Rússia, China e a terapia de choque
Isabella Weber mostra as reformas da China terem sido graduais – não apenas em termos de ritmo, mas também na passagem das margens do antigo sistema industrial para o seu núcleo. A mercantilização gradual acabou por transformar toda a economia política, enquanto o Estado mantinha o controle sobre os postos de comando da economia de mercado.
Publicado em 15/04/2024 // 1 comentário
Por Fernando Nogueira da Costa
Como a China escapou da terapia de choque: o debate da reforma de mercado, livro de autoria de Isabella M. Weber, é de leitura muito oportuna para entender como a China ficou rica. A China contemporânea é a maior exportadora (US$3,714 trilhões, em 2022) no capitalismo globalizado, bem à frente da Alemanha (US$2,078 trilhões) e dos Estados Unidos (US$2,064 trilhões).
O crescimento da China acima dos demais países ocorreu por ter evitado uma convergência institucional com o neoliberalismo. Escapou da universalização do modelo econômico “ocidental”. A mercantilização gradual facilitou a ascensão econômica da China sem levar à assimilação generalizada.
Orientada pelo Estado da China, não foi uma escolha “natural”, predeterminada pela excepcional história chinesa. Na primeira década de “reforma e abertura”, sob Deng Xiaoping (1978-1988), a abertura comercial da China foi forjada em um debate acirrado entre economistas defensores de uma liberalização ao estilo da terapia de choque e os promotores da mercantilização gradual.
O contraste entre a ascensão da China e o colapso econômico da Rússia é ilustrada pela terapia de choque – uma prescrição de política econômica essencialmente neoliberal – aplicada à economia russa, antes a maior do socialismo de Estado. As posições da Rússia e da China, na economia mundial, foram invertidas, desde quando implementaram diferentes modos de mercantilização.
A Rússia sofreu a desindustrialização, tornando-se apenas exportadora de energia, enquanto a China se tornou a oficina industrial do capitalismo mundial. Dado o baixo nível de desenvolvimento da China, em comparação com o da Rússia, no início da reforma, a terapia de choque teria provavelmente causado sofrimento humano em escala ainda mais extraordinária diante do ocorrido na Rússia. Teria minado, se não destruído, os alicerces da ascensão econômica da China.
Isabella Weber destaca o papel fundamental desempenhado pelo debate econômico nas reformas de mercado da China ser largamente ignorado. Ela se pergunta por quais motivos intelectuais a China escapou à terapia de choque.
O desvio da China do ideal neoliberal não ocorreu por causa da dimensão do Estado chinês, mas sim devido à natureza da sua governança econômica. Um Estado neoliberal não é pequeno nem fraco, mas sim forte quando o seu objetivo é fortalecer o mercado.
Nos termos mais básicos, isto significa a proteção dos preços livres como mecanismo econômico central para estabelecimento do “equilíbrio dos preços relativos”. Em contraste, o Estado chinês utiliza o mercado como uma ferramenta no alcance dos seus objetivos de desenvolvimento mais amplos.
Preserva um grau de soberania econômica protetor da economia da China contra o mercado global, como demonstraram as crises financeiras asiáticas, de 1997, e global, de 2008. A abolição do “isolamento econômico” era o objetivo neoliberal e por isso a atual governança global foi concebida para pôr fim a qualquer protecionismo de mercado nacional contra o mercado global.
A recusa da China em adotar a terapia de choque significou seu Estado manter a capacidade de isolar os postos de comando da economia – os setores mais essenciais para a estabilidade econômica e o crescimento – enquanto se integrava no capitalismo global. Isabella Weber recapitula, brevemente, a lógica da terapia de choque.
Era um pacote abrangente de políticas a serem implantadas de uma só vez para transformar de repente as economias planificadas em economias de mercado. O pacote consistia em (i) liberalização de todos os preços em um só big bang, (ii) privatização, (iii) liberalização comercial e (iv) estabilização, sob a forma de políticas monetárias e fiscais restritivas. Até hoje há liberalização de preços complementada com austeridade fiscal. Os terapeutas do choque pregavam a plena liberalização dos preços internos como pré-condição. Acima de tudo colocavam a determinação dos preços pelo livre-mercado.
A razão mais profunda para a tendência para a liberalização de preços residia no conceito neoclássico do mercado apenas como um mecanismo de preços, abstraindo as realidades institucionais. Nessa perspectiva, o mercado é a única forma de organizar racionalmente a economia e o seu funcionamento depende de preços livres. Só.
A liberalização de todos os preços de uma só vez corrigiria a distorção dos preços relativos – uma herança estalinista na Rússia – demasiado baixos para a indústria pesada de bens de capital e demasiado elevados para a indústria leve de bens de consumo e serviços. Uma transição bem-sucedida, para uma economia de mercado, exigiria a liberação de preços para orientar a alocação de recursos.
Essa liberalização dos preços do atacado (produtores) teria de ser combinada com uma política de estabilização para controlar o nível geral de preços do varejo (consumidores). Segundo os neoliberais, as verdadeiras causas da inflação persistente nas economias socialistas estatais eram o excesso de demanda, devido a grandes déficits orçamentários com a “restrição fiscal branda”, políticas monetárias com “dinheiro farto e barato”, e aumentos salariais resultantes da política de desemprego zero. Na opinião dos terapeutas de choque, esses problemas poderiam ser aliviados por uma “forte dose de austeridade macroeconômica”. Eram só monetários – e não estruturais.
Um aumento no nível global de preços desvalorizaria as poupanças e, assim, reduziria o excesso crônico de demanda agregada, vivenciado nas economias socialistas. O custo de privar os cidadãos da modesta riqueza às duras custas acumuladas sob o socialismo de Estado foi considerado uma dor necessária. De fato, representou uma redistribuição regressiva benéfica às elites da nomenclatura detentoras de ativos não monetários.
Como se observa hoje na Argentina de Javier Milei, forçar relações de mercado na sociedade, de repente, depende de impor ainda maior desigualdade. A redistribuição de baixo para cima faz parte da terapia de choque.
Esperava-se a destruição da economia comandada dar, automaticamente, origem a uma economia de mercado. Era uma receita para destruição, não para construção. Depois de a economia planificada ter sido “chocada até à morte”, esperava-se a “mão invisível” operar e, de forma milagrosa, permitir o surgimento de uma economia de mercado.
A doutrina ideológica neoliberal vem de uma leitura neoclássica da obra de Adam Smith. De acordo com ela, seria natural a “propensão humana para transportar e trocar uma coisa por outra” como o “princípio da divisão do trabalho”, capaz de aumentar a produtividade. O mercado, desenvolveu-se lentamente enquanto as instituições facilitadoras das trocas de mercado eram construídas. Neste percurso lento e gradual, a “mão invisível” e, com ela, o mecanismo de preços livres demoraria a funcionar. Em contrapartida, a lógica da terapia de choque afirma um país atrasado ter condições de “saltar para a economia de mercado”.
Seria fácil a pré-condição de uma “mudança revolucionária nas instituições”. Por exemplo, foi necessário o colapso do Estado soviético e do regime comunista de partido único, em dezembro de 1991, antes de um big bang ser implementado com a eliminação de quase todos os controles de preços, embora se temesse a inquietação social.
Com a promessa de ganhos em longo prazo, o big bang prescreveu sofrimentos em curto prazo. Afetaram imediatamente os interesses dos trabalhadores e das empresas, bem como dos tecnocratas governamentais, exceto os oportunistas associados aos beneficiários da privatização. A liberalização radical dos preços só se tornou politicamente viável depois da dissolução do Estado soviético.
Em vez do aumento único previsto no nível de preços, a Rússia entrou em um período prolongado de inflação muito elevada, combinada com uma queda na produção, seguida de baixas taxas de crescimento da renda e do emprego. Quase todos os países pós-socialistas (e latino-americanos) ao aplicarem alguma versão de terapia de choque experimentaram uma recessão profunda e prolongada. Pior, a maioria das medidas de bem-estar humano, tais como o acesso à educação e à saúde pública, a ausência de pobreza e a menor desigualdade social, entraram em colapso.
O resultado macroeconômico das políticas de reforma de mercado da China foi o oposto do da Rússia: a inflação foi baixa ou moderada, mas o crescimento da produção foi extremamente rápido. A China seguiu uma abordagem experimentalista, utilizando as realidades institucionais dadas, para construir um novo sistema econômico.
O Estado recriou gradualmente mercados à margem do antigo sistema. Isabella Weber mostra as reformas da China terem sido graduais – não apenas em termos de ritmo, mas também na passagem das margens do antigo sistema industrial para o seu núcleo. A mercantilização gradual acabou por transformar toda a economia política, enquanto o Estado mantinha o controle sobre os postos de comando da economia de mercado.
Publicado no site A Terra é redonda.
Primeira obra da economista Isabella Weber, Como a China escapou da terapia de choque é uma análise original e fecunda das reformas econômicas que moldaram o caminho da China ao longo das últimas décadas. Fruto de extensa pesquisa e uma quantidade substantiva de entrevistas, o livro apresenta as ações que permitiram ao país asiático seguir o caminho da reindustrialização gradual e chegar ao século XXI como uma das principais potências mundiais.
Com foco na encruzilhada econômica dos anos 1980, a obra apresenta o trajeto econômico chinês a partir da não adesão à “terapia de choque” neoliberal, caminho traçado pelos países da antiga União Soviética. Weber oferece, ainda, uma perspectiva inédita sobre o modelo econômico da China e suas contínuas contestações internas e externas. Resultado disso, Como a China escapou da terapia de choque ganhou dois importantes prêmios em 2021, quando foi lançado nos Estados Unidos, e integrou a lista de melhores livros do ano do Financial Times.
A obra tem tradução de Diogo Faia Fagundes, texto de orelha de Elias Jabbour e capa de Maikon Nery.
Neste episódio de Conversas camaradas recebemos Celso Rocha de Barros, Elias Jabbour e Tings Chak para uma conversa que tem como tema uma das principais potências mundiais, que desperta o interesse e a atenção dos mais diferentes espectros políticos: a China, com destaque especial para China: o socialismo do século XXI, de Elias Jabbour e Alberto Gabriele e Como a China escapou da teoria de choque: o debate da reforma de mercado, de Isabella Weber. Socialismo de mercado ou capitalismo de Estado? Como ocorreu a erradicação da pobreza no país? Quais as diferenças entre o modelo chinês e o soviético? Como o Brasil pode aprender com a China? Essas e outras questões são debatidas pelos nossos convidados.
Confira a playlist Para entender a China, com diversos vídeos sobre o tema na TV Boitempo:
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Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).
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