“Fazer a Reforma Agrária é garantir que esse planeta seja cuidado”, afirma Gilmar Mauro
Por Solange Engelmann
Da Página do MST
Chegamos a mais um Abril de Lutas, mês em que o MST realiza a Jornada Nacional de Lutas em Defesa da Reforma Agrária, este ano com o lema: “Ocupar, para o Brasil alimentar!”, durante todo o mês, com ações em todo o país.
Nesta Jornada, todos os anos, os trabalhadores/as Sem Terra cobram a realização de uma política de Reforma Agrária no Brasil. Política está prevista em Lei, na Constituição Federal de 1988, que no seu Artigo 184 determina que “compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social (…)”.
A Jornada de Lutas de Abril também traz a memória dos 21 Mártires da Terra, assassinados pela Polícia Militar do Pará, no Massacre de Eldorado do Carajás, no dia 17 de Abril de 1996. A data também é relembrada pela Via Campesina como o Dia Internacional da Luta Camponesa em todo o mundo.
Portanto, as reivindicações do MST na luta pela terra e pela Reforma Agrária há mais de 40 anos no Brasil, não foram criadas somente pela vontade dos Sem Terra, mas por estarem previstas na Lei maior do país. A Constituição determina, portanto, que o latifúndio que não cumpre a função social deve ser destinado para fins de Reforma Agrária, com o assentamento de famílias sem-terra nessas áreas. E também explica, no Artigo 186, o que é considerada como função social da terra:
“A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”, aponta a CF de 1988.
Mas, para que qualquer Lei seja cumprida no Brasil necessita-se de organização e capacidade de pressão social e, neste caso, isso depende das reivindicações dos trabalhadores/as do MST e dos demais movimentos populares no Brasil. Nesse sentido, a principal tática de luta adota pelo MST em seu processo histórico concentra-se na ocupação de terra, como um instrumento histórico e legítimo que não foi criado pelo MST, mas pelos movimentos de luta pela terra que o antecederam.
A ocupação de terra foi uma das formas encontradas para chamar a atenção da sociedade para o problema da concentração da terra no Brasil, dos sem-terra e da miséria no campo, bem como pressionar os governos para dar respostas sobre essa problemática, como explica o dirigente nacional do MST, Gilmar Mauro.
“[A ocupação] é a forma mais eficiente para mostrarmos para a sociedade e o governo. Foi principalmente com isso que nós conquistamos mais de 400 mil famílias assentadas em todo o Brasil. E se hoje, conseguimos oferecer produtos saudáveis, nós fazemos e desenvolvemos o princípio da solidariedade. Esta por trás desse gesto e dessa produção a ocupação de terras”.
O dirigente também enfatiza o papel da função social da terra no processo de luta pela terra, a importância da Reforma Agrária para as classes trabalhadoras, sua função central na produção de alimentos saudáveis, recuperação do meio ambiente e manutenção do planeta, além de projeções para o 7º Congresso do MST.
Confira a entrevista completa abaixo:
Você pode comentar sobre qual o papel da ocupação de terra na luta do MST e na produção de alimentos, para gerar vida e combater a fome no Brasil?
A ocupação é uma forma tática de luta anterior ao MST. Não foi criada em gabinete, mas pelas famílias sem-terra para buscar um espaço nessa imensidão de terras para a sobrevivência e para viver. O MST continuou fazendo ocupações de terra, não por achar bonito, não é fácil viver embaixo de lonas, embora haja beleza nas lutas, mas é a forma mais eficiente para mostrarmos para a sociedade e o governo: um, que existem famílias querendo terra para plantar e para viver; dois, que existem latifúndios improdutivos de grandes devedores, de violadores das legislações ambiental e trabalhista, trabalho análogo à escravidão, que existem terras públicas que não cumprem com a função social e três, que a conquista dessas áreas é fruto do povo organizado.
Foi principalmente com isso que nós conquistamos mais de 400 mil famílias assentadas em todo o Brasil. E se hoje, conseguimos oferecer produtos saudáveis, nós fazemos e desenvolvemos o princípio da solidariedade. Isso acontece, porque lá no início recebemos e continuamos recebendo muita solidariedade também.
Está por trás desse gesto e dessa produção a ocupação de terras, não que esta seja a única forma ou tática de luta, mas é uma das mais importantes táticas que o MST desenvolveu e tem.
Por que o MST defende a função social da terra e qual a importância disso no combate à concentração da terra, na produção de alimentos e no desenvolvimento do campo?
