quarta-feira, 10 de abril de 2024

Musk e o fardo do nerd branco.

 

Musk e o fardo do nerd branco

Os ataques diretos de Musk à soberania brasileira reforçam as teses que alertam para a atualização do colonialismo no atual estágio de acumulação capitalista. Longe de ser uma entidade do passado, o colonialismo se materializa nas violentas versões contemporâneas da divisão social do trabalho e do desenvolvimento desigual das forças produtivas.

Por Deivison Nkosi Faustino e Walter Lippold

O meme é o ópio do povo! Uma imagem dotada de caricaturas e ironias, com alto poder de circulação na economia da atenção digitalizada. Diferente da antiga charge, que narra, caricaturalmente, um fato ou personagem público específico, a caricatura que compõe o meme se volta à narrativa, ainda que motivada por um fato. Trata-se de um jogo sofisticado de representações composto por imagens que se referem a outras imagens, em um uma cadeia dialógica e viral de significantes já familiares ao espectador. Somente quem teve conhecimento total ou parcial às narrativas em negociação ou disputa, serão afetados por sua mensagem.

No dia 07 de abril de 2024, o bilionário proprietário do X Elon Musk, hábil conhecedor e divulgador das táticas tecnopolíticas da alt-rightcomparou Alexandre de Moraes, com sua litúrgica toga preta, a Darth Vader, o vilão criminoso e tirânico do filme Star Wars e comentou sobre a semelhança do ministro com “aquele-que-não-deve-ser-nomeado” (Voldemort). A ofensa de Musk, em diálogo estreito com o imperialismo cultural maniqueísta que fora inculcado por décadas em nossas gerações, é parte de uma série memética de provocações ao magistrado, deflagrada após a postagem do jornalista estadunidense liberal Michael Shellenberger, em que acusa o Supremo Tribunal Federal de atentar contra as liberdades democráticas, por deliberar o bloqueio de perfis investigados por discurso de ódio ou atentado contra o Estado de Direito.

Não satisfeito, o bilionário herdeiro de minas ilegais na Zâmbia e África do Sul, tentou de maneira dolosa, mobilizar e inflamar a extrema direita brasileira contra a ordem instituída ao clamar pelo impeachment do Ministro: “Em breve, o X publicará tudo o que é exigido por Alexandre de Moraes e como essas solicitações violam a legislação brasileira. Este juiz traiu descaradamente e repetidamente a Constituição e o povo do Brasil. Ele deveria renunciar ou sofrer impeachment. Vergonha, Alexandre, vergonha”.

O movimento midiático protagonizado por Musk foi tão bem sucedido que, seja por adesão ou manipulação algorítmica, os termos “AllandosSantos”, “fazoelon” e “Impeachment” mantiveram-se por horas na trend de sua rede proprietária no dia 08 de abril. Allan dos Santos, influencer bolsonarista foragido da Justiça brasileira desde outubro de 2021, voltou à sua conta anteriormente bloqueada no X para fazer uma live na qual proferiu novas ofensas contra Alexandre de Moraes. O hashtag “fazoelon” é possivelmente a corruptela de “faz o L”, utilizado pela esquerda na campanha presidencial de 2022 mas, inversamente, elegendo Elon como liderança política. Já o terceiro hashtag transbordou os duvidosos algoritmos do X e chegou a alguns deputados brasileiros de direita, ainda ressentidos com as investigações que criminalizam a tentativa frustrada de golpe em 08 de janeiro de 2023.

Meme postado no X.1

No meme acima, captado no fatídico 08 de abril, o Juiz aparece de cabeça baixa, quase acuada pelo olhar intimidador do Musk, molhado, pálido e sem camisa seguido pelos dizeres: “é #fake a imagem de Elon Musk se estranhando com Alexandre de Moraes em plena Av. Atlântica”. O título do meme com a frase “é fake que…” ironiza e captura, ao mesmo tempo, as campanhas contra a desinformação que procuraram explicar com ironia o óbvio durante as eleições e ironizam, sobretudo, a firmeza na postura do STF para com os golpistas bolsonaristas. O jogo semiótico é brilhante: sabemos que a imagem é fake sem precisar da legenda, mas rimos porque julgamos haver gente ignorante o suficiente para acreditar nela.

