quinta-feira, 11 de abril de 2024

O massacre de Gaza....

 


O massacre de Gaza está a minar a cultura da democracia

Os apoiantes de Israel têm invocado repetidamente a memória do genocídio nazi para legitimar o assassínio em massa de civis em Gaza. O historiador Enzo Traverso alerta para o facto de a utilização cínica da memória do Holocausto constituir um grave perigo para a nossa cultura democrática global.
Foto de Montecruz Foto/Rise Up.
Foto de Montecruz Foto/Rise Up.

Aqueles que pensavam que o orientalismo estava morto no mundo global do século XXI cometeram um grande erro. Os pressupostos básicos dele, que Edward Said analisou há mais de quarenta anos, são visíveis em todo o lado.

Todos os nossos estadistas se deslocaram em peregrinação a Telavive para garantir a Benjamin Netanyahu o seu apoio incondicional a Israel. Não há debate, dizem-nos, quando a moral e a civilização estão em jogo. Mesmo agora que estes pressupostos tradicionais são profundamente abalados na opinião pública ocidental pelo espetáculo diário da fome e do massacre de crianças, eles combinam os seus apelos à moderação e ao humanitarismo com reafirmações do estatuto de Israel como vítima que deve defender-se.

Nunca ninguém menciona o direito dos palestinianos a defenderem-se de uma agressão que dura há décadas. Enquanto Israel obstrói qualquer entrega terrestre de assistência humanitária e médica, os governos ocidentais (com poucas exceções) continuam imperturbavelmente a apoiar financeira e militarmente uma potência genocida.

Depois de 7 de outubro, o limiar de tolerância aumentou muito, e o número de crianças mortas sob as bombas deixou de ser contabilizado. O Hamas matou 1-200 israelitas, incluindo oitocentos civis; o Tzahal, o exército israelita, matou pelo menos trinta e três mil palestinianos até à data, incluindo não mais de cinco mil combatentes do Hamas.

Tudo é planeado(link is external): destruição de estradas, escolas, universidades, hospitais, museus, monumentos e até cemitérios destruídos pelos bulldozers; interrupção do fornecimento de água, eletricidade, gás, combustível, Internet; negação do acesso dos deslocados a alimentos e medicamentos; evacuação de mais de 1,5 milhões dos 2,3 milhões de habitantes de Gaza para o sul da faixa, onde são novamente bombardeados; doenças e epidemias. Incapaz de erradicar o Hamas, o Tzahal iniciou a eliminação(link is external) da intelligentsia palestiniana: académicos, médicos, técnicos, jornalistas, intelectuais e poetas.

O Tribunal Internacional de Justiça da ONU, um dos produtos da ordem internacional ocidental, emitiu um aviso(link is external) de que a população palestiniana de Gaza está a ser sujeita a um massacre organizado e implacável, desenraizada e privada das condições mais básicas de sobrevivência. A guerra israelita em Gaza está a assumir características de genocídio. O orientalismo, porém, é mais forte do que o legado jurídico do Iluminismo.

Bastião da Europa

Quando o orientalismo nasceu, os judeus faziam parte do Ocidente como convidados ingratos, excluídos, humilhados e desprezados, habitualmente empurrados para as margens. Mesmo os judeus mais proeminentes e poderosos eram estigmatizados e considerados parvenus vulgares. Os judeus encarnavam a consciência crítica europeia.

Hoje, atravessaram a "linha de cor" e tornaram-se parte da chamada civilização judaico-cristã, amada e adulada por aqueles que outrora os desprezavam e perseguiam. Na Europa, a luta contra o antissemitismo tornou-se a bandeira por detrás da qual se aglutinam todos os movimentos pós-fascistas e de extrema-direita, prontos a lutar contra a "barbárie islâmica", ainda antes de terem abandonado os seus velhos preconceitos antissemitas.

Em 1896, o pai espiritual de Israel, Theodor Herzl, publicou o texto fundador do sionismo, O Estado dos Judeus, no qual definia este futuro Estado como "um bastião da Europa contra a Ásia, uma sentinela da civilização contra a barbárie". Em 2024, os termos da questão permanecem substancialmente inalterados, mas Netanyahu é muito mais respeitado e ouvido do que Herzl era há mais de um século. Herzl implorou a ajuda de algumas potências europeias; Netanyahu não tem medo de parecer arrogante e ingrato perante elas.

