Do Brasil 247 - 8 de Setembro de 2013 às 17:28
Análise ferina do jornalista Paulo
Moreira Leite revela como era frágil o argumento de colunistas como
Merval Pereira, do Globo, que defendiam que o Supremo Tribunal Federal
desse uma resposta à sociedade antes do desfile de 7 de setembro – havia
até quem previsse que a estátua da Justiça seria depredada por uma
multidão enfurecida. "Interessados num eventual proveito político do
julgamento, tentam chantagear as instituições da democracia, sem
importar-se, sequer, com outros prejuízos de natureza cultural que o
estimulo à baderna possa produzir", diz Moreira Leite; plano de Merval e
do Globo, de usar o 7/9 como argumento para acelerar prisões, não
funcionou
247 - Ao
contrário das apostas alarmistas de colunistas como Merval Pereira, do
Globo, que defendiam que o Supremo Tribunal Federal desse uma resposta
às ruas, prendendo réus antes mesmo do fim dos recursos, para que
multidões enfurecidas não quebrassem tudo no 7 de setembro, nada disso
aconteceu. Muito pelo contrário. A tentativa de parte da imprensa de
usar possíveis protestos para chantagear as instituições fracassou. E o
jornalista Paulo Moreira Leite escreveu uma análise impecável a
respeito. Leia abaixo:
Crocodilos derrotados
Nossos
cronistas que tentam impedir que os condenados da Ação Penal 470 tenham
direito a uma revisão adequada de suas penas e mesmo uma segunda
jurisprudência perderam um argumento depois de ontem.
Numa
postura autoritária, que confundia seus desejos com a realidade,
falavam do monstro, do ronco, do demônio das ruas para justificar a
prisão imediata dos condenados.
Mas
tivemos protestos de participação modesta, que confirmam não só a
vergonhosa ignorância da fatia conservadora da elite de nossos meios de
comunicação quanto às preocupações reais que afligem a maioria da
população, mas também sua total falta de compromisso com a apuração e
divulgação de fatos verdadeiros e informações confiáveis.
Querem fazer propaganda, querem ideologia – e não é difícil entender a razão.
Interessados
num eventual proveito político do julgamento, tentam chantagear as
instituições da democracia, sem importar-se, sequer, com outros
prejuízos de natureza cultural que o estimulo à baderna possa produzir.
Como
observou Janio de Freitas, pela primeira vez na história as pessoas
saíram a rua num 7 de setembro sem “incluir, sequer remotamente, algo da
ideia de nacionalidade, ou de soberania, de independência mesmo.”
Diz
ainda Janio: “pelo visto, não faria diferença se, em vez do Sete de
Setembro, a celebração mais próxima fosse o Natal. Ou Finados.”
Lembrando que somos uma pátria de desiguais, o Grito dos Excluídos disse a que veio. Mas só.
Os demais não disseram nada, embora fosse sobre eles que se disse tudo – especialmente, que o STF deveria se acovardar.
Há um componente maligno e manipulador nesse esforço para anunciar que um protesto será uma manifestação grandiosa.
Procura-se
estimular o efeito manada naquele conjunto de cidadãos capazes de sair a
rua porque acham que “todo mundo vai estar lá”. Numa sociedade pouco
organizada como a nossa, onde os partidos políticos são o que são e as
demais organizações sociais são aquilo que se conhece, muitas pessoas
sentem-se desenraizadas e sem compromisso social maior. Ficam
impressionadas com demonstrações de força.
Tenta-se
contaminar nestes indivíduos um sentimento de solidão e isolamento caso
não acompanhem os atos daqueles que se quer transformar numa “maioria”
que ninguém ouviu nem diz onde mora nem sabe o que pensa – e muitas
vezes nem pode ver o rosto, o que não é casual.
A
leitura de Hanna Arendt, uma das mais fecundas estudiosas do nascimento
de movimentos totalitários que levaram às piores ditaduras do século
passado, permite interessantes comparações com aquilo que se diz e se
faz no Brasil de hoje. Não tudo, mas boa parte, pelo menos.
Hanna
Arendt explicou que os movimentos contra uma democracia ainda em
gestação na Europa entre as duas Guerras precisaram de “uma grande massa
desorganizada e desestruturada de indivíduos furiosos, que nada tinham
em comum exceto a vaga noção de que as esperanças partidárias eram vãs;
que, consequentemente, os mais respeitados, eloquentes e representativos
membros da comunidade eram uns néscios e que as autoridades
constituídas eram não apenas perniciosas, mas também obscuras e
desonestas.” (“Origens do totalitarismo”, página 444).
É
claro que, diante do fiasco comprovado de ontem, ninguém irá admitir
que nunca houve uma relação direta nem clara entre a ação 470 e os
protestos de junho.
Havia,
há dois meses, quem protestasse contra os condenados. Era muita gente,
sem dúvida. Mas havia uma raiva mais ampla e generalizada, que envolvia o
sistema político, a saúde pública e, como causa inicial, não vamos
esquecer, o transporte público.
Reconhecer
isso hoje seria aceitar que se fez uma descrição política interesseira,
que pretende dar ao povo um tratamento de ralé, estimulando, acima de
tudo, a busca de um líder autoritário – para empregar, mais uma vez, a
análise de Hanna Arendt.
Para
ela, povo é aquele movimento social articulado a partir de interesses
concretos e definidos, inclusive de classe social, que reage para
defender seus direitos quando são atacados – e por isso ela identifica
povo com a democracia.
Já
a ralé, no sentido político, é formada por uma massa de cidadãos de
várias classes, alimentados por uma “ amargura egocêntrica” que produz
uma forma de “nacional tribal” e também o “niilismo rebelde."
