segunda-feira, 15 de abril de 2024

"Invasão Zero", nova milícia dos latifundiários.

 


Polícia Federal investiga grupo ‘Invasão Zero’, apontado como miliciano na Bahia

Criado por fazendeiros, ‘Movimento Invasão Zero’ é acusado por organizações indígenas de práticas de organização criminosa e incitação ao crime. PF abre investigação, mas não comenta o caso. Líder nega a classificação de "milícia" e afirma que grupo reúne produtores em defesa de suas propriedades
POR DIEGO JUNQUEIRA | EDIÇÃO PAULA BIANCHI
 11/04/2024

ACUSADO POR INDÍGENAS e trabalhadores rurais de atuar como milícia armada no sul da Bahia, o Movimento Invasão Zero está sendo investigado pela Polícia Federal (PF), segundo confirmou a corporação à Repórter Brasil.

A apuração está a cargo da delegacia da PF em Porto Seguro (BA) e corre sob sigilo, em um inquérito separado do que apura o assassinato de Maria de Fátima Muniz, a Nega Pataxó, ocorrido em 21 de janeiro em Itapetinga (BA). Líder espiritual do povo pataxó hã hã hãe e professora, ela foi morta a tiros pelo filho de um fazendeiro ligado ao Invasão Zero, após o movimento convocar produtores rurais para expulsar indígenas que ocupavam uma fazenda.

A investigação sobre o movimento foi confirmada por outras duas fontes que acompanham o conflito entre indígenas e fazendeiros na Bahia. A PF não dá detalhes sobre o caso.

O inquérito foi aberto após a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e a Apoinme (Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo) apresentarem em fevereiro uma notícia-crime contra o movimento, por suposta prática de organização criminosa e incitação ao crime.

Segundo a denúncia, o movimento ruralista seria formado por “agrupamentos paramilitares de produtores rurais para retirar à força movimentos sociais que estão em ocupações rurais (MST) ou retomadas de territórios tradicionais (indígenas)”.

As retomadas indígenas são ações de autodemarcação de território, em que as comunidades ocupam propriedades localizadas em áreas consideradas ancestrais. Esses atos de protesto são uma forma de recuperar locais ocupados por seus ancestrais e de pressionar o governo federal a regularizar terras indígenas. 

No sul da Bahia, há pelo menos quatro terras indígenas que já tiveram seus limites definidos pela Funai (processo que confirma a ocupação tradicional do local), mas não tiveram a demarcação concluída, situação que agrava o conflito por terras. São elas: Tupinambá de Olivença, Tupinambá de Belmonte, Barra Velha do Monte Pascoal e Comexatiba. 

Além delas, os conflitos também se verificam nos arredores da Terra Indígena Caramurú Catarina Paraguaçú, onde Nega Pataxó foi assassinada. O território foi demarcado há cerca de cem anos, mas os pataxó hã hã hãe pedem ampliação da área alegando erros na delimitação.

Procurado pela Repórter Brasil, o movimento disse que funciona dentro da legalidade e “com apoio do poder público, especialmente a Polícia Militar”. “Temos uma cartilha que deixa bem claro que nossas ações são praticadas sem violência”, diz o grupo, por meio de nota.

“Refutamos a alcunha de milícia privada. Se fôssemos milícia, não teríamos CNPJ, não agiríamos nos limites da legalidade nem pediríamos o apoio da Polícia Militar. Somos produtores rurais defendendo nossas terras”, continua a nota (leia na íntegra).

Cacique Nailton e Nega Pataxó caídos após serem atingidos no confronto de 21 de janeiro (Foto: Povo Pataxó Hã Hã Hãe)

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PMs são acusados de fazer segurança de fazendeiros

Criado há um ano, o Invasão Zero já realizou ao menos sete ações com o mesmo enredo: por WhatsApp, fazendeiros organizam comboios com dezenas de caminhonetes para expulsar indígenas e sem-terra de fazendas recém ocupadas. 

O fator comum a todas as “operações” é a presença de policiais militares. Contudo, segundo o MST e movimentos indígenas, os agentes atuam em apoio aos fazendeiros. Alguns relatos apontam até que os policiais seriam contratados pelos empresários para fazer a proteção das propriedades.