Desde há décadas que Israel viola o direito internacional e, atualmente, está a perpetrar um genocídio em Gaza com armas fornecidas pelos Estados Unidos e por vários países europeus. Estas potências ocidentais poderiam parar a guerra em poucos dias, mas são incapazes de negar o seu apoio a um governo corrupto, de extrema-direita, de criminosos de guerra, porque este governo faz parte delas, pelo que se limitam a recomendações e apelos à moderação.

Todos os grandes meios de comunicação ocidentais apoiaram sem reservas uma narrativa sionista que celebra descaradamente a história de uns e ignora ou nega a de outros. Na Europa e nos Estados Unidos, como Said observou antes, Israel nunca é tratado como um Estado, mas antes como "uma ideia ou um talismã qualquer", interiorizado para legitimar os piores abusos em nome de princípios morais elevados.

Décadas de ocupação militar, assédio e violência aparecem assim como a auto-defesa de um Estado ameaçado, e a resistência palestiniana como uma manifestação de ódio antissemita. Reinterpretada a partir de uma perspetiva orientalista, a história judaica desenrola-se como um longo martírio à espera de uma redenção bem merecida, e os palestinianos tornam-se um povo sem história.

Razão de Estado

Os estudantes pró-palestinianos são retratados como antissemitas raivosos em grande parte dos principais meios de comunicação social. Em várias universidades americanas, foram colocados numa lista negra ou ameaçados com sanções devido à sua participação em manifestações contra o genocídio em Gaza. Na Alemanha e em Itália, houve manifestações brutalmente reprimidas, enquanto o primeiro-ministro francês Gabriel Attal anunciou medidas severas contra os ativistas pró-Palestina.

A memória do Holocausto é ritualmente celebrada como uma religião civil na União Europeia, e a defesa de Israel tornou-se, como Angela Merkel e Olaf Scholz afirmaram repetidamente, a "Staatsraison" da República Federal da Alemanha (RFA). Hoje, a Alemanha invoca esta memória para justificar o massacre dos palestinianos em Gaza. Depois de 7 de outubro, o país está impregnado de uma atmosfera de caça às bruxas contra qualquer forma de solidariedade com a Palestina.

Porém a Alemanha é apenas a expressão paroxística de uma tendência mais vasta. Isto explica porque é que, especialmente nos Estados Unidos, muitos judeus levantaram a voz para dizer "não em meu nome".

As referências à "razão de Estado" são simultaneamente curiosas e reveladoras, enquanto admissão implícita de ambiguidade moral e política. Como qualquer estudioso da teoria política sabe, este conceito lembra-nos os lados obscuros e ocultos do poder político. Normalmente identificada com o pensamento de Nicolau Maquiavel, mesmo que o termo em si não apareça nos seus escritos, a raison d’état significa a transgressão da lei em nome de imperativos superiores de segurança do Estado.

É invocando a raison d'état que os serviços secretos dos Estados que aboliram a pena de morte planeiam a execução de terroristas e de outras pessoas que ameaçam a sua ordem social e política. De Maquiavel a Friedrich Meinecke e Paul Wolfowitz, a raison d'état alude a um "estado de exceção", o lado imoral de um Estado que transgride as suas próprias leis. Por detrás da razão de Estado não está a democracia, mas Guantánamo.

Assim, quando a RFA apoia Israel, invocando a Staatsraison, admite implicitamente a imoralidade da sua política. Atualmente, o apoio incondicional da Alemanha a Israel compromete a cultura, a pedagogia e a memória democráticas que foram construídas ao longo de várias décadas e, em particular, após o Historikerstreit, em meados dos anos 1980.

Esta política lança uma sombra negra sobre o Memorial do Holocausto que se ergue no coração de Berlim, que já não aparece como a expressão de uma consciência histórica atormentada e das virtudes da memória, mas antes como um imponente símbolo de hipocrisia.

A sanção da Justiça

Em 1921, o historiador francês Marc Bloch escreveu um interessante ensaio sobre a propagação de notícias falsas em tempo de guerra. Observou como, no início da Primeira Guerra Mundial, logo após a invasão da Bélgica neutral, os jornais alemães publicaram inúmeras notícias sobre atrocidades inacreditáveis. "Uma notícia falsa nasce sempre de representações coletivas anteriores ao seu nascimento", escreveu Bloch, tirando a seguinte conclusão: "A notícia falsa é o espelho onde 'a consciência coletiva' contempla as suas próprias características."