Não é só uma função social em relação às terras no Brasil, é a função social do planeta Terra. Nós estamos no momento em que o desenvolvimento da ordem do capital está provocando a destruição ambiental. O aquecimento global é um dos fatores. Nos últimos dez meses, a temperatura planetária subiu acima de 1,5 grau. Isso implicará na destruição cada vez mais acelerada do planeta e colocará em risco a existência humana nesse planeta.
Mas na particularidade brasileira, cumprir a função social estabelecida pela Constituinte de 88 é: um produzir racionalmente a terra em benefício de proprietários e dos trabalhadores; dois respeitar a legislação ambiental e três: respeitar a legislação trabalhista. Se nós fizermos qualquer estudo, e nem precisa ser profundo, vamos verificar que a grande maioria dos latifúndios e do dito agronegócio nesse país nem produz racionalmente, não respeita a legislação ambiental e não respeita a legislação trabalhista. Nós temos trabalhos análogos à escravidão, destruições ambientais gravíssimas em todo o país e, portanto, teríamos áreas de terra para a desapropriação ou expropriação, no caso de trabalho escravo e de desrespeito à legislação ambiental, para fazermos uma grande Reforma Agrária, para pensarmos um modelo de produção na agricultura completamente diferente.
E quando estamos falando em modelo de agricultura, nós não estamos falando de uma volta ao passado. Estamos falando de tecnologias que ajudem a diminuir a penosidade do trabalho agrícola, aumentem a produtividade, mas principalmente de alimentos saudáveis, como produção através de bio insumos, de agrofloresta, e de tecnologias que não agridam a natureza e o meio ambiente. É essa a Reforma Agrária que nós defendemos. É mais que uma Reforma Agrária, é uma revolução na agricultura brasileira e mundial, não só pela necessidade da categoria Sem Terra, pela necessidade da sobrevivência humana no nosso planeta.
Nesse sentido, qual a importância do MST e os movimentos sociais de luta pela terra em cobrar do Estado brasileiro a implantação de uma política de Reforma Agrária no país, para os trabalhadores/as que querem viver no campo?
A Reforma Agrária é uma bandeira burguesa que foi criada na Revolução Francesa e vários países em todo o mundo realizaram reformas agrárias como forma de resolver problemas sociais e de desenvolvimento econômico. No caso brasileiro, nunca houve uma Reforma Agrária. No período da ditadura militar nós tivemos a melhor legislação sobre reforma agrária, que foi o Estatuto da Terra. Melhor até que a Constituinte de 88. Entretanto, tem um ingrediente fundamental para a gente compreender, não basta ter uma boa legislação se não tiver movimento popular, fazendo luta e pressão. Ou seja, a ditadura criou uma boa lei, mas aniquilou as Ligas Camponesas e todo o movimento popular.
No Brasil, de 850 milhões de hectares de terra, nós plantamos com a agricultura em apenas 80 milhões. Destes, 21 milhões de hectares com milho, 45 milhões de hectares com soja, restando apenas 14 milhões de hectares de terra para todos os demais cultivos: feijão, arroz, batata, mandioca etc. E hoje, no Brasil, são 150 milhões de hectares em pastagens.
Por isso, fazer a Reforma Agrária é fundamental para a soberania e segurança alimentar, para resolver um problema social, histórico e grave, e para resolver os problemas da fome e da miséria. Não há outra alternativa que não seja utilizar essa imensidão que é o território brasileiro para a produção de comida, para sustentar o principal patrimônio de um país, que é o seu povo.
Fazer a Reforma Agrária, portanto, não é só alimentar o povo, é garantir que esse planeta seja cuidado, pois uma Reforma Agrária na atualidade terá que discutir a agroecologia, agrofloresta, a produção orgânica para produzir alimentos saudáveis e preservar a natureza.
O MST entende que a construção da Reforma Agrária Popular será feita pela classe trabalhadora. Como o Movimento tem se articulado para impulsionar essa organização e luta nos últimos 40 anos?
O MST surgiu defendendo três grandes bandeiras: lutar pela terra, pela Reforma Agrária e por transformação social. E tem um aspecto muito importante a ser destacado, uma organização que não responde às necessidades da categoria que a criou não tem sentido de ser para essa. O MST foi criado pela categoria sem-terra e, portanto, ele terá que dar respostas à categoria Sem Terra e terá que continuar fazendo lutas, portanto, ocupações e outras formas de luta para resolver os três objetivos propostos no seu princípio.
