quarta-feira, 3 de abril de 2024

Portugal: Serviço militar obrigatório.

 


Serviço Militar Obrigatório, para que te quero?

O dogma do SMO, sempre para todas as épocas, ruiu porque as camadas jovens o derrotaram por inútil.

1 - No final do século XX, alcançou-se uma maioria para terminar com o Serviço Militar Obrigatório em tempo de paz. O repúdio juvenil à sua existência era generalizado. A tropa era um "atraso de vida" para toda a gente que queria lançar uma vida profissional ou familiar. A gangrena da criminosa guerra colonial ficara para trás e nenhum chefe militar podia alegar perigo para a integridade nacional. As Forças Armadas aprofundaram uma especialização que já vinha do período em que combateram a autodeterminação da Guiné, de Angola e de Moçambique e apenas uma parte dos militares tinha formação para tropas de elite. A maior parte dos mancebos arrastados para o serviço militar queixavam-se de serem apenas faxineiros nos quartéis.

2 - No entanto, alguns setores da esquerda não viram com bons olhos o fim do SMO. Continuavam presos a uma leitura estreita do conceito do exército ser "o povo em armas". Sabiam que as FAs cumpriam as funções de um exército burguês mas esperavam que, em período de crise revolucionária, os soldados do povo não virariam as armas contra as gentes das suas classes. Segundo Lenine, era essencial para a revolução socialista ganhar uma parte do exército para o seu lado. Todas essas teses não tinham em conta que, nas condições particulares de Portugal do pós-colonialismo, esses soldados da tropa de ocasião já não tinham formação nas armas modernas, ou em outras quaisquer. E também não seria a primeira vez que um exército profissionalizado quebrava a sua unidade a favor de uma revolução popular. O dogma do SMO, sempre para todas as épocas, ruiu porque as camadas jovens o derrotaram por inútil. É justo referir a luta dos pacifistas e objetores de consciência que enfrentaram a conscrição. Esse era outro setor do movimento contra o SMO, contra a existência de quaisquer exércitos.

3 - Um quarto de século depois o general CEME, Eduardo Ferrão, confirma esta apreciação em entrevista ao Expresso de 29/3. E cito: "num exército moderno e tecnológico exige-se que os seus militares, de todas as categorias, incluindo as praças, disponham de competências mais complexas e exigentes, quadro que não se coaduna com o recrutamento obrigatório, orientado apenas para assegurar efetivos por um período reduzido de tempo." Adianta Ferrão que esse período "não possibilita o tempo necessário para a obtenção das competências técnicas para a operação de sistemas de armas tão complexas e onerosas como as atuais." A reintrodução do SMO serviria, segundo o próprio, para uma cultura de Defesa Nacional. Outro chefe militar disse que aprenderiam o valor da disciplina através do SMO. Outros militares querem adoçar a pílula e rebatizam o SMO de Serviço de Cidadania, em jeito de um serviço civil e militar misto. Como está bem de se ver, nada se alterou nas teses de partida quanto ao SMO, sim ou não.

4 - Discutamos, então, a cultura de Defesa Nacional. De Nacional tem pouco porque a discussão provém dos chefes militares da NATO, a pretexto da invasão criminosa da Ucrânia pela Rússia. Se se pode compreender, e não justifico, que os países territorialmente próximos da Rússia mobilizem a sua população para a defesa civil e militar, para a maioria dos países europeus esse apelo não faz sentido. Racionalmente, não se pode prefigurar trincheiras por toda a Europa. A urgência é travar a guerra. Há que resolver a guerra na Ucrânia através de negociações. A União Europeia, em vez de se armar ainda mais, deveria ter um papel ativo na criação de uma mesa de paz. Esse clima, da dita Defesa Nacional, visa apenas a mentalização de que uma guerra é inevitável entre o "Ocidente" e a Rússia. Visa dar cobertura ao incessante crescimento das despesas militares e ao aumento sem precedentes de encomendas para fabricantes europeus de armamento. Entretanto, a extrema-direita está encantada com os louvores à instituição castrense. A chamada disciplina do SMO não passa de uma praxe gigante para rapazes e raparigas e anda a par com o autoritarismo crescente nas democracias.

5 - Macron e alguns outros governantes europeus querem, aparentemente, antecipar uma definição dos EUA quanto ao conflito da Ucrânia. Se Trump promete afastar-se da guerra na Ucrânia caso regresse à Casa Branca, então a radicalização europeia porá a América a reboque. Esse plano é estúpido, vindo de um homem que se autodenominou Júpiter,quase em fim de mandato, para lançar uma aventura de confrontação geral na Ucrânia, com óbvio desdém dos EUA que preferem aumentar a tensão com a China e desvalorizam o jogo de Putin. O risco nuclear seria tremendo e insuportável para exércitos convencionais. Creio que não é preciso descrever o horror para a vida.

Apesar de tudo, essa atitude de Macron desmente o habitual mito de que a Europa é um anão militar e precisa do protetorado americano para se defender de uma eventual agressão. Os países europeus conjugados têm um dos maiores exércitos do mundo e batem toda a tecnologia militar russa, exceto no potencial nuclear, apesar de disporem de duas potências nucleares, França e Grã Bretanha. O mito, difundido à náusea, de que a Europa ocidental é indefesa serviu sempre para legitimar a liderança dos EUA e, ao mesmo tempo, a pressão para aumentar as despesas militares.

6 - O mainstream da comunicação de referência não só dá as boas-vindas ao SMO, como quer a qualquer custo o gasto de 2% do PIB em despesas militares. Se o aumento da despesa militar não faz sentido numa Europa armada até aos dentes, ainda menos num país cujos níveis de bem estar social estão muito atrás de outros países da União Europeia. O senso comum fabrica narrativas que estão armadilhadas. À narrativa da escalada militar só podemos contrapor a necessidade de negociar acordos de desarmamento, controlado e global. Já o fizemos no passado e é a eles que teremos de voltar por pressão das opiniões públicas. Entretanto, SMO para que te quero? Para nada!

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, professor.

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