Ao lerem os jornais ocidentais após o ataque do Hamas de 7 de outubro, os historiadores tiveram uma curiosa sensação de déjà vu. Desta vez, porém, as mais antigas mitologias antissemitas foram subitamente mobilizadas contra os palestinianos. Bloch sublinhou que as notícias falsas e as lendas sempre "encheram a vida da humanidade". Muitos historiadores da inquisição e do antissemitismo descreveram cuidadosamente o papel desempenhado pelo mito do "assassínio ritual" desde a Idade Média até à Rússia czarista tardia. O rumor de que os judeus estavam a matar crianças cristãs para usar o seu sangue para fins rituais era amplamente difundido antes da realização de um pogrom.

Depois de 7 de outubro, a maior parte dos meios de comunicação ocidentais, incluindo muitos jornais prestigiados e supostamente sérios, publicaram notícias sobre mulheres grávidas estripadas e crianças decapitadas(link is external) ou colocadas em fornos por combatentes do Hamas. Estas invenções(link is external) divulgadas pelo exército israelita foram imediatamente aceites como provas – tanto Joe Biden como Antony Blinken repetiram-nas nos seus discursos – enquanto a sua refutação só foi sussurrada à margem algumas semanas mais tarde. Os mitos são performativos, como observou Bloch: "No momento em que um erro se torna a causa de um derramamento de sangue, é irrevogavelmente estabelecido como verdade".

Depois da Segunda Guerra Mundial, muitos combatentes da Resistência comunista que tinham sido deportados para os campos nazis negaram a existência dos gulags soviéticos. Tinham interiorizado profundamente um poderoso silogismo: a URSS é um país socialista, socialismo significa liberdade, logo os campos de concentração não podem existir e devem ser um produto da propaganda americana.

Uma negação semelhante é hoje generalizada entre as pessoas convencidas de que Israel, um país que ressurgiu das cinzas do Holocausto, não pode perpetrar um genocídio. Aos seus olhos, Israel é uma democracia autêntica e a ocupação dos territórios palestinianos uma proteção necessária contra uma ameaça vital. Os crentes criam as suas próprias verdades, verdades que não perturbam a sua fé. Os verdadeiros crentes sionistas não diferem muito dos verdadeiros crentes estalinistas.

Os meios de comunicação social ocidentais confortam estes preconceitos através da difusão de mentiras. O orientalismo é o terreno fértil dos mitos, das negações e das notícias falsas. Invertendo a realidade, foi assim elaborada uma narrativa paradoxal que transforma Israel de opressor em vítima. De acordo com esta narrativa, o Hamas quer destruir Israel, o antissionismo é antissemitismo e nega o direito de Israel a existir, e o anticolonialismo revelou finalmente a sua matriz anti-ocidental, fundamentalista e antissemita.

A luta contra o antissemitismo será cada vez mais difícil depois de ter sido tão ostensivamente mal compreendido, desfigurado, transformado em arma de arremesso e banalizado. Sim, existe o risco de banalizar o próprio Holocausto: uma guerra genocida travada em nome da memória do Holocausto só pode ofender e desacreditar a própria memória. A memória da Shoah como uma "religião civil" – a sacralização ritualizada dos direitos humanos, do antirracismo e da democracia – perderá todas as suas virtudes pedagógicas.

No passado, esta "religião civil" serviu de paradigma para a construção da memória de outros crimes e genocídios, desde as ditaduras militares na América Latina, passando pelo Holodomor na Ucrânia, até ao genocídio dos Tutsis no Ruanda. Se essa memória fosse identificada com a estrela de David usada por um exército genocida, as consequências seriam devastadoras.

Durante décadas, a memória do Holocausto tem sido uma força motriz do antirracismo e do anticolonialismo, utilizada para lutar contra todas as formas de desigualdade, exclusão e discriminação. Se este paradigma memorial fosse desnaturado, entraríamos num mundo onde tudo é equivalente e as palavras teriam perdido o seu valor. A nossa conceção de democracia, que não é apenas um sistema de leis, mas também uma cultura, uma memória e um legado histórico, ficaria enfraquecida. O antissemitismo, historicamente em declínio, conheceria um ressurgimento espetacular.