A luta pela Reforma agrária depende de mudanças na correlação de forças políticas, seja do governo, mas principalmente do Estado brasileiro. E por isso, não é uma luta só da categoria Sem Terra. É uma luta de muitos setores das classes trabalhadoras brasileiras, e isso implica numa mudança estrutural, seja da terra, mas também do Estado e das políticas públicas.
Uma Reforma Agrária Popular também significa levar políticas públicas, como uma boa educação para o campo, condições sociais, de saúde, de saneamento, de vida. Criar as condições nos assentamentos e no meio rural para que as pessoas vivam bem. E, ao mesmo tempo, ajudar a cuidar desse patrimônio brasileiro e mundial que é a terra.
Por isso, Reforma Agrária é fundamental e uma das coisas mais modernas na atualidade, no Brasil e no mundo.
O MST não é contra a titularização de terras nos assentamentos, mas defende a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) em contraposição ao Título de Domínio (TD), para que a terra seja passada de geração em geração e as famílias sigam com acesso às políticas públicas no campo. Como o MST tem buscado avançar nesse sentido?
Essa é uma questão muito especial, e tem a ver com a filosofia do MST. O Movimento defende que a terra, a água, sementes, biodiversidade e outros são patrimônio da humanidade e a terra, o planeta é o nosso espaço de vivência terrena. Por isso, defendemos que a terra não seja comercializada, que ela possa sim, nas áreas de assentamentos, ter algum documento que permita o seu uso e por isso, defendemos a Concessão Real de Uso, para que a terra seja repassada de pai para filho, para algum tipo de financiamento, etc; mas que não seja comercializada.
Aqui tem um ingrediente subjetivo, mas importante, que precisa ser discutido, que são os paradigmas de felicidade hoje, em função de estarmos subordinados à ordem do capital e da sua ideologia, a ideia de felicidade e de poder está associada ao ter, possuir, ganhar muito dinheiro. O que a gente quer como seres humanos, realmente? Quais são os paradigmas de felicidade que nós defendemos? Criar condições de viver bem ou do bem viver, é parte de uma construção política, concreta, que nós defendemos como MST. Nas áreas de assentamento e em todo o nosso país e no mundo. Por isso, discutir esse tema é fundamental. O que nós precisamos e queremos para sermos felizes e vivermos bem? É um belo debate para fazermos juntos, principalmente com as crianças e a juventude nesse momento.
Na construção do 7ª Congresso do MST, que diretrizes vêm sendo pensadas para avançar na produção de alimentos e combater a fome no país, a partir da Reforma Agrária?
Nós queremos fazer um Congresso massivo e não um Congresso só do MST, mas um Congresso que congregue outros setores da classe trabalhadora. Por quê? Porque hoje os progressistas em todo o planeta, enfrentam uma crise. Uma crise grave, que tem a ver com a crise do capital, mas que tem suas particularidades também porque é uma crise organizativa, uma crise política, uma crise de projeto, de mobilização.
E nós queremos criar as condições para que tenhamos uma metodologia de participação popular. O MST, de alguma forma, é uma referência e nós queremos projetar essa referência. Mas, mais do que isso é projetar valores, é projetar projeto político. E, por isso, vamos defender no nosso Congresso, sim, uma Reforma Agrária popular, uma revolução para a agricultura brasileira, com produção agroecológica, de agrofloresta, de preservação da natureza, de produção de comida e alimentos saudáveis, de melhores condições de vida.
Mas nós precisamos projetar uma luta anticapitalista e colocar o socialismo na pauta e na ordem do dia. Não devemos deixar de colocar esse tema do socialismo, da mudança da ordem de produção do capital para dentro do MST e para toda a sociedade. E isso implica debater no nosso Congresso novos valores e novas relações.
Nós estamos enfrentando na sociedade a barbárie, onde a violência, principalmente contra as mulheres, os negros, se agudiza a cada vez mais, inclusive dentro dos nossos territórios. E enfrentar isso de cabeça erguida, com força é parte dessa construção que nós queremos no nosso Congresso. Nós somos um farol, ou uma lanterna e temos que manter essa lanterna acesa para a classe trabalhadora, porque a única possibilidade de mudarmos o Brasil e esse planeta é que os conjuntos das classes trabalhadoras construam uma unidade política, ideológica, organizativa e de ação para mudarmos efetivamente a ordem política e econômica planetária.
*Editado por João Carlos
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