigativos para devassar os desvãos da sociedade e acabar com a impunidade. Queriam uma entidade, um grupo de pressão para falar em nome dos profissionais de imprensa já que qualquer tipo de jornalismo é essencialmente investigativo.
Se Fernando Rodrigues, o criador da ABRAJI, continuasse no quadro de funcionários da “Folha”, o jornal estaria obrigado a divulgar as investigações que eventualmente contrariassem seus interesses. Preferiu demiti-lo depois de três décadas de brilhantes serviços e deixá-lo em seu blog. Com isso se desobriga de publicar todas as suas denúncias, como aconteceu recentemente quando seu ex-colunista revelou o impressionante volume de recursos pagos pelo Governo ao Grupo Globo (supostamente de oposição). A “Folha” enrustiu a informação já que não pode incomodar o seu sócio no “Valor Econômico”.
As singularidades do jornalismo investigativo brasileiro merecem muitos conclaves. A única dificuldade situa-se na impossibilidade de conciliar investigação com submissão, controvérsia com controle.
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