A força do desespero

O ataque do Hamas de 7 de outubro foi atroz e traumático. Foi pretendido que fosse assim, e nada o justifica. Mas deve ser interpretado e não apenas deplorado, muito menos mitificado e rodeado de uma aura de atrocidade diabólica.

Há um velho debate sobre a dialética entre o objetivo e os meios. Se o objetivo é a libertação de um povo oprimido, há meios que são incompatíveis com esse objetivo: a liberdade não se harmoniza com a morte de civis. No entanto, estes meios incongruentes e desprezíveis foram utilizados no decurso de uma luta legítima contra uma ocupação ilegal, desumana e inaceitável.

O 7 de outubro foi o resultado extremo de décadas de ocupação, colonização, opressão, humilhação e assédio diário. Todos os protestos pacíficos foram reprimidos com sangue, os Acordos de Oslo foram sempre sabotados por Israel e a Autoridade Palestiniana, totalmente impotente, atua na Cisjordânia como polícia adjunta do Tzahal. Israel preparava-se para "negociar a paz" com os Estados árabes à custa dos palestinianos e os seus dirigentes reconheciam abertamente o objetivo de continuar a expandir as colónias na Cisjordânia.

De repente, o Hamas voltou a pôr tudo em jogo. O seu ataque revelou a vulnerabilidade de Israel, que podia ser atacado dentro das suas próprias fronteiras. Através do Hamas, os palestinianos mostraram-se capazes de atacar e não apenas de sofrer. A violência palestiniana tem a força do desespero. Não se trata de partilhar esse desespero, mas é necessário compreender as suas raízes.

Subitamente, o Hamas voltou a colocar tudo em jogo. O seu ataque revelou a vulnerabilidade de Israel, que podia ser atacado dentro das suas próprias fronteiras. Através do Hamas, os palestinianos mostraram-se capazes de atacar e não apenas de sofrer. A violência palestiniana tem a força do desespero. Não se trata de partilhar esse desespero, mas é necessário compreender as suas raízes.

Até à data, pelo contrário, qualquer esforço para a compreender foi eclipsado por uma condenação absoluta e inabalável que rapidamente se transformou num pretexto para legitimar uma guerra contra civis palestinianos muito mais letal do que o ataque do Hamas. Isto explica a popularidade e o apoio ao Hamas, que não é certamente redutível à sua autoridade coerciva, em particular entre os jovens palestinianos da Cisjordânia.

Assassinar e ferir civis era prejudicial para a causa palestiniana. A reprovação incontornável destes meios de ação não põe, no entanto, em causa a legitimidade da resistência palestiniana à ocupação israelita, uma resistência que implica o recurso às armas. O terrorismo tem sido frequentemente a arma dos pobres nas guerras assimétricas. O Hamas corresponde bem à definição clássica de "partisan": um combatente irregular com uma forte motivação ideológica, enraizado num território e numa população que o protege.

O exército israelita faz prisioneiros, incluindo adolescentes e familiares de combatentes, cuja detenção administrativa pode durar meses ou anos, enquanto o Hamas só pode fazer reféns. O Hamas lança foguetes, enquanto Israel inflige "danos colaterais" durante as suas operações militares. O seu terrorismo é apenas um contraponto ao terrorismo de Estado israelita. Se o terrorismo é sempre inaceitável, o do oprimido é geralmente engendrado pelo do seu opressor, que é muito pior.

Jean Améry escreveu que, quando foi torturado pelos nazis na fortaleza de Breendonck, enquanto combatente da Resistência, quis dar "forma social concreta à sua dignidade, esmurrando um rosto humano", o rosto do seu opressor. Uma das tarefas mais difíceis, observou em 1969, consistia em transformar a violência estéril e vingativa numa violência libertadora e revolucionária. Os seus argumentos, que refletem a obra de Frantz Fanon, merecem uma longa citação:

“A liberdade e a dignidade têm de ser alcançadas através da violência, para serem liberdade e dignidade. Mais uma vez: porquê? Não tenho medo de introduzir aqui o conceito intocável e abjeto de vingança, que Fanon evita. A violência da vingança, ao contrário da violência opressiva, cria a igualdade na negatividade: no sofrimento. A violência repressiva é a negação da igualdade e, portanto, do homem. A violência revolucionária é eminentemente humana. Sei que é difícil habituarmo-nos a este pensamento, mas é importante considerá-lo, pelo menos no espaço não vinculativo da especulação. Para prolongar a metáfora de Fanon: o oprimido, o colonizado, o preso do campo de concentração, talvez mesmo o escravo assalariado latino-americano, deve poder ver os pés do opressor para poder tornar-se um ser humano e, inversamente, para que o opressor, que não é humano nesse papel, se torne também um.