Ao mesmo tempo, fica sugerido como se fosse real o fato de que Musk, representante da rebeldia, é o sujeito da oração e o vencedor do embate contra o cabisbaixo e antiquado cosplay de Darth Vader ou Voldemort.  A pólvora memética fora acesa e a base política meio baqueada, mas ainda barulhenta, do bolsonarismo patriota reagiu como um cardume aos chamados de seu novo e temporário líder:  um empresário estrangeiro neocolonialista e mimado. Uma cena real que supera o mais criativo dos memes: uma horda de supostos patriotas atendendo ao chamado político de um empresário que lucra com a exploração de seu país.

Um dos objetivos nítidos deste ataque imperialista e memético às instituições judiciárias brasileiras foi inflamar o bolsonarismo e provocar uma instabilidade política que enfraquecesse o frágil debate sobre a corresponsabilização das plataformas diante da lucrativa veiculação de discurso de ódio. Mas outros analistas apontam outras motivações como a criação de uma cortina de fumaça para justificar a saída, à francesa, do X – que já não lucra no país como o Instagram, Facebook e Whatsapp e outros chamam a atenção para o interesse do bilionário no lítio brasileiro.

A suposta preocupação de Musk com a “liberdade de expressão” – de criminosos brasileiros que lucram economicamente e ganham posições políticas através da disseminação de discurso de ódio, desinformação e ataques abertos às instituições governamentais – revela aquilo que já nomeamos em outro lugar como “Fardo do Nerd Branco”. Uma mobilização retórica da filantropia e do liberalismo para fins de exploração econômica e política. Se as antigas potências imperialistas dependiam da existência de missionários que conseguissem levar a missão colonial civilizadora a lugares inacessíveis aos soldados armados, naquilo que se convencionou chamar de “fardo do homem branco”, hoje a filantropia e o discurso da democracia são retoricamente mobilizados contra inimigos econômicos e/ou geopolíticos para ganhar terreno na luta por hegemonia.

O fato é que as declarações do bilionário repercutiram de diversas formas no Brasil. Enquanto alguns parlamentares da direita insistiam na tese do impeachment de Alexandre de Moraes a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados aprovou, no dia 09 de abril, uma moção de aplauso e louvor a Elon Musk por “expor e enfrentar a censura política infundada imposta pela justiça brasileira contra usuários da plataforma no país”. Enquanto isso, a esquerda brasileira, e parte da base aliada do Governo Lula, articulam respostas diversas que variam da desqualificação ad hominem do bilionário, lembrando das raízes de sua herança colonial e presente de apoio à ditaduras, e outros, corretamente, retomam o debate sobre a regulação das plataformas e da inteligência artificial. Não se trata, apenas, de defender a figura de Alexandre de Moraes, mas deslocar o debate para a necessária regulamentação das redes proprietárias e das plataformas controladas pelas big techs, além de sua responsabilização pelas ameaças à democracia, e disseminação de fake news que influenciaram eleições, e que inclusive mataram milhares de pessoas com seus conteúdos de teoria da conspiração antivacina e anticiência.

A regulamentação das plataformas e redes proprietárias é um caso de segurança nacional e deve ser imediata. O que a extrema direita chama de liberdade de expressão é, na verdade, a liberdade irrestrita para produzir desinformação e discurso de ódio, de forma que favoreça a própria hegemonia política e a ampliação dos lucros das big techs. As big techs empreenderam um forte lobby e o poder do monopólio da comunicação contra o Projeto de Lei 2630, que propunha a regulamentação e corresponsabilização das plataformas em caso de lucro sobre crimes praticados por usuários.

