Como uma gafe histórica ajudou a desarmar o ataque à Síria. O que o episódio revela sobre poder internacional no século 21?
Por Antonio Martins, no Outras Palavras
Um olhar superficial poderia atribuir ao
secretário de Estado dos EUA, John Kerry, o gesto desengonçado que
tornou difíceis e arriscados os planos da Casa Branca para uma guerra
contra a Síria. Na manhã desta segunda-feira (9/9), ao falar de
improviso em Londres, Kerry sugeriu que
o ataque anunciado por Obama poderia ser cancelado, caso o presidente
sírio, Bashar Assad, entregasse “todas as suas armas químicas, sem
demora” e permitisse “a verificação completa” do ato pela comunidade
internacional. No instante seguinte, tentou neutralizar o efeito de sua
própria frase, talvez por perceber o risco que implicava. “Ele [Assad]
não o fará, isso não pode ser feito”, disse. Minutos depois, a porta-voz
do Departamento de Estado correu em seu socorro, afirmando que ele fizera apenas “uma argumentação retórica”, sobre a “impossibilidade de Assad abrir mão das armas”. Mas era tarde.
Muito rápido, o chanceler da Rússia, Sergei Lavrov, que se opõe à guerra, aproveitou a brecha. Assegurou que
seu país recomendaria à Síria colocar os arsenais sob supervisão de
inspetores internacionais. O círculo fechou-se quando o próprio
chanceler sírio, Walid al-Moulen, que estava em Moscou, acolheu a
proposta e saudou “a sabedoria da liderança russa, que tenta prevenir
uma agressão norte-americana contra nosso país”… Nos instantes
seguintes, e na velocidade da internet, a ideia receberia o aval do
secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, do primeiro-ministro britânico, David Cameron, e de diversos parlamentares em
Washington. À noite, um Obama relutante foi obrigado a ceder,
parcialmente. Em cinco entrevistas à TV, que haviam sido agendadas para
defender o ataque à Síria, ele disse desconfiar
do compromisso sírio, mas declarou-se disposto a testá-lo. Outras
reviravoltas poderão surgir, mas atacar Damasco, nas novas
circunstâncias, havia se tornado insustentável. A questão é: tudo terá
sido, mesmo, resultado de um escorregão de John Kerry?
Uma série de acontecimentos aconselha a
dizer que não. Desde meados da semana passada, os planos de um ataque à
Síria sofriam desgaste crescente. A aprovação, no Congresso
norte-americano, da resolução de guerra proposta por Obama tornara-se,
no mínimo, duvidosa. No plano internacional, aprofundava-se o desgaste
do presidente dos EUA, dos governantes e da mídia dispostos a segui-lo.
Por trás destas dificuldades, há três
hipóteses que merecem ser analisadas com atenção – e comemoradas. Dez
anos após mentir intencionalmente ao mundo, no Iraque, Washington não
reúne, hoje, condições políticas para desafiar a ONU – einiciar um
conflito cujo real objetivo é a afirmação de seu poder geopolítico.
Permanece temerário, para governos que se afirmam democráticos,
contrariar de modo frontal e aberto a opinião majoritária das
respectivas sociedades. Não será aceita, sem contestação, a ideia de que
os Estados têm o direito de agir movidos por “informações” que dizem
possuir – mas se recusam a compartilhar com os cidadãos.
Todas estas hipóteses foram reforçadas
por fatos concretos, nos últimos dias – inclusive no cenário interno dos
Estados Unidos. Lá, uma opinião pública cansada de guerras e
manipulações, e um establishment político profundamente dividido, corroeram uma estratégia esdrúxula da Casa Branca. Consistia em afirmar que
existem “provas conclusivas” sobre a responsabilidade do governo sírio
pelo ataque químico a um subúrbio de Damasco, em 21/8; mas em evitar a
apresentação pública de tais comprovações – que seriam sigilosas e,
portanto, exibidas apenas em comitês de senadores e deputados.
Já no sábado, um balanço do New York Times revelava
que Obama enfrentaria uma “batalha tensa e em contracorrente” para
aprovar no Congresso seu pedido de autorização para a guerra. Havia três
fatores para isso. Uma parcela importante do Partido Democrata
opunha-se por convicção ao conflito – da mesma maneira que o próprio
presidente condenou a guerra contra o Iraque quando senador, fora da
Casa Branca e, portanto, menos submisso às pressões da máquina de
Estado. Um outro setor, que incluía democratas e republicanos, tendia a
votar contra o Executivo por pressão direta dos eleitores.
Todas as sondagens de opinião pública
realizadas nas últimas duas semanas, desde que o presidente anunciou a
disposição de atacar a Síria, revelam que uma sólida maioria de cidadãos
opõe-se a esta atitude. O jornal estimava que são especialmente
sensíveis a tal posicionamento os parlamentares que não têm sua
reeleição assegurada – e terão de enfrentar as urnas, em pouco mais de
um ano. Esta previsão foi confirmada em
9/9, de modo enfático, por Justin Amash, deputado do estado de Michigan
pelo Partido Republicano. Nos encontros públicos, disse ele, “percebo
que não há apenas desaprovação à guerra, mas esmagadora desaprovação –
seja de eleitores democratas ou republicanos”…
A arrogância da Casa Branca, que se
julgou desobrigada a oferecer sinais efetivos do suposto envolvimento de
Assad no ataque contra civis, ajudou a cimentar a rejeição popular à
guerra. No domingo, um texto da
agência Associated Press, insuspeita de favorecer o governo sírio,
frisava a lacuna. “O público – dizia a matéria – ainda não viu uma única
peça de evidência concreta capaz de conectar o governo do presidente
Assad aos ataques com armas químicas. Nenhuma imagem de satélite,
nenhuma transcrição das comunicações militares sírias: nada”.
A terceira razão para os percalços
internos de Obama é o acirramento das disputas entre as elites políticas
norte-americanas e a consequente dificuldade de Washington para exercer
poder global. Ao invocar a parceria do Congresso para a guerra, em
31/8, o presidente imaginou que teria amplo amparo do Partido
Republicano – conservador, implicado nos conflitos contra Iraque e
Afeganistão, saudoso dos tempos em que os EUA enxergavam-se como
potência única. Uma parte dos republicanos de fato o apoiou.
Reivindicou, inclusive, que os ataques não se limitassem a “punir”
Assad, mas procurassem derrubar ou, ao menos, enfraquecer seu regime.
Mas outro setor, ainda mais primitivo, radicalizou-se de modo
irreconciliável contra o presidente, nos últimos anos – a ponto de
considerá-lo um “socialista” que não merece apoio em circunstância
alguma…
Na arena internacional, Obama e seus
aliados foram pegos num contrapé similar. Confiante no poder bélico
incomparável dos Estados Unidos, o presidente agiu como George W. Bush
em 2003 e julgou-se com legitimidade para lançar unilateralmente, e sem
aval da ONU, uma guerra de pretexto “humanitário”. Num editorial de rara sinceridade publicado em 5/9, a revista Economist apoiou
o presidente, mas expôs a verdadeira razão por trás de sua iniciativa.
“Os argumentos para a intervenção na Síria são mais estreitos e menos
utópicos que no Iraque. Primeiro, está o cálculo dos interesses
norte-americanos. A arena internacional é, por natureza, anárquica. (…)
Como polícia do mundo, os EUA podem definir as regras de acordo com seus
interesses e preferências. Se recuarem, outras potências avançarão (…) A
China já provoca a América; Vladimir Putin começou a confrontá-la – e
não apenas sobre a Síria. É questionável que a Síria fosse de interesse
vital para os EUA, antes deste ataque; mas não depois do desafio direto
de Assad à autoridade de Obama”.
Em poucos dias, ficaria claro que
Washington mantém supremacia militar global, mas arrisca-se a perder, de
forma acelerada, algo mais decisivo: o poder político para impor “seus
interesses e preferências”. Em 29 de agosto, o Reino Unido, um aliado
histórico nas campanhas militares norte-americanas, já havia se recusado
a atacar a Síria, após surpreendente voto contrário de seu parlamento. Três dias depois, o papa Francisco anunciou – em fala aos católicos, no Vaticano, e também pelo twitter –
sua oposição à guerra. Exortou: “guerra nunca mais. Nunca mais guerra”.
Argumentou: “Quanto sofrimento, quanta dor, quanta devastação, traz o
uso das armas, em seu rastro”.
Por algum tempo, Obama e Kerry contaram com uma compensação parcial: o presidente francês, François Hollande, ofereceu, em 30/9, apoio à intervenção na Síria. Mas suas condições de mantê-lo começaram a evaporar, logo em seguida. Também na França, apenas 25% da
população apoia o ataque. Embora a Constituição permita a Hollande ir à
guerra sem apoio do parlamento, cresceram os sinais de que o presidente
não conseguiria fugir a este teste. Por isso, já na reunião do G-20, em
São Petersburgo (5 e 6/9), ele vacilava.
Sugeria que talvez fosse melhor adiar o ataque para depois de um
parecer dos inspetores da ONU sobre as armas químicas. Não se sabe
quando ele sairá e é muito improvável que implique o regime sírio…
Em tais circunstâncias, era natural que
John Kerry, impulsivo e falastrão, acabasse cometendo alguma gafe. Obama
tencionava submeter rapidamente, ao Congresso, a moção em favor da
guerra. Quanto maior a demora, mais riscos de o apoio interno e
internacional ser corroído pelos fatos. A entrevista do secretário de
Estado, em Londres, foi um autêntico festival de absurdos. Talvez para
aliviar as pressões sobre Hollande, eleafirmou, por exemplo, que os EUA planejavam, contra a Síria, um ataque “incrivelmente pequeno” [incredibly small].