No episódio que culminou com a morte de Nega Pataxó em janeiro, o irmão dela, cacique Nailton Pataxó, também ferido, relatou à Repórter Brasil que PMs faziam a “proteção” dos fazendeiros durante a ação e “abriram caminho” para as caminhonetes se aproximarem da área ocupada pelos indígenas. 

Um ofício sigiloso da Funai acessado pela reportagem reforça a relação estreita entre policiais e o Invasão Zero.

“Segundo relato dos indígenas, várias guarnições da Polícia Militar da Bahia foram até a fazenda ocupada, estabeleceram o diálogo com os indígenas e disseram para não avançarem na ocupação de outras fazendas, pois eles estavam fazendo a segurança das fazendas na região para evitar conflitos”, diz o documento.

O ofício indica ainda que, na mesma noite, um outro grupo de policiais militares teria entrado na Terra Indígena Caramurú Catarina Paraguaçú e invadido uma casa, onde “agrediram fisicamente” e “torturaram” cinco indígenas. Os oficiais ainda teriam destruído aparelhos de celular e câmeras de vigilância, além de furar pneus de um carros e várias motocicletas. 

As denúncias foram encaminhadas pela Funai a órgãos públicos estaduais e federais.

Procurada, a Polícia Militar da Bahia disse que prendeu em flagrante os autores do crime que vitimou a indígena pataxó, e que uma equipe da Corregedoria da PM ouviu as pessoas que denunciaram ações ilegais de servidores. “Apurações foram abertas para elucidar cada fato”, diz a corporação, em nota.

A PM afirmou também que “mantém equipes no local desde o ocorrido, intensificando rondas ostensivas” na região, “a fim de garantir a segurança e a incolumidade de todos”. A corporação ainda declarou que “não coaduna com ilegalidades”, e que sua atuação se pauta por “protocolos e normas legais”.

A suposta atuação de milícias na Bahia também é investigada pela Polícia Civil. A Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado informou à Repórter Brasil que a Polícia Civil “segue investigando a possível existência de organizações criminosas, sob a forma de milícias, atuando na região, e busca identificar possíveis envolvidos na articulação de ataques armados voltados à intimidação de lideranças indígenas e defensores de direitos humanos”.

Já a Secretaria de Segurança Pública afirmou que as operações de segurança na região foram intensificadas para “evitar conflitos” e “identificar e prender envolvidos em atividades ilícitas”. Leia as manifestações na íntegra.

Em 12 de março deste ano, movimentos indígenas se reuniram com membros da Secretaria de Segurança Pública da Bahia (Foto: Divulgação/SSP-BA)

Luiz Henrique Uaquim da Silva, um dos líderes do Invasão Zero, defende a participação da PM nas ações do grupo. Segundo ele, os agentes atuam de forma legalista para “evitar um conflito maior”. 

“Ninguém age sem a polícia”, diz o empresário à reportagem, em entrevista concedida no final de fevereiro. Pecuarista e cacauicultor, Uaquim comanda há mais de uma década diversas ações para impedir demarcações de terras indígenas no sul da Bahia. Ele já fundou pelo menos três associações para defender os interesses de produtores rurais, incluindo o Invasão Zero, além de ter participado das CPIs da Funai e do Incra, em 2017, e do MST, no ano passado.

“Se você tem uma fazenda invadida, vai procurar quem? No Rio de Janeiro você chama a milícia? No seu estado você chama o PCC? Não. Você tem que procurar a delegacia e fazer o BO. A Polícia Militar tem a obrigação de lhe socorrer porque ela é feita para manter a lei e a ordem. E, neste caso, você está sendo esbulhado, invadido, por um grupo”, afirma.

Segundo o empresário, os indígenas que ocuparam a fazenda estavam “encapuzados e com armas pesadíssimas”, como “escopeta, rifle e revólver .38”, e seriam parte de “um novo cangaço” em ação na Bahia.

“Quem está liderando o cangaço que invadiu a fazenda do rapaz? Porque aquilo não é movimento indígena. [Se fosse] o cara vem no mínimo trajado de índio. Agora, o cara vem encapuzado, 14 homens armados”, afirma ele.