As posições em defesa da regulação das plataformas e da inteligência artificial estão corretas, mas são incompletas. Se realmente estivermos preocupados com a dimensão colonial da tecnologia, representada pelo domínio das big techs – especialmente estadunidenses, em setores como o entretenimento, saúde, educação e judiciário –, é fundamental superarmos a postura reativa presente no debate da regulação de problemas que já existem e construir urgentemente um projeto amplo de soberania digital brasileira.

Os ataques diretos de Musk à soberania brasileira reforçam as teses que alertam para a atualização do colonialismo no atual estágio de acumulação capitalista. Longe de ser uma entidade do passado, o colonialismo se materializa nas violentas versões contemporâneas da divisão social do trabalho e do desenvolvimento desigual das forças produtivas, combinando e distribuindo desigualmente as premissas cyberpunk do low life, high tech. A mais sofisticada tecnologia que permite um software fazer poesia, enquanto trabalhamos como nunca na história do capitalismo, sobrevive com as formas mais coloniais de exploração a partir da extração de minérios na República Democrática do Congo ou nas terras Yanomami. O monopólio do desenvolvimento tecnológico se converte em um modelo de negócios que extrai valor ou amplia a acumulação através das formas mais violentas de expropriação de terras (fornecedora dos minérios necessários às tecnologias digitais), água (para o resfriamento de fazenda de mineração e grandes HDs), criatividade humana e, sobretudo, dados sobre a experiência humana.

O autoproclamado arauto da liberdade de expressão, na verdade, defende seus negócios, que lucram massivamente com a circulação de desinformação, fake news e conteúdos que promovem o ódio e a morte.2 A biografia do bilionário Elon Musk diz muito sobre capitalismo, colonialismo e racismo: descendente do apartheid sul-africano, sua família vez fortuna explorando esmeraldas em uma zona de mineração do Lago Tanganica, na Zâmbia. Musk ataca diretamente a soberania digital do Brasil, usando seu brinquedinho pessoal. Como o dono da bola, ele ameaça ir embora, no tom conhecido das bravatas de um bilionário mimado, mas que devemos levar a sério em sua defesa de golpes em estados soberanos.

Em meados de 2020, Musk postou no antigo Twitter, antes de comprar a plataforma para empreender experiências psicopolíticas, sua famosa mensagem sobre o golpe em Evo Morales na Bolívia: “Vamos dar golpe em quem quisermos! Lidem com isso”. O controle da extração de lítio sul-americano estava em jogo. Musk é fundador e CEO da fábrica de carros elétricos Tesla Inc., que depende diretamente do lítio para o funcionamento de suas baterias. Envolvido em polêmicas na Guerra da Ucrânia e no genocídio israelense em Gaza, sobre o uso do sistema Starlink, cabe lembrar que, em 2022, Musk visitou o então presidente Bolsonaro, no Brasil. Prometeu conectar a Amazônia na internet, através dos seus satélites Starlink. Logo se descobriu que o garimpo ilegal usava a rede de Musk para levar adiante o genocídio Yanomani através da extração criminosa de ouro, que por sua vez era lavado para circular no mercado internacional, inclusive indo parar nas mãos da big techs.

O colonialismo digital significa o controle de atividades de mineração, como o lítio na Bolívia, o ouro das terras Yanomami, o cobalto e o coltan (columbita e tantalita) da República Democrática do Congo. Significa controle da infraestrutura de cabos, de hardware, data centers, propriedade intelectual de software e o processo de acumulação primitiva de dados. A economia da atenção é movida pelo modelo de negócios, sustentados por tecnologias da indústria 4.0, como o big data e microdirecionamento (microtargeting) de publicidade. Nossos dados são capturados, nossa subjetividade, sexualidade, atividade, criatividade e expertise são esfolados pelas big techs, armazenados e processados em servidores (data centers) do norte global, geralmente estadunidenses.

Com ciência de dados, cria-se uma entrega segmentada, para psicoperfis de consumo que são montados conforme nossa atividade nas redes, motores de busca, plataformas de entretenimento e compras. