Amnésia e asco: os ‘Chacarilla boys’ de Pinochet são ministros de Piñera
O pior é a confusão ideológica do momento. E dos que estiveram no lado dos perdedores. Há quem siga dizendo que a direita já não é a mesma. Que Piñera é uma nova direita. Sua memória foi apagada.
Por José Bengoa
Não há pior doença social do que a falta de memória histórica. O Chile a sofre de modo agudo. Em 9 de julho de 1977 um grupo de 77 jovens nacionalistas de extrema direita subiu o monte Chacarilla, ao lado do San Cristóbal, no ato mais fascista de todos os tempos da história deste país. Emulavam os 77 soldados de A Concepção na Guerra com o Peru.
Florestas de bandeiras e tochas ao mais puro estilo do nazismo hitlerista iluminavam a noite de inverno. Pinochet, em um momento de inspiração arrebatadora, leu seu famoso discurso: “Meu coração de velho soldado – dizia – revive com profunda emoção a coragem insuperável de Luis Cruz Martínez... quando em plena solidão da serra peruana, souberam demonstrar com a entrega de suas vidas, que nossa pátria e os valores permanentes do espírito estão acima de qualquer sacrifício pessoal que sua defesa possa demandar”.
Nesses mesmos dias eram torturados no “Palácio de la Risa”, assim chamada a Villa Grimaldi, milhares de chilenas e chilenos. Eram violados e aterrorizados, e logo os jogavam ao mar, como fizeram a Marta Ugarte, uma das primeiras que nesses mesmos dias apareceu flutuando nas praias de Longotoma. Enquanto os jovens subiam em meios às tochas, os gritos de horror se escutavam nos subterrâneos do poder entusiasmado.
“As limitações excepcionais que transitoriamente tivemos que impor a certos direitos, contaram com o respaldo do povo e da juventude da pátria, que viram nelas o complemento duro porém necessário para assegurar nossa Libertação Nacional”, disse o general em meio aos aplausos dos jovens patriotas no meio da noite de Chacarillas.
“O complemento duro, porém necessário” dá calafrios e vontade de vomitar. Todos e todas que ali estavam sabiam muito bem a que se referia o general. Era explícito.
Quem subiu em Chacarillas?
Anteontem houve a mudança de Gabinete. A lista indica o número 15: Andrés Chadwick, hoje ministro porta-voz do governo, número 38; Cristián Larroulet, ministro do triuvirato do La Moeda; e, 39, Joaquin Lavín, ministro deposto da Educação e ressuscitado ministro da Planificação Nacional.
A lista é longa e seria um exercício de “boa memória” publicá-la em letras maiúsculas. O número 47 é o atual presidente da Câmara de Deputados; e o número 20 é o dono da Universidade San Sebastián, emblemático modelo do que deve ser a educação universitária “com fins lucrativos”.
O número 17 dava gargalhadas anteontem em La Moneda, ao ver como seus “Chacarilla Boys” finalmente tomavam La Moenda, em assalto ao poder, que naquela noite chuvosa de inverno de 1977, os 77 cabalisticamente (como é próprio dos fascismos correntes) haviam prometido solenemente. Juan Antonio Coloma, se chama.
Nenhum destes “Chacarilla Boys” fez autocrítica alguma, pediu perdão, passaram despercebidos em meios às tormentas. “Não sabiam” é o que mais mentirosamente trataram de balbuciar. Não sabiam o quê?
Todos que vivíamos no Chile sabíamos detalhadamente. Você, presidente, não sabia e não sabe quem está colocando em La Moneda? Ninguém se lembra como pegavam milhares de pessoas nas madrugadas deste ano de 77 e levavam a um estádio de futebol às seis da manhã, congelada, e os espancavam, os fichavam, os humilhavam e deixavam arrasados? Ninguém se dá conta que esmagaram um século de lutas operárias com terror? Ninguém se recorda que o próximo ministro do Bem-Estar Social escreveu o panfleto mais odioso de nossa História Literária, A Revolução Silenciosa? Por que não voltam a publicar?
Mas o pior é a confusão ideológica do momento. E dos que alguma vez estiveram no lado dos perdedores. Há quem tenha dito e siga dizendo que a direita já não é a mesma. Que Piñera é uma nova direita. Sua memória foi apagada. Há outros, da outra banda, que acabam de dizer que no Chile há “duas direitas”. Com respeito pessoal, mas andam mais perdidos que o Guarda Belo. Muito triste.
É uma campanha dos antigos perseguidos de confundir tudo. Os erros, desvarios, silêncios, de um Ricardo Lagos ou uma Michelle Bachelet, não têm nem um ponto de comparação com o que se viveu naqueles dias e que foi aplaudido pelas atuais autoridades do país. Escuto na minha mente deprimida os aplausos em Punta Peuco. Em Bucalemu um defunto se revira de alegria em sua tumba. Os fantasmas estão presentes, mais do que nunca. Gozam de boa saúde. Riem com seu sorriso gordo e a cores digitais, da História do nosso país.
E não me venham criticar os rapazes que pegam pedras e destroem o “mobiliário urbano” do prefeito de Santiago. Quando não há espaço para a memória e para a razão, só restam pedras.
Me dá vergonha. Me dá vergonha de ser chileno.
Fonte: Revista Fórum.
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