Do Rio até ao Mar

O 7 de outubro e a guerra de Gaza marcaram o fracasso dos Acordos de Oslo. Longe de lançar as bases para uma paz duradoura baseada na coexistência de dois Estados soberanos, estes acordos foram imediatamente sabotados por Israel, tornando-se a premissa para a colonização da Cisjordânia, a anexação de Jerusalém Oriental e o isolamento de uma Autoridade Palestiniana corrupta e desacreditada.

O fracasso dos Acordos de Oslo marca o fim do projeto dos dois Estados. Ainda vagamente contemplado por europeus e americanos – sem consultar quaisquer representantes palestinianos – para uma reavaliação da região no pós-guerra, hoje isso significa essencialmente um ou dois bantustões palestinianos sob controlo militar israelita. A hipótese dos dois Estados tornou-se impossível, embora, nas circunstâncias da guerra genocida em Gaza, um Estado binacional também seja dificilmente imaginável.

Há vinte anos, Edward Said pensava que um Estado binacional e laico, capaz de garantir aos seus cidadãos judeus e palestinianos uma completa igualdade de direitos, era o único caminho possível para a paz. É esse o sentido da palavra de ordem hoje reivindicada por milhões de manifestantes em todo o mundo (incluindo um grande número de judeus): "Do rio ao mar, a Palestina será livre", embora a maior parte dos grandes meios de comunicação social persista em considerá-la antissemita.

É claro que o futuro de Israel-Palestina deve ser decidido pelas pessoas que lá vivem. A autodeterminação, no entanto, não deve evitar algumas lições históricas. Atualmente, uma solução de dois Estados só poderia funcionar através de um processo de purgas territoriais inter-étnicas. Esta seria uma solução irracional numa terra partilhada pelo mesmo número de judeus e palestinianos.

Mesmo supondo a criação da Palestina como um Estado autenticamente soberano, o que é altamente improvável, isso não seria satisfatório a longo prazo. Um Estado sionista ao lado de um Estado islâmico seria uma regressão histórica que não poderia abrigar qualquer diálogo ou intercâmbio entre culturas, línguas e credos. Como nos diz a história da Europa Central e dos Balcãs no século XX, esta perspetiva resultaria em tragédia.

Por isso, muitos veem como única solução um Estado binacional em que judeus e palestinianos coexistam em pé de igualdade. Hoje, esta opção parece impraticável, mas se pensarmos a longo prazo, parece lógica e coerente. Em 1945, a ideia de construir uma União Europeia reunindo a Alemanha, a França, a Itália, a Bélgica e os Países Baixos parecia estranha e ingénua. A história está cheia de preconceitos que são abandonados e que, em retrospetiva, parecem estúpidos. Por vezes, as tragédias servem para abrir novas perspetivas.

Há vinte anos, Said perguntava com preocupação "onde estão os equivalentes israelitas de Nadine Gordimer, Andre Brink, Athol Fugard, dos escritores brancos da África do Sul que se manifestaram de forma inequívoca e sem ambiguidades contra os males do apartheid?". Hoje, este silêncio é igualmente ensurdecedor, quebrado por algumas vozes isoladas. Mas a situação alterou-se profundamente. Israel revelou-se vulnerável e, sobretudo, através da sua fúria destruidora, desprovido de qualquer legitimidade moral.

A causa palestiniana tornou-se uma bandeira do Sul Global e de amplas camadas da opinião pública, especialmente dos jovens, tanto na Europa como nos Estados Unidos. O que está em jogo hoje não é a existência de Israel, mas a sobrevivência do povo palestiniano. Se a guerra de Gaza acabar numa segunda Nakba, é a legitimidade de Israel que ficará permanentemente comprometida. Nesse caso, nem as armas americanas, nem os meios de comunicação ocidentais, nem a Staatsraison alemã, nem a memória deturpada e injuriada do Holocausto serão capazes de a redimir.


Enzo Traverso é professor na Cornell University. O seu livro mais recente é Revolution: An Intellectual History.

Publicado originalmente na Jacobin(link is external). Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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