Por Chico Villela
Desarquivar para não esquecer que a elite retrógrada de hoje foi aliada, irmã e sócia do mais triste período da história do Brasil. Confira o depoimento honesto e tocante do escritor, ativista e colunista da Novae, Chico Villela, sobre a sua prisão pela ditadura em 1973, e sua vida nos cárceres do DOI-CODI. Um período que não criou heróis, mas lembranças e exemplos. Ou como diz Chico: "Santos não freqüentam guerras".
No dia 5 de setembro de 1973, fui preso por membros do conhecido órgão do sistema de repressão política governamental Doi-Codi, do II Exército, cidade de São Paulo, e levado à sede desse órgão, na rua Tutóia.
É difícil reconstituir relatos desse gênero, seja porque a distância no tempo esmaece a lembrança, seja porque os indizíveis sofrimentos associados à brutalidade desse tipo de ação e de organismo não constituem propriamente fonte de prazer e desfrute que justifique o acionamento dos fios da memória. Acresce que sou incapaz de elaborar um relato frio: a única maneira de cumprir com essa parte do ritual que a lei me impõe é contar uma história com começo, meio e fim, e anotar também os sentimentos que a iluminam e dignificam. Impossível falar de masmorras sem falar que quem entra.
Além disso, há de ser também algo que meus filhos possam ler e apreciar, seja em seus horrores, seja em suas belezas e eventuais aspectos significantes.
antecedentes
Fui preso junto com alguns militantes e simpatizantes do grupo Ação Popular Marxista-Leninista, apml, numa casa que abrigava suas atividades, mas não ‘pertencia’ a esse grupo; fazia parte de uma rede de apoio, bastante informal mas sólida, a outro grupo: contribuía financeiramente, alojava pessoas, daqui ou de outros países, em situação de risco, fazia panfletagem, compunha parte de rede de informações e divulgação; enfim, integrava as chamadas linhas auxiliares dos movimentos de resistência à ditadura militar. E mantinha também contato com pessoas da apml, por razões que não interessam aqui.
À época da prisão, havia deixado o último emprego fixo e me aventurava como autônomo, tentando sobreviver em meio ao rodopio de um mundo conturbado, de valores em mudança, movimento do qual participei com vontade e determinação: vivi a época como ator, não como espectador, como aliás milhões de jovens e adultos, talvez menos perplexos que eu com o descompasso entre as utopias que nos moviam e a rudeza das respostas que encontrávamos. Fazia meditação, lia textos zen, coisa que, à época, era atividade de respeito. Mas também sabíamos dar nossos chutes no saco dos oponentes; afinal, santos não freqüentam guerras.
prisão
Até receber a cópia do Arquivo Público, sempre soube que houvera sido preso no dia 3 de setembro. O registro no dia 5 talvez tenha uma explicação, e por aí começa a levantar-se, no meu humilde e insignificante caso, a verdadeira “cortina de ferro” que até hoje encobre pessoas e atos dessa época, cuja reconstituição não interessa aos poderes nem aos poderosos: registrava-se o preso só após trâmites iniciais que incluíam possibilidades variadas, como sua transferência para outros locais, a não-revelação de sua identidade, ou, como se sabe, a necessidade de sua rápida eliminação, leia-se assassinato sob tortura, e amenidades similares. Parece que, como eu era figura de pouca importância para eles, o registro foi efetivado rapidamente, e o “codinome”, na falta de coisa melhor, ficou “Chico” mesmo, como se vê sob a foto no registro; aliás, gostei, e uso até hoje.
Deixaram-me vendado algumas horas em uma cadeira num ambiente gelado, coerente com o frio agudo da estação; vim depois a saber que era uma cortesia de entrada para quase todos os que não iam “direto pro pau”, e chamava-se, sem nenhuma surpresa,“geladeira”. Ao amanhecer, empurraram-me para dentro de uma cela vazia, tiraram a venda e fecharam a grade. Imediatamente, caí num colchonete, único móvel existente, e dormi. Ou melhor, algo em mim desligou os circuitos.
