Assentamento Mário Lago: do latifúndio improdutivo à produção agroecológica
Por Coletivo de Comunicação do MST em São Paulo
Da Página do MST
A formação do assentamento Mário Lago se dá a partir da disputa pela terra e do questionamento dos crimes ambientais cometidos pelo latifúndio e pelo agronegócio. A área ocupada era da fazenda da Barra, de 1.540 hectares, em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, e estava instalada sobre o território de recarga hídrica do Aquífero Guarani.
A propriedade pertencia à Fundação Sinhá Junqueira e era arrendada pela Usina da Pedra para o cultivo da monocultura de cana-de-açúcar, durante a década de 1980. Nesse período, a área de reserva natural preservada era cerca de 300 hectares, o que correspondia a cerca de 20% do total do latifúndio.
Este é um período de expansão das atividades agrícolas ligadas ao setor agroindustrial canavieiro, que foi caracterizado pela expansão das áreas de cultivo de cana-de-açúcar e abertura de novas unidades industriais pelo interior, tornando Ribeirão Preto uma das regiões mais tradicionais da monocultura canavieira.
A expansão das áreas de plantio de cana-de-açúcar impulsionou processos de desmatamento e a contaminação por agroquímicos. No caso específico da Fazenda da Barra, o Departamento Estadual de Proteção de Recursos Naturais (DPRN) iniciou a abertura de inquéritos civis para investigação dos prejuízos ambientais na área, sobretudo relacionados ao desmatamento praticado nas áreas de reserva legal, em Áreas de Preservação Permanente (APP) e na rede de drenagem das áreas de várzea do Rio Pardo.
Constatados os crimes ambientais pelo DPRN, foi aberta uma ação civil pública em 1993, que apontou as irregularidades ambientais na fazenda e resultou na aplicação de multas pelos passivos ambientais.
Neste ponto, chama-se a atenção para o que prega a Constituição Federal de 1988, no
“Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social […].
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.“
Com base na legislação, a Fazenda da Barra cumpria os requisitos constitucionais para ser desapropriada para a Reforma Agrária. Diante disso, representações do poder público e da sociedade civil se organizaram a fim de construir um projeto para a área com uma utilização que garantisse o cumprimento da função social da propriedade.
Uma das inspirações para a arrecadação de terras para a Reforma Agrária foi o trabalho da pesquisadora e arquiteta Cláudia Maria Ferreira Perencin, de 1996, que propunha um projeto de assentamento para 260 famílias na Fazenda da Barra. Projeto esse que garantisse a recuperação das áreas de reservas desmatadas pelas atividades do monocultivo de cana-de-açúcar.
Nos anos de 1999 e 2000 o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), também realizou vistorias na área, caracterizando o latifúndio como propriedade improdutiva, a partir do qual iniciou o processo de desapropriação, em 09 de outubro de 2000.
Outras vistorias que também evidenciaram a improdutividade e os crimes ambientais foram elaborados pelo Departamento de Água e Energia Elétrica (DAEE), Departamento Estadual de Proteção dos Recursos Naturais (DEPRN), Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Segundo o Ministério Público do Estado de São Paulo, havia um valor estimado que ultrapassa 7 bilhões de reais em passivo ambiental na Fazenda da Barra.
A partir dessas evidências, o MST começa um processo massivo de organização das famílias de trabalhadores e trabalhadoras Sem Terra na região para ocupar a Fazenda da Barra.
Segundo o pesquisador Vandei Junqueira,
“Em 2 de agosto de 2003 foi formado o primeiro acampamento em Ribeirão Preto, com 400 famílias vindas da região de Ribeirão Preto, Franca, Araraquara e vizinhança. Estas famílias foram convidadas pelo […] MST para montar um acampamento ao lado da Fazenda da Barra, que se denominou acampamento Mário Lago. Tinham como principal objetivo pressionar o Governo Federal através do INCRA para a desapropriação da área vizinha à Fazenda da Barra, a fim de realizar um assentamento de Reforma Agrária. Essas ações do MST aconteceram para denunciar as irregularidades da área, reivindicando sua desapropriação para fins de Reforma Agrária.”
Essa ocupação se desdobrou em diversas outras ocupações, inclusive no centro da cidade de Ribeirão Preto. As ações tinham como objetivo chamar a atenção para a necessidade sobre a situação de vulnerabilidade social das famílias, e, portanto, a necessidade de arrecadação de terras para assentar as famílias. Junto com isso, pressionar o poder público para a desapropriação da fazenda da Barra, mediante as diversas constatações de irregularidade ambiental e improdutividade.