Desconcertou todos os que conhecem as incertezas dos conflitos bélicos –
mas em especial os conservadores norte-americanos, que exigem “firmeza”
contra Assad. Desse ponto até o blefe infantil e comprometedor,
pronunciado a seguir, foi um passo. Ágil, empenhado em recuperar ao
menos parte da antiga influência geopolítica, o governo Putin não deixou a oportunidade escapar. Que virá agora?
Os riscos de um ataque à Síria não podem ser, ainda, descartados. Como admite o editorial do Economist, não
é de armas químicas que se trata – mas de poder geopolítico. Por isso, a
caça a pretextos prosseguirá: agora, provavelmente na forma de
condições para a inspeção dos arsenais que o governo Assad não tenha
condições de cumprir. Outra possibilidade é um novo ato provocativo. As
imagens das vítimas de Damasco, em 21/8, sugerem de fato que foram
atingidas por armas químicas; porém, quem as lançou? Um depoimento de
Carla Negroponte, da comissão da ONU que investigou atentados aos
direitos humanos na Síria, é eloquente: “com o que sabemos até agora,
são os opositores do regime os que utilizaram gás sarin”. Conhecidos por
seus laços com a Al Qaeda, os “rebeldes” não poderiam animar-se a novas
aventuras, capazes de instigar o envolvimento direto dos EUA?
Mas o tempo agora corre contra
Washington: a lógica das guerras é a ação irrefletida, as “urgências”
reais ou produzidas. Além disso, há fatores mais profundos em movimento.
Nesta terça-feira (10/9), veio à luz uma nova e impactante sondagem sobre
a opinião pública norte-americana. Comprovou a rejeição à guerra – seis
de cada dez entrevistados opõem-se até mesmo aos ataques aéreos
“limitados” a que se refere Obama. Indicou que, segundo 80%, os
objetivos da guerra contra a Síria “não estão claros”. Mas revelou,
também, um nítido desconforto da própria população com o papel imperial
que os governantes querem preservar para os EUA. A ideia de que seu país
deve exercer “liderança na resolução de conflitos externos” é rechaçada
por 62% dos norte-americanos e apoiada por apenas 34%. A desaprovação é
19 pontos percentuais mais alta que à época da guerra contra o Iraque
(43%), há dez anos.
Obama assumiu a Casa Branca, em 2002,
prometendo virar a página de intervencionismo e arrogância, que marcou a
era Bush, e resgatar os valores positivos que os EUA imaginavam ter
projetado, em décadas passadas. Chegou até mesmo a receber o Prêmio
Nobel da Paz. Porém, concessão depois de concessão, curvou-se de tal
modo ao establishment político – particularmente ao chamado “complexo industrial-militar”
– que se reduziu a uma peça muito funcional à engrenagem. Um presidente
negro, neto de africanos e de passado progressista, mostrou-se afinal
mais útil que seu antecessor para comandar tarefas como o assassinato
extra-judicial de milhares de pessoas, por drones; a ampliação ilimitada das redes globais de espionagem; a perseguição aos que a denunciam.
É possível que a aventura síria dispare
um forte alerta contra este processo. Talvez, em vez de Bashar Assad,
tenha sido Barack Obama quem “cruzou a linha vermelha”, no episódio. Se
for assim, é possível esperar, daqui em diante, maior resistência
internacional aos planos de um governante que já não pode usar máscaras.
E salta aos olhos, neste ponto, um
último aspecto, preocupante: a desarticulação da chamada “sociedade
civil global”. Há dez anos, às vésperas de George Bush iniciar a guerra
contra o Iraque, ela promoveu manifestações nos cinco continentes.
Segundo certas estimativas, reuniram 13 milhões de pessoas. Não frearam a
ofensiva militar, mas foram essenciais para deslegitimá-la. Foram
articuladas em Porto Alegre, no Fórum Social Mundial (FSM) de 2003.
Levaram o próprio New York Times, a falar na emergência de uma segunda superpotência mundial.
Na crise síria, esta “superpotência”
esteve ausente. O papel mais destacado na oposição a Washington coube a…
Vladimir Putin, presidente da Rússia. A mesma ausência tem se repetido
em uma série de acontecimentos globais de grande relevância – da crise
financeira à defesa dos perseguidos por denunciarem a espionagem de
Washington. O esvaziamento dos FSMs, a partir de 2005, não foi corrigido
nem substituído por outro espaço ou mecanismo de articulação. Fazê-lo
será, cada vez mais, um desafio estratégico.
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