Havia repassado freneticamente, durante a geladeira, os fatos que sabia; os que “devia saber”, ou seja, “tudo que nós sabíamos que eles sabiam”, dado de crucial importância para direcionar as respostas nos interrogatórios sem fornecer informações e, ao mesmo tempo, demonstrar “boa vontade”; e, sobretudo, o que poderia ter acontecido, já que na casa, perdão, “aparelho” onde me prenderam morava uma ex-namorada militante, do mesmo grupo de alguns amigos e parentes. O vastíssimo tempo de geladeira me permitiu pensar e tentar ordenar o turbilhão, e talvez por isso tenha dormido sem mais nem menos na cela. Pode parecer engraçado hoje, ou apenas ridículo ou curioso, mas durante muito tempo interroguei-me severamente sobre esse fato, como se tivesse sido um gesto de covardia ou traição: em risco de vida, com amigos e talvez parentes presos, num “ninho de horrores”, e eu dormi.
Mas o que interessa destacar aqui é o “vastíssimo” tempo de geladeira. Não sei dizer quanto tempo fiquei tiritando, sei que foi muito. Uma das primeiras certezas que tive na prisão é que o tempo flui de modo diverso, e que eu tinha de apreender logo seus ritmos para evitar o desespero. Truísmos como “momentos que parecem a eternidade” não são capazes de revelar a dimensão do horror que se vivencia. Como sempre fui metido a pensar e escrever, concluí que haviam me seqüestrado o tempo, e me ofereciam outro tempo, o deles, sem possibilidade de recusa. “Tiraram meu tempo, e vão querer mais”. Passei uns dias com essa idéia passeando na cabeça, talvez para afugentar a grande, a magna, a besta-idéia: vão me tirar a vida?
A única possibilidade de cronologia, para mim, resume-se à madrugada da prisão e ao dia seguinte. A partir do primeiro dia, a memória não consegue diferenciar com precisão, e o ‘antes’ e o ‘depois’ se misturam bastante. No primeiro dia, fiquei só durante a manhã e a tarde. Lembro-me de ter ficado num canto, com receio de me mover, como se houvesse redução dos graus de perigo se eu me mantivesse quieto, como se afastasse a realidade pela imobilidade. Tentei meditar, a ver se me recentrava, mas não funcionou, havia um martelo na cabeça, e os mestres e guerreiros zen andavam pras bandas do Oriente, longe daquele cu-de-mundo situado na beira do inferno do lado mais quente duma palhaçada triste e assassina chamada Brasil.
A grade da cela era de ferro preto grosso, e dava visão para um pedaço de muro a uns dois metros, mais nada. Aos poucos, fiquei sabendo que do outro lado do muro havia outras celas, e que as mulheres ficavam do “outro lado”, do “lado de lá”, e essa era a geografia permitida: aqui e lá, e mais nada.
No fim da tarde, um homem gordo, engordurado, de ar sinistro e cavernoso, um olhar repelente, sobre quem em diversas ocasiões confirmei todos esses qualificativos de primeira impressão, e que depois soube ser carcereiro e chamar-se Lunga, e que também auxiliava nas “buscas e apreensões” e nas “sessões de interrogatório duro”, abriu a porta e botou pra dentro uma pessoa. Fiquei numa alegria extrema: uma pessoa, um rapaz novo. Lembro-me exatamente desse momento do primeiro dia: tive vontade de me levantar, cumprimentar, abraçar, mas logo me recompus: a maldita luz acesa me lembrou que poderia ser alguém que apenas teria vindo para saber mais sobre mim e tudo. E, com certeza, esta foi a segunda constatação fundamental: não só o tempo mudou, mas também as relações às quais você está acostumado, e a vida não é mais a sua vida, é a vida do jeito deles. E, mesmo que assim não seja aqui e ali, será, porque você tem de mudar a sua.
vida de preso
Chico Villela com um de seus filhos, Santhiago, em foto atual: "Continuar vivendo embora se seja outro homem, e outra seja a vida. Alguns não conseguiram."
Deve haver gente por aí capaz de falar coisas bonitas sobre vida de preso.
A solidariedade que irrompe, os elos que se atam para garantir a permanência de momentos sublimes, as cambiâncias emocionais que nos revigoram e nos confirmam como parte da parte boa do planeta, as mãos estendidas, a compreensão da fragilidade do outro e da tão igual fragilidade de quem olha e sente o outro, e todos os sentimentos que nos inscrevem nas esferas mais altas das civilizações e das evoluções humanas. A vida de preso seria um emergir de maravilhas se apenas se resumisse às tantas e tão singulares acontecências quetais.
Mas vida de preso não é a vida do preso, e muito menos a vida do preso político nas celas do Doi Codi do II Exército brasileiro, na rua Tutóia, sem número, na cidade de São Paulo, cidade na qual nunca mais consegui viver depois de ter sido um preso político na cela do meio do Doi-Codi do II Exército brasileiro. Se os poderes que me exigem este relato o fazem para avaliar o grau de dor e sofrimento que me foram impostos — e, perdoem-me os poderes, mas não consigo enxergar outra utilidade e função para me obrigarem a este exercício —, basta dizer que fiquei preso durante dois meses numa cela do Doi-Codi do II Exército brasileiro durante os meses de setembro e outubro do ano de 1973. Para quem passou por lá, para quem sabe o que foram aqueles anos e aquela ditadura, é mais que suficiente, e basta.
cabeça de preso
A cabeça do preso não se desvenda pelos acontecimentos que a balançaram, mas pelas repercussões que se derramaram ao longo da sua vida, a partir daí dividida entre o ‘antes’ e o ‘depois’ da saudável convivência na cela do hospitaleiro governo brasileiro. Para registrar, já que se exige um ‘relato’ da prisão, e já que me escuso de comentar em detalhes minha participação como vítima, com os choques elétricos de praxe, surras exemplares com diversos materiais, de qualquer modo uma performance pálida perante outras de larga duração e inexcedível brutalidade, pois, como esclareci, meu grupo era outro, foi preso em outra época, e não fui considerado importante, destaco:
Os gritos de Oswaldo Rocha, que foi torturado diariamente, várias horas por dia, durante mais de um mês, e que mereceram registro num pequeno livro de poemas de memórias da prisão, editado por amigo jornalista preso no mesmo período, em que se dizia: “Os gritos de Oswaldo Rocha ainda estão em meus ouvidos”. Com o passar do tempo, os gritos de Oswaldo Rocha foram perdendo a força, parecendo cada vez mais lamentos de bois distantes e tristes, tão fraco ele foi ficando com as sistemáticas sessões de aberrações a que era submetido. Acho impossível tentar traduzir o significado de tudo isso. Receávamos que um dia ele não mais gritasse, e, ao lado da dor e da gigantesca raiva diária, mesmo assim nos aliviávamos por um átimo quando o ouvíamos pela primeira vez todo dia. “Ele está vivo!”
A visão de minha irmã, esquelética, olhos no fundo dos olhos, descendo com dificuldade extrema um degrau de escada, na qual nos cruzamos um dia, talvez por propósito explícito de nossos carcereiros, eu retornando de uma sessão de interrogatório, ela de algo que, a partir dali, por mais que eu soubesse, por mais certezas que tivéssemos todos de tudo o que ali se passava, algo que talvez superasse minha mais descabelada imaginação e meus mais profundos horrores.
O olhar de um amigo, meu cunhado, visto de passagem, logo nos primeiros dias, fração de segundo, pela janelinha minúscula da solitária em que gentilmente o haviam enfiado, que me deram as certezas de que mais pessoas queridas estavam lá, de que ele iria enfrentar um longo calvário, e de que eu jamais conseguiria esquecer o olhar do meu amigo pela janelinha da solitária do Doi-Codi do II Exército.
Os risos da moçada do X-2, que era uma cela diferenciada, bem-tratada, e seus habitantes, dos quais aos poucos fomos sabendo, pelas milhares de formas que o gênio humano inventa para sobreviver e se comunicar, que eram também diferenciados de nós, que “colaboravam”, o que nos dava o benefício da dúvida na guerra: não havia apenas “nós” e “eles”, o inimigo, mas também “outros”, amigos não amigos, amigos dos inimigos; a vida não é simples, tome cuidado, menino.
A comemoração da queda de Allende, no dia 11 de setembro, único em que a rotina quebrou-se e vimos as caras de vários deles juntos, em estado de euforia, vinham até a grade e batiam, gritavam, avisavam que estávamos fodidos, que o nosso amigo também tinha embarcado na última canoa, e, à noite, nas conversas entre nós, muito mais que sussurradas, verdadeiros testes de boa audição, concordamos em que eles festejavam uma vitória pessoal, como se fossem eles os vitoriosos. Depois, já retornados à condição brasileira de cidadãos de terceira classe de um país rico e tropical, viemos a saber do envolvimento do governo brasileiro no golpe e na repressão, já aí como professor, doutor em repressão e tortura, e não apenas como colaborador.
O pedido de um companheiro de cela, “pelo amor de Deus, façam o que quiserem, mas não me dêem mais choques no ouvido, estou ficando louco, pelo amor de Deus, no ouvido não...”, mas tudo isso era falado para nós, seus absurdamente assustados e impotentes companheiros de cela.
A manhã em que gritos terríveis abafaram o canto do maldito bem-te-vi que, toda manhã, apitava em algum lugar muito próximo, que marcou para mim uma das piores lembranças da vida: os gritos que me acordaram, e, a partir daquele momento, o canto do bem-te-vi; credito ao governo brasileiro o singelo fato de até hoje não suportar ouvir, principalmente pela manhã, o canto do bem-te-vi.
O silêncio na cela após o primeiro grito, todo dia, às vezes noite, várias vezes por dia, em que nos calávamos e nos concentrávamos para tentar saber se conhecíamos, se era possível identificar quem gritava, para sofrer junto, mas também para saber a quem o governo estava dedicando carinhos especiais, informação vital para quem pode ser o próximo, e deve pensar no que dizer, no que calar, a quem avisar, passar recado, para garantir ao menos a vida, ao menos.
A tarde em que meditei na grade, sentado na cadeira, era uma só, e percebi, olhos semicerrados, uma figura aproximar-se, falou: “Tá rezando pra quem?”, e olhei a cara repelente do Lunga, e olhei bem dentro dos seus olhos repelentes e disse, firme: “Para todos, senhor, para todos”, e era verdade, ao menos naquele momento, e ele baixou os olhos repelentes e foi embora. Sei que foi pífia e mínima a vitória, mas guardo até hoje com afeição essa pífia e mínima vitória. E também, para não faltar com a verdade e a coerência, confesso que a convivência com esses legítimos e autorizados representantes do governo brasileiro me levou a perder o dom do perdão; talvez por isso cultive com tanto zelo essa lembrança do dia, ou melhor, do momento em que fui altruísta e bondoso, e talvez sábio. Sei também que nunca mais meditei após a prisão, nem recuperei o dom do perdão. Fiquei pior, e ruim, e também isso devo, não sem evidentes e cristalinos méritos próprios, aos meus hospedeiros.
Para não criar mais um item, e encerrar logo este relato, registro aqui o lembrete renovado de que a cabeça do preso só se desvenda pelas repercussões duradouras e permanentes, o que os especialistas chamam, bonitinhamente, de ‘seqüelas’: terrores em horas impróprias; inseguranças novas e vívidas; paranóias que se grudam como lesmas na vida e na personalidade; dificuldades e impossibilidades de retorno a comportamentos comuns; idéias tolas, tontas, imbecis, delirantes, sem sentido; reviravolta no equilíbrio de sentimentos, emoções, sentires; vivências tortas, infelizes. Continuar vivendo embora se seja outro homem, e outra seja a vida. Alguns não conseguiram.
um dia,
Chamaram-me e me encaminharam a uma sala, cheia de carteiras escolares, havia muitas pessoas, deram-me papel e caneta e ordenaram que escrevesse minha confissão. Foi meu segundo momento de sensação de vitória: eles nada sabiam de mim, nada arrancaram, e eu escrevi que era um cidadão ‘normal’, etc. Depois, devolveram-me documentos e objetos pessoais e me conduziram até o portão que dava para a rua. Alguém disse: “Não volte aqui, que da segunda vez ninguém sai, a não ser direto pro cemitério”.
É a última lembrança que registro: “... a não ser direto pro cemitério”. Nunca me esquecerei de que andei pela calçada muito tempo sem sentir os pés no chão.
Até então, nunca havia flutuado.
Devo isso também aos meus hospedeiros.
Brasília, 11 de abril de 2002, entre 11 e 15 horas.
Chico Villela é escritor e editor. Colaborador da Nova
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