Para planejar o formato do assentamento, o MST se baseou no modelo de Comunas da Terra. A prática da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), era a divisão de lotes com a média de 12 hectares para a região de Ribeirão Preto. Se essa prática fosse adotada na área da fazenda da Barra, seriam assentadas cerca de 150 famílias. Mas, devido ao caráter geográfico, pois a área fica próxima à cidade e faz divisa com três bairros urbanos, sendo o terreno da fazenda da Barra muito valorizada. Diante disse, a proposta de divisão em lotes foi de 2 a 3 hectares, possibilitando o assentamento de 260 famílias. E nesse modelo se desenvolveu o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) da Barra, que adotou o nome de assentamento Mário Lago.
A proposta de um assentamento agroflorestal
A discussão em torno de novos formatos de assentamentos é uma realidade dentro da atualidade no debate da questão agrária. Ela envolve uma série de desafios, como os novos perfis da base social, que são as massas de trabalhadores e trabalhadoras desempregados; a relação campo e cidade; a perspectiva ambiental no uso da terra; a crescente demanda por produção de base agroecológica e as formas de organização coletiva.
Parte, também, da avaliação de saturação dos modelos de assentamentos propostos pelo Estado, que em geral são organizados para promover a individualização dos processos produtivos e organizativos.
O PDS, que tem inspiração na organização das reservas extrativistas amazônicas, apresenta uma possibilidade de recuperação de áreas degradadas e de conservação dos recursos naturais. Nele, busca-se a garantia de geração de renda aliada à conservação dos bens comuns, através do manejo ecológico no trabalho com a terra. Diferencia-se dos demais formatos de assentamento implementados pelo Estado, por ser construído em um processo participativo entre poder público, famílias Sem Terra e movimentos sociais, adotando o compromisso com o desenvolvimento sustentável. Está, portanto, alinhado à perspectiva do avanço na transição agroecológica que o MST tem defendido na organização dos seus assentamentos.
No processo de luta pela conquista do assentamento Mário Lago, a perspectiva agroecológica foi um dos fatores fundamentais abordados pelo Movimento Sem Terra para a formação do assentamento e a organização do trabalho das famílias. A necessidade de formar um assentamento neste formato se justifica pela necessidade de garantir função social à terra, cumprindo os requisitos da Constituição Federal; ampliar a capacidade de produção de alimentos saudáveis agroecológicos; recuperar as terras degradadas pela cana-de-açúcar e, ideologicamente promover o contraponto ao modelo de agricultura baseado na concentração fundiária e o monocultivo de contaminação que era praticado na região de Ribeirão Preto.
A concepção desse formato de assentamento agroecológico é resultado direto dos acúmulos que o MST tem alcançado nos seus 40 anos de debate e experiências sobre a mudança do paradigma agrário. As preocupações com a questão ambiental estão na constituição da luta pela terra e pela transformação das relações humanas, o que se materializa na perspectiva da Reforma Agrária Popular.
Para além dos compromissos firmados pelo Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), desde a ocupações da terra e durante o período de acampamento, as famílias Sem Terra já foram preparadas e formadas para a produção de alimentos agroecológicos. Portanto, já estavam alcançando níveis de entendimento, afinidades técnicas e ideológicas com a agroecologia. Somado a isso, foram realizados cursos e formações técnicas promovidas pelo MST, já no assentamento, para fomentar esses avanços. E dessa forma, hoje grande parte das famílias assentadas continuam dedicadas à agroecologia, e o formato de organização do trabalho referencia-se em Sistemas Agroflorestais (SAFs), nomeados pelos assentados(as) por Agroflorestas. As famílias se autodenominam como agroflorestais, o que demonstra a forte identidade entre a forma de organização do trabalho e a sua representação territorial na agroecologia.
A troca de saberes, uma das dimensões epistemológicas da agroecologia é muito presente na realidade das famílias. A primeiras formações e aproximações com as agroflorestas se deu a partir da troca de experiências já consolidadas no Vale do Ribeira, através da Associação dos Agricultores Agroflorestais de Barra do Turvo e Adrianópolis (Cooperafloresta), por meio do Projeto Agroflorestar, que tem uma trajetória com cultivos em florestas desde 1996. A partir do contato com essas experiências, foram implantados os primeiros projetos de agrofloresta no Mário Lago.
Agroflorestador e disseminador de conhecimentos populares
José Ferreira da Silva, morador do assentamento Mário Lago, conhecido na comunidade como Paraguai, é um dos precursores e incentivadores da agrofloresta na região. Em seu depoimento ele conta como conheceu a agroecologia e iniciou na implantação de agrofloresta.