Por esses motivos, Uaquim defende a atitude do jovem que atirou em Nega Pataxó e a matou. “Lá tinha um garoto armado, se não tivesse, eles iam atirar em quem? Se o menino não revida, aquilo não tinha fim. Então no meu entendimento [a morte] foi uma fatalidade”, diz.

PMs já participaram de outras ações com fazendeiros baianos

A suposta aliança entre PMs e fazendeiros baianos foi confirmada pela Polícia Federal em outros episódios de violência contra os povos indígenas na Bahia. Desde 2022, pelo menos quatro indígenas foram mortos em conflitos por terra, e ao menos quatro policiais militares foram presos pela PF por envolvimento nesses crimes. 

Em junho de 2022, cerca de 60 indígenas pataxós ocuparam a Fazenda Brasília, em Porto Seguro (BA), localizada dentro da TI Barra Velha do Monte Pascoal. No dia seguinte, eles foram expulsos em uma operação semelhante às realizadas pelo Invasão Zero, em que proprietários de terra se mobilizaram pelo  WhatsApp  e expulsaram os indígenas do local sem ordem judicial.

Uma denúncia sobre o caso apresentada ao MPF na época pela Finpat (Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia) apontou a atuação de um “grupo paramilitar fortemente armado voltado para a prática/difusão do racismo e da violência” contra indígenas.

De acordo com a denúncia, cerca de 200 “fazendeiros, pistoleiros, milicianos e supostos policiais militares entraram na área ocupada com aproximadamente 50 caminhonetes e outros veículos, portando arma de fogo de grosso calibre (pistolas 0.40, fuzis e escopetas 12), armamento de uso restrito das forças armadas, com dezenas de armas em punho apontadas em direção dos indígenas. Os indivíduos, em sua maioria, estavam encapuzados com touca ninja, um deles se identificou como proprietário da Fazenda Brasília e outro como Policial da CAEMA (força da PM da Bahia)”.

“Toda essa sucessão de fatos aqui narrada demonstra a existência de uma organização criminosa armada, com divisão de tarefas e, ao que tudo indica, presença de policiais em desvio de função”, diz trecho da denúncia da Finpat. Vídeos e fotografias reunidos na época pela organização indígena indicam o uso de veículos privativos da PM baiana.

A partir dali, a PM teria dado início a um patrulhamento das rodovias da região, coagindo os indígenas em trânsito. Em 17 de agosto de 2022, PMs e fazendeiros chegaram a invadir uma terra indígena, o que suscitou um pedido da DPU para investigação do caso. Dois policiais militares ficaram feridos na ação. 

Em setembro de 2022, um adolescente indígena foi morto e outro, ferido, após o ataque de pistoleiros a uma retomada na TI Comexatiba. Por conta desse episódio, a Polícia Federal realizou uma operação um mês depois e prendeu três policiais militares suspeitos de envolvimento no caso.

Operação da Polícia Federal em 2022 prendeu três PMs suspeitos da morte de jovem indígena (Foto: Divulgação/PF-BA)

Em janeiro de 2023, ocorreram outras duas mortes de adolescentes pataxós próximo à TI Barra Velha do Monte Pascoal. Cerca de duas semanas depois, um policial militar foi preso por suspeita de envolvimento no crime.

O caso levou à instalação de um gabinete de crise pelo Ministério dos Povos Indígenas para acompanhar a situação de conflitos na região do extremo sul da Bahia. “Após apurações preliminares” o gabinete constatou “o envolvimento de uma milícia armada, composta por policiais militares, nos assassinatos”.

Em janeiro de 2023, o povo pataxó enviou para a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) uma denúncia de sua situação. Em abril de 2023, a CIDH fez uma série de exigências ao governo braisleiro para garantir a segurança dos pataxós, entre elas “a criação e reforço de força tarefa para impedir novos conflitos, a prisão de policiais militares suspeitos dos homicídios de três indígenas pataxós, apreensão de armas e material bélico”.

Dois meses após a morte de Nega Pataxó, uma nova denúncia foi apresentada à CIDH, desta vez pela Justiça Global contra o Invasão Zero. A organização pede a investigação e “dissolução” do grupo, entre outros pedidos.

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