Analisando
a estratégia de um dos mais cruéis líderes de um movimento em si
monstruoso como o nazismo, Arendt fala que Himmler procurava recrutar
integrantes das SS entre cidadãos que não estavam interessados em
“problemas do dia a dia” mas somente em questões ideológicas de quem
acredita trabalhar “numa grande tarefa que só aparece uma vez a cada
dois mil anos.”
Vejam algumas semelhanças entre as coisas.
No
livro “ A Cozinha Venenosa, “ no qual estuda a emergência do nazismo a
partir da história de um jornal socialdemocrata de Munique, a jornalista
Silvia Bittencourt lembra uma frase do hino da SS: “a Alemanha
desperta.”
Descrevendo
a “atomização social e a individualização extrema”, Hanna Arendt fala
de massas que, “num primeiro desamparo de sua existência, tenderam para
um nacionalismo especialmente violento.”
Avaliando
o comportamento dos partidos que tinham uma postura de cumplicidade nos
ataques a democracia, diz que agiam assim “por motivos puramente
demagógicos, contra seus próprios instintos e finalidades.”
Na
verdade, a falta de disposição espontânea para transformar o 7 de
setembro numa jornada de confronto político real, como ocorreu em junho,
não era tão difícil assim de ser percebida.
Em
4 de setembro registrei neste espaço minhas dúvidas sobre o tão falado
monstro e seu “ronco”, como dizem os adoradores de todo movimento capaz
de ser usado para causar prejuízos ao condomínio Lula-Dilma.
Falando dos crocodilos que rondam o Supremo, escrevi:
“Tenho
certeza absoluta de que muitos brasileiros querem a prisão dos
condenados pela ação penal 470. São sinceros e estão convencidos de seus
motivos. Acho que o massacre dos meios de comunicação, tendenciosos,
tem muito a ver com isso.
Não
custa lembrar, contudo, que o Brasil não se resume a essas pessoas.
Todos os deputados indiciados na ação penal 470 e que disputaram cargos
eleitos em 2010 tiveram boa votação. Em 2012 a lei ficha limpa tirou
João Paulo Cunha do pleito em Osasco.
Senão, teria sido eleito prefeito.
Não pode concorrer e emplacou um substituto no posto. Dirceu só não foi
eleito em 2010 porque perdeu os direitos políticos no Congresso.
O
“povo”, “a rua”, “o monstro” compareceu em massa às urnas em 2006,
2010, 2012. Em nenhuma dessas ocasiões a ação penal 470 derrotou
qualquer candidato a presidente, a governador, a prefeito. Ocorreram
derrotas e vitórias espetaculares. Sei da opinião de quem vai aos
protestos. Mas basta andar pela rua e perguntar a opinião da população
sobre Dilma. Ou sobre Lula.”
Seria
ilusório no entanto, esperar por um balanço politicamente honesto deste
7 de setembro. Ninguém irá aplicar o mesmo critério e reconhecer que a
população não está com tanta pressa assim –-- e dar uma folga na
chantagem sobre o Supremo, deixando que, nos últimos dias, seja capaz de
encarar os fatos e reconhecer que tem o dever de abrir o debate para a
discussão dos embargos infringentes, uma possibilidade de assegurar a
pelo menos uma parcela dos réus o direito de uma revisão de suas penas.
As
“ruas “ e o "monstro" eram apenas pretextos convenientes para
justificar uma postura autoritária para mobilizar a população, de
qualquer maneira, para exigir punições exemplares. Não deu certo e agora
se mudará de assunto para perseguir o mesmo alvo, que é criminalizar as
mudanças ocorridas no país nas últimas décadas. Como se faz sempre, a
retórica consiste em transformar o bom em regular em ruim, o ruim em
péssimo – e dizer que tudo o que há de ótimo saiu da cartola da
oposição, enxotada do Planalto com uma popularidade negativa de 13
pontos.
A
transmissão ao vivo do julgamento, ainda no ano passado, destinava-se a
transformar uma decisão que deveria ser tomada num ambiente de
serenidade e recolhimento num espetáculo público com várias
demonstrações de autoritarismo e intolerância.
Tivemos
um ministro relator que jamais foi um juiz, mas um aliado da acusação
e, em vez de ser questionado a respeito, foi aplaudido exatamente por
isso.
Este
comportamento permitiu várias distorções e abusos. No último exemplo, o
ministro Ricardo Lewandovski demonstrou, com dados irrefutáveis, o
agravamento artificial das penas com a finalidade de impedir que, apesar
das denúncias injustas, da falta de provas, da fraqueza de tantas
acusações, os réus pudessem beneficiar-se de um direito universal – a
prescrição de penas depois de determinado prazo de investigação.
Estimulando
atitudes de quem se coloca acima da lei, improvisa soluções sob
encomenda a seus interesses, o que se quer é outra coisa.
Convencer
o “niilismo rebelde” e o “nacionalismo tribal” que é possível
desrespeitar a democracia pois ninguém será capaz de reagir. Estamos
sendo submetidos a um teste.
Através
do ataque aos direitos de 25 condenados, pretende-se atingir os
direitos do povo inteiro É um plano para um prazo mais longo, amplo e
profundo.
Se,
em outubro de 2014, Dilma Rousseff e Lula confirmarem o dizem as
pesquisas eleitorais de hoje, cravando uma quarta vitória eleitoral
consecutiva sobre a “ a amargura egocêntrica” das elites, nós poderemos
saber exatamente o que estava em jogo no espantalho do monstro de 7 de
setembro -- obter, fora das urnas, fora do respeito devido às
instituições democráticas, vitórias que só a soberania popular pode
assegurar.
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