A ponta do iceberg da crise política
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), não mediu palavras e classificou um ministro palaciano de “desafeto pessoal” e “incompetente”, abrindo uma crise com o governo federal.
O presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), conduziu a aprovação do projeto da emenda constitucional que criminaliza a posse e o uso de drogas, que vai no sentido contrário da discussão realizada no STF (Supremo Tribunal Federal).
A avalanche de acontecimentos que se desdobraram na última semana é a ponta do iceberg da profunda crise política vivida no Brasil. O conflito entre os poderes é a face mais visível da falência do pacto político forjado no processo de redemocratização e expresso na Constituição de 1988.
A deterioração do modelo político-institucional chegou a um novo patamar em 2013, quando uma multidão saiu às ruas para protestar contra as instituições pela incapacidade de resolverem os problemas da sociedade. Desde então, o conflito entre poderes tem se agudizado, o que deixou o sistema político-institucional disfuncional.
A Operação Lava Jato, que contou com apoio dos meios de comunicação empresariais e do STF, abriu uma guerra judicial contra o sistema político, com a manipulação da luta contra a corrupção para atingir o PT e a liderança do então ex-presidente Lula.
No processo de impeachment, o Poder Legislativo derrubou a presidenta Dilma Rousseff, “com o STF e com tudo”, em um processo arbitrário de crime de responsabilidade, usurpando a soberania popular para intervir no Poder Executivo. Aliás, tudo começou ali com as “pautas-bomba”, como Lira ensaia agora…
Sob o governo Michel Temer, os caciques do Congresso Nacional passaram a controlar o governo e avançaram para aumentar a autonomia do Poder Legislativo.
Temer foi alvo durante seu governo de três processos. Depois da delação do Grupo J&F (controlador da então JBS), o governo Temer liberou 1 bilhão de reais em emendas, a maioria para a base aliada, para obstruir a abertura do processo pela Câmara.
No governo Jair Bolsonaro, a força do Congresso Nacional aumentou ainda mais com o “Orçamento Secreto” e a ampliação dos recursos para as emendas parlamentares.
A partir de 2020, as emendas de relator passaram a funcionar com novas regras, abrindo a possibilidade dos parlamentares solicitarem emendas de forma anônima. No final de 2022, o STF considerou inconstitucional o chamado “orçamento secreto”, criando arestas com o Legislativo.
O governo Lula 3 tentou repetir a fórmula dos primeiros governos do PT, entregando ministérios para partidos de direita e concedendo cargos e emendas, buscando isolar o bloco da extrema-direita.
Além disso, se aproximou do STF para constituir um equilíbrio de forças com o Congresso Nacional. No entanto, não conseguiu estabelecer uma relação estável com o Parlamento e precisa fazer concessões cada vez maiores para aprovar projetos do seu interesse.
O problema é que o Poder Executivo tem sido mutilado e perdeu capacidade de executar as políticas de desenvolvimento, inclusive para cumprir seu papel definido na Constituição como responsável direto pela administração pública.
O patamar de ingerência do Parlamento no orçamento da União no Brasil não tem paralelo no mundo, pulverizando os recursos e obstruindo uma política para o desenvolvimento nacional. Neste ano, os parlamentares têm à disposição no orçamento 45 bilhões de reais em emendas, montante que representa 20% das verbas discricionárias de todo o governo federal.
A última década é marcada pelo agravamento do conflito entre os Poderes constituídos. Governos sob pressão de processos do Poder Judiciário precisam atender aos interesses de uma maioria dos parlamentares do Congresso Nacional, que faz chantagem e exige mais e mais para não causar problemas para os governos.
O STF, por sua vez, passou a ter uma postura mais ativa, julgando ações de interesse da sociedade, relacionadas à descriminalização da maconha, à descriminalização do aborto e ao marco temporal para demarcação de terras indígenas.
Muitos julgamentos da Corte, que tratavam de temas com tramitação paralisada por muito tempo no Congresso Nacional, foram considerados por parte dos parlamentares como invasão de atribuição do Legislativo.
A crise político-institucional se arrasta nos últimos dez anos e não é um fenômeno conjuntural. É resultado, sobretudo, do rompimento do pacto de classes sociais e forças políticas em torno da Constituição de 1988.
O presidente Lula mantém a aposta na fórmula dos seus governos anteriores e ordenou aos ministros gastarem mais tempo em conversas com o Congresso. Até agora, não fez nenhuma orientação em relação ao diálogo com a sociedade…
Sem o engajamento do povo brasileiro em torno de uma agenda de desenvolvimento e justiça social, inclusive a defesa de uma reforma política, a saliva não vai impedir que o governo seja tragado pela crise.
Parte da classe dominante, por sua vez, já tem uma proposta: consolidar um novo modelo político, o semipresidencialismo ou algo do gênero, que já exercem na prática, atropelando o plebiscito de 1993 e usurpando a soberania popular.
(*) Igor Felippe Santos é jornalista e analista político com atuação nos movimentos populares. @igorfelippesan nas redes sociais.
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