A declaração de independência de Kosovo, província da Sérvia, foi apoiada pelos Estados Unidos e pela União Européia e o Conselho da ONU nada fez para impedí-la. Tal reconhecimento tem um motivo especial, já que abre um precedente perigoso que fortalece movimentos separatistas como o que está agora ocorrendo na Bolívia. Os Estados Unidos e a União Européia tiveram bens nacionalizados pelo novo governo boliviano e estão torcendo pela secessão dos ricos departamentos petrolíferos da Bolívia. Existem informações a respeito da existência de um exército de mercenários (fala-se em 10.000 homens), financiados, armados e treinados pela CIA.
O site Cidadania, do Eduardo Guimarães, apresenta uma matéria sobre a Bolívia que copiamos para o nosso blog.
A batalha da "Media Luna"
No próximo dia 17, farei nova viagem ao exterior, depois da impressionante experiência que tive em Angola durante o mês de fevereiro deste ano, quando conheci uma realidade que chega a parecer fictícia em pleno século XXI. Meu próximo destino é a Bolívia, país que, apesar da omissão da mídia brasileira, que pouco ou nada vem noticiando sobre ele, está atravessando uma crise política e institucional extremamente grave. No próximo domingo, dia 4 de maio, será realizado um plebiscito convocado pelo governo de Santa Cruz de la Sierra. A consulta popular será realizada à revelia do governo central da Bolívia, presidido pelo índio Evo Morales, e constitui, a rigor, uma proposta separatista engendrada pela oposição boliviana. Especula-se que pode haver violência, pois a convocação do plebiscito e seu teor são inconstitucionais, constituindo um verdadeiro ato de sedição. É como se Rio, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul pretendessem se separar do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste do Brasil. No entanto, a mídia brasileira praticamente ignora a possibilidade de um grave confronto no país vizinho, a possibilidade de haver uma guerra civil na região boliviana conhecida como "Media Luna". Como conhecedor da realidade boliviana, cumpre-me suprir a carência do noticiário nacional escrevendo este texto. O que você lerá a seguir sobre a realidade política, social e institucional da Bolívia, não me foi contado por ninguém, é fruto de constatações que fiz nas viagens de negócios que venho empreendendo àquele país - pelo menos duas por ano - desde 1996. A elite, a mídia e o grande empresariado bolivianos estão tentando reproduzir o que seus congêneres venezuelanos vêm fazendo há anos na Venezuela, ou seja, estão tentando derrubar ou, na melhor das hipóteses, paralisar um governo democraticamente eleito e que apenas tenta pôr fim à miséria de dar dó em que vivem índios que constituem a quase totalidade da população boliviana. Eis, a seguir, os fatos sobre a Bolívia que é preciso conhecer para bem entender sua realidade política, social, econômica e institucional. A Bolívia é o país mais pobre da América do Sul. Os índios quéchuas, aymarás e outros, mais uma boa parcela de mestiços, constituem cerca de 90% da população. Destes, outros 90% vivem, em grande parte, na pobreza, e a maior parte, na miséria. Um contingente expressivo dos índios bolivianos ganha cerca de um dólar por dia. A maior parte dos índios não tem rede de esgoto, educação minimamente aceitável e padece de doenças que desapareceram na maioria dos países de civilização média. A maioria indígena está concentrada em regiões contíguas à Cordilheira dos Andes, ou seja, La Paz, Sucre, Cochabamba, Oruro, Potosi. Os habitantes indígenas das cidades do Altiplano (da Cordilheira) são conhecidos como “collas”, e os da planície, da região conhecida como “Media Luna” (constituída por Santa Cruz de la Sierra, Pando, Tarija e Beni), são conhecidos como “cambas”. Há uma rivalidade crescente e explosiva entre “collas” e “cambas”. Eles se odeiam, ainda que muitos indígenas vivam na região da “Media Luna” segregados, sem direitos, oprimidos e odiados. Os “cambas” dividem-se entre uma minoria branca e rica, majoritariamente descendente dos conquistadores espanhóis que não se miscigenaram com os quéchuas, aymarás e outros, e os índios (“collas”) submissos, que formam um enorme exército de serviçais dos ricos da região de Santa Cruz. Os “cambas” índios e mestiços, em grande parte, votam e emulam os discursos de seus patrões, mas, muitas vezes, da boca para fora, como mostram os resultados das eleições mais recentes, nas quais os “cambas” índios e pobres dividiram-se no apoio a Evo Morales, perdendo por pouco para a elite. A grande mídia boliviana da "Media Luna" é formada pelos grandes canais de TV e pelo principal jornal da direita branca e rica. São as TVs Unitel, do grupo agropecuário Monastérios, Red Uno, do grupo de supermercados Kuljis, Sitel, da cervejaria dos Fernandez, Pat, do grupo dos Daher (distribuidores Sony na Bolívia) e o jornal El Dia. O fato é que a América Latina está submetida toda ao mesmo processo, no qual as elites dos países da região - todos transbordando de pobreza e desigualdade - tentam, valendo-se do controle que exercem sobre os meios de comunicação, impedir que as grandes massas mestiças, negras e índias, mantidas na ignorância, na pobreza extrema e vivendo em condições indignas, votem em causa própria, elegendo governos comprometidos com a promoção de distribuição de renda e de oportunidades. O que vemos fazer a mídia brasileira não chega a um décimo do que fazem as mídias de países nos quais foram eleitos governos dispostos a enfrentar as elites e suas mídias com maior decisão. São países como Bolívia, Venezuela, Equador etc, os quais venho visitando há mais de uma década. Porém, assim mesmo, posso garantir que o Brasil está trilhando o mesmo caminho que eles. Só que, devido a ser um país muito mais complexo e devido ao fato de que Lula parece ter optado por uma transformação mais lenta e contemporizadora, a mídia brasileira, por incrível que possa parecer, porta-se com maior comedimento do que suas congêneres de outros países latino-americanos. De volta à Bolívia. Quem chega a Santa Cruz e começa a assistir as grandes TVs locais, chega a ficar com medo. Nos programas em que os brancos ricos vertem sua baba reacionária contra Evo Morales, só se fala em “guerra civil”, “desobediência civil” e “autonomia”. O discurso que predomina na mídia dos “cambas” brancos e ricos dá a impressão de que o que ocorreu na Venezuela, por exemplo, ocorrerá na Bolívia em pouco tempo. O ódio da elite “cruceña”, no entanto, não nasceu com a chegada do índio Evo Morales ao poder. Os “cambas” brancos e ricos – que não passam de um punhado que não dá dez por cento dos bolivianos – odeiam os “collas” desde sempre. Horrorizam-se com seus trajes típicos – por exemplo, das mulheres gordinhas, baixinhas, de pele escura, que usam xales com motivos indígenas, saias compridas e rodadas e chapéus-coco -, com suas bocas desdentadas, com seus narizes aduncos... Enfim, gente “feia”, para os brancos ricos da região da rica “Media Luna”. Os "cambas" horrorizam-se ao ver o ministério de Evo Morales, majoritariamente composto por “collas despreparados”, no dizer da elite. O ódio deles tem raízes racistas. A chegada de um dos objetos de sua execração ao poder apenas exacerbou um ódio que já existia, porém embebido em mero desprezo. Mas há outros fatores para o ódio dos “cambas” brancos e ricos. Como alguns já devem ter adivinhado, é o dinheiro.
Evo seguiu o exemplo de Hugo Chávez, que passou a canalizar o dinheiro do petróleo que abunda em seu país para lograr feitos como extinguir o analfabetismo na Venezuela depois de décadas em que a elite branca de lá chegava a usar esse dinheiro até para importar água mineral de Miami, ou o exemplo de Lula, que despertou o ódio da elite brasileira ao adotar medidas que estão levando negros e índios às universidades e permitindo que famílias pobres se alimentem, vistam-se e vivam melhor graças a programas como o Bolsa Família. A elite boliviana já fez um plebiscito em dezembro de 2006 tentando uma certa “autonomia departamental”, que pedia autonomia econômica e administrativa de cada um dos nove Estados do país. Esse referendo foi proposto pelo presidente anterior a Morales, Carlos Mesa. A tal “autonomia” visava manter em Santa Cruz os recursos que Evo vem “torrando” com os “collas” em programas sociais. Os "collas" que, diga-se de passagem, somam, "apenas", três quartos da população da Bolívia. O resultado do primeiro plebiscito sobre "autonomia departamental", que foi realizado em toda Bolívia em dezembro de 2006, foi o de que a “autonomia” perdeu no cômputo geral dos votos da maioria dos bolivianos, mas venceu nas regiões da “Media Luna”.
No ano passado, a Bolívia instituiu uma Assembléia Nacional Constituinte na capital do país, que, ao contrário do que se pensa, não é La Paz e, sim, Sucre. La Paz é apenas a sede do governo boliviano. Essa assembléia tratou da questão da autonomia derrotada em plebiscito no ano anterior, coibindo absurdos como o de permitir que cada departamento (estado) tivesse uma espécie de “ministério de relações exteriores”.
Os “cambas” brancos e ricos da região da "Media Luna" não aceitaram o resultado do plebiscito de dezembro de 2006 nem a regulamentação da "autonomia departamental" pela assembléia constituinte.. Começaram a falar, ensandecidos, em “guerra civil” e em “desobediência civil”, o que seja, os governos da “Media Luna” não repassarem impostos ao governo central e desobedecerem suas determinações.
Para que se tenha uma idéia do surto alucinado que tomou conta dessa gente, os insurrectos da "Media Luna" chegaram a ir aos EUA para tentar falar com George Bush. Obviamente que não foram recebidos, pois não representavam o estado boliviano. Depois, foram à ONU, e também deram com a cara na porta. Contudo, o governo de Evo Morales diz que o embaixador americano na Bolívia tem se envolvido em conversas com os golpistas "cruceños" e que dinheiro americano tem aportado nos cofres da oposição.
A tal “guerra civil” que pretendem os “cambas” brancos e ricos, no entanto, não passa de balela. A elite da "Media Luna" é amplamente minoritária.
Aliás, se conseguissem provocar a tal guerra civil, seriam trucidados. As forças armadas bolivianas são compostas, obviamente, pelos odiados “collas” e não estão nem aí para os chiliques das madames “cambas”, como as que se congregaram em grupos parecidos com o do natimorto movimento "Cansei", no Brasil. O "Cansei" boliviano se intitulou com nomes heróicos como “Mujeres de Septiembre”, que, a exemplo de seu congênere brasileiro, realizou manifestações de meia dúzia de gatos pingados contra o governo. Quando eu chegar à conflagrada região da "Media Luna" no próximo dia 17, o plebiscito do próximo domingo já terá ocorrido e a Bolívia estará vivendo seus efeitos. Existe até a possibilidade de ter que adiar essa viagem, caso a situação política se agrave por lá.
Espero, no entanto, que o bom senso prevaleça, apesar de que conheço muito bem a realidade daquele país e sei que a elite boliviana, tal como a venezuelana, a argentina ou a brasileira, entre outras, não conhece limites em sua irracionalidade egoísta e golpista.
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