“Quando eu vim pro MST, o MST sempre falou de um trem chamado agroecologia e eu não tinha noção do que era isso, porque eu não sou agricultor, agora que eu to aprendendo com agricultura, eu sai da roça muito pequeno no norte de Minas, eu não tinha muito vínculo com agricultura … então o MST sempre falou da agroecologia e eu ficava pra entender o que era isso e ai eu comecei a viajar um pouco, fazer curso, os encontros, essas coisas e eu comecei a entender um pouquinho disso. […] Ai em 2012 a gente teve a oportunidade de conhecer a associação de agricultores no Vale do Ribeira a Cooperafloresta e lá a gente conheceu o sistema agroflorestal. Então, aquilo empolgou bastante e a gente voltou empolgado […] Ai no congresso no sexto Congresso do Movimento lá em Brasília, o Nelson articulou com o movimento pra gente conhecer um agricultor que produzia sementes … pra conhecer o Joan e lá nos se apaixonamos … área pequena, próxima do grande centro e com agrofloresta voltada pra hortaliças. E logo em seguida, a gente foi fazer uma vivencia lá, foi uma galera daqui pra aprender e voltamos e começamos a fazer quinhentos metros quadrados aqui nos lotes … então oitenta famílias pra participar desse projeto e isso deu uma super produção, deu super certo!“
Paraguai nos ensina a “Pedagogia do Exemplo”, que, na definição própria do assentado, é através do trabalho cotidiano com a agroecologia e no alcance dos seus resultados ambientais e de geração de renda, que outras famílias passam a serem convencidas da importância da agrofloresta. Traduz-se na ideia de que as práticas agroecológicas avançam com a troca de saberes, ou seja, quando uma família compartilha seus conhecimentos tradicionais adquiridos através das gerações ou com a comunidade para outras famílias. Assim acontece no assentamento Mário Lago, boa parte das técnicas de trabalho que as famílias adotam foram disseminadas por outros assentados.
Assista o vídeo e conheça a história do Paraguai:
Alimentos saudáveis na mesa das pessoas
Uma das estratégias produtivas adotadas no assentamento Mário Lago são as cestas agroecológicas, que são organizadas e favorecidas pelo arranjo produtivo das agroflorestas, caracterizado pela diversidade produtiva.
A cadeia produtiva das cestas agroecológicas, neste caso, é impulsionada pela localização geográfica do assentamento, que está próximo aos perímetros urbanos da cidade e, também, parte da concepção de cooperação desenvolvida pelo MST. As iniciativas são organizadas coletivamente pelas famílias assentadas por meio das cooperativas e associações que, além de possibilitar o acesso ao alimento saudável para as famílias que vivem nas cidades, gera renda para os produtores.
As cestas agroecológicas são montadas com alimentos produzidos dentro das agroflorestas individuais dos associados/cooperados, ou nas agroflorestas coletivas. A cada semana são escolhidos alimentos da safra, sempre diversificando entre legumes, verduras e frutas. Além de incluir Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs) e ervas medicinais.
Atualmente estão em funcionamento sete projetos de cestas agroecológicas, com a participação das famílias assentadas, que são distribuídos entre a vendas diretas e a Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA). Além das cestas, os alimentos são comercializados via mercados institucionais e políticas públicas, com o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Como exemplo, destacamos a Brigada Ana Primavesi, que reúne cerca de 25 famílias. As brigadas, para o MST, fazem parte da estrutura organizacional do movimento social, e se caracterizam por ser um método coletivo de organização e direção política em que os grupos de famílias acompanham determinados processos de luta política.
A Brigada Ana Primavesi funciona em uma das áreas coletivas do assentamento. Foi iniciada em 2018 quando as famílias adotaram uma área de pastagem para criar uma agrofloresta com o objetivo de construir um processo produtivo e organizativo, além da geração de renda. Além de produzir alimentos na área coletiva, as famílias participantes também inserem produtos produzidos nos seus lotes para compor as cestas da Brigada Ana Primavesi. Atualmente são comercializados entre 35 e 40 cestas semanalmente.
A experiência da Reforma Agrária Popular no assentamento Mário Lago é a materialidade do processo de enfrentamento ao latifúndio e o combate ao agronegócio, enquanto promotor de injustiças ambientais. O assentamento nasceu e se mantém organizado buscando combater a crise ambiental através do cuidado com os bens comuns, no trabalho de base coletivo e na produção de alimentos.
Essas experiências inspiram as experiências e a continuidade do Plano Nacional do MST, Plantar Árvores e Produzir Alimentos Saudáveis, que segue como uma importante ferramenta do Movimento Sem Terra para dialogar com a sociedade sobre a conjuntura ambiental, denunciando a crise estrutural do capital e seus impactos para a natureza, bem como alavancar as cadeias produtivas através do estudo e a experimentação dos métodos de trabalho baseados na agroecologia.
Esse é o papel e a emergência da luta pela Reforma Agrária: questionar a estrutura fundiária baseada no latifúndio e acabar com a fome, além de propor alternativas produtivas antagônicas ao capitalismo agrário, combater a crise ambiental e oferecer aos trabalhadores e trabalhadoras alternativas de mudança de vida por meio do acesso à terra.
*Editado por Solange Engelmann
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