Mauro Santayana
Hoje, em Londres, estará pairando sobre a reunião do G-20, com sua barba, cabelos longos, leve e sarcástico sorriso, o espírito de Karl Marx. Provavelmente o acompanharão, além de Engels e Andrew Jackson, fantasmas mais antigos, como os de Babeuf e Sieyiès. Ontem e anteontem, nas manifestações populares na City e diante do Palácio de Buckingham, poderiam estar presentes outras assombrações, como as de Girolamo Savanarola e do gladiador Spartacus.
Os principais líderes do mundo não irão negociar entre eles mesmos: terão que negociar com esses incômodos visionários da História, cujas ideias continuam vigentes. Mais uma vez a ordem de domínio tentará um acordo com o passado, porque, sem esse acordo, tudo pode ocorrer no presente. Como disse ontem Lula – depois de almoçar com Sarkozy – os líderes do G-20 não devem encontrar-se para marcar nova reunião. Tem razão. O próximo encontro pode ser tardio. A hora reclama decisões rápidas.
Cúmplices da ladroagem, alguns economistas ameaçam com maior instabilidade do sistema, se o Estado voltar a regulamentar as atividades financeiras e econômicas. Defendem a permanência dos paraísos fiscais e a "liberdade de mercado", atribuindo a crise à conjuntura. Outros acenam com as ligeiras variações dos índices de produção industrial no mercado americano, em razão da ajuda do governo ao sistema financeiro e à indústria automobilística. São como os enfermeiros que tranquilizam os parentes, quando a febre do paciente se reduz em um ou dois graus, durante o processo de hipotermia que antecede o óbito. Não deixa, no entanto, de ser divertido ouvi-los, porque se referem a tudo, menos à roubalheira de seus empregadores e consulentes.
Obama está contido pela resistência de Wall Street, mas a razão o aconselha a ir mais longe do que propõem os franceses e alemães. O problema surgiu em decorrência de uma crise ética mundial que se armou a partir da "deregulation" de Reagan. Os executivos dos bancos receberam cartas de privateers: não só eram autorizados a saquear, mediante as transações eletrônicas e o mercado derivativo, como lhes era permitido reocupar os refúgios dos piratas do século 17, com os paraísos fiscais antilhanos – e outros – menos expostos do que o valhacouto suíço.
Os paraísos fiscais constituem o fulcro da crise. Conforme o eminente contabilista inglês Richard Murphy, o desmantelamento dessas tocas é absolutamente necessário. Não se trata de regulamentá-los, mas de impedir que existam, e continuem sonegando impostos. Murphy registrou em seu blog (www.taxresearch.org.uk/blog) a reação dos grandes empresários britânicos contra a posição de Brown sobre os paraísos fiscais. As grandes indústrias multinacionais também os utilizam para sonegar impostos e outros atos criminosos. Importante é a conclusão de todos, embora cautelosamente exposta por Obama: o problema é político e só pode ser resolvido pelo Estado. As manifestações de Londres e de outras cidades mostram que o sistema financeiro e o complexo industrial militar internacional serão compelidos a aceitar as novas regras. Eles dispõem do poder econômico e da força política dele derivada – mas os povos começam a entender que a supremacia do Estado não pode ser contestada pelas corporações apátridas.
A única forma de agir em defesa do povo e do Estado é fiscalizar os negócios, mediante exame contábil. Foi exatamente por pensar assim que Itamar quis nomear o professor Lopes de Sá para uma diretoria do Banco Central, e seus diretores se opuseram, com o apoio do Ministério da Fazenda. Entende-se: para Lopes de Sá, em recente entrevista, "não basta regulamentar os mercados financeiros. Grandes bancos e consultores, alteraram normas contabilísticas, produziram regulamentos que os países adotaram como leis". Ele seria capaz de abrir a caixa-preta (até hoje fechada) daquela instituição.
Richard Murphy lembra a necessidade de um novo Glass-Steagal Act que, no início do governo Roosevelt, proibiu os bancos comerciais de atuarem como bancos de investimentos. No Brasil, importantes bancos comerciais são acionistas de grande parte das maiores empresas industriais e mercantis.
Fonte:JB
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