domingo, 20 de abril de 2008

Os direitos humanos de alguns - e dos outros.



Os direitos humanos de alguns – e dos outrosMauro Santayana
Ao visitar as Nações Unidas, em Nova York, o papa Bento XVI defendeu o direito de a organização internacional intervir em qualquer país, em defesa dos direitos humanos. Como a experiência ensina, os direitos humanos, que deveriam ser universais, são particulares. Eles são tanto mais respeitados quanto mais ativos e mais poderosos sejam os grupos que os reivindiquem, em sua própria proteção. Em nosso tempo, os direitos do homem têm sido os direitos dos vencedores.Na mesma sexta-feira em que o papa fazia seu discurso, a agência Reuters noticiava que o procurador Lawrence Morris, do tribunal a ser instalado em Guantánamo – base que os Estados Unidos ocupam pelo direito da força na ilha de Cuba – anunciou que o julgamento do militante Khalid Mohammed, ainda sem data marcada, será transmitido pela televisão. As convenções internacionais proíbem a divulgação de imagens de julgamentos, mas os Estados Unidos decidiram transmitir o de Khalid, em circuito interno de TV, para quatro instalações militares, de onde os familiares das vítimas de 11 de Setembro poderão acompanhá-lo. Khalid teria confessado a autoria dos atentados, sob tortura (simulação de afogamento), mas o governo Bush considera tal método de interrogatório legítimo e, of course, humano. Ao torturá-lo, a CIA exerceu o direito, "humano", de obter uma confissão que tem tanto valor quanto uma nota de 3 dólares.Na quarta-feira, depois de se encontrar com o papa, Bush declarou que havia visto Deus nos olhos do pontífice alemão. Deve ter sido o mesmo deus que o aconselhou a ir libertar o Iraque de Saddam Hussein, julgado e enforcado, com todos os seus "direitos" assegurados, como o mundo pôde ver, nas imagens chocantes do julgamento e da execução. Segundo o presidente, Deus lhe dissera: "Vai, George, libertar o Iraque".O papa não recomendou à ONU, de forma explícita, que enviasse tropas internacionais a Guantánamo e às prisões do Iraque e do Afeganistão, para a defesa dos direitos humanos dos detentos que ali se encontram, e cujo tratamento "humanitário" foi revelado ao mundo pelas imagens feitas por celulares dos próprios torturadores. Os "terroristas", entenda-se, não são humanos. Humanos são os que os torturam ou matam, como mataram o mineiro Jean Charles em Londres.A Igreja tem muito a dizer sobre a Inquisição, também entre nós. O jornal O Globo, em sua edição de 6 de abril de 1964, reproduziu algumas declarações do então arcebispo do Rio de Janeiro, dom Jaime Câmara. O cardeal, exultante com o golpe militar que derrubara Jango, pregou a punição exemplar dos "comunistas". Comunistas eram, no maniqueísmo daqueles dias, todos os que defendiam a legalidade democrática e as reformas de base. Disse dom Jaime que era preciso punir exemplarmente os "comunistas" brasileiros, porque a punição é um ato de misericórdia. O que ocorreu depois, todos sabemos. A punição pregada pelo pastor do Rio levou ao seqüestro, à tortura e à morte de pessoas como Stuart Angel, Rubens Paiva e Vladmir Herzog, sem falar nas dezenas de outros, entre eles comunistas de verdade, e que se opunham à luta armada. Mas levou também militantes católicos às masmorras – como ocorreu ao padre Lage, de Belo Horizonte, e aos frades dominicanos – nas quais, da mesma maneira, muitos foram torturados e alguns suicidados, como o operário Manuel Fiel Filho.Quando o papa silencia publicamente sobre as torturas cometidas pela CIA contra prisioneiros muçulmanos – e se refere ao assunto de longe, e com todos os eufemismos – mostra claramente que há humanos com mais direitos e humanos com menos direitos. É de se perguntar se a ONU, a seu conselho, está disposta a exercer mais do que intervenção jurídica contra Israel, no caso da Palestina. Israel ignorou e continua ignorando todas as resoluções da ONU sobre o assunto. Mas os humanos de Israel são, como se vê, diferentes dos humanos da Palestina.Tal como seu antecessor – que negociou com Reagan, no Vaticano, a operação de apoio ao Solidarinost da Polônia, com especialistas da CIA e o financiamento do Banco Ambrosiano – Bento XVI é americanófilo confesso. A Santa Aliança (título da matéria de Carl Bernstein sobre o assunto, publicada anos depois pela revista Time) continua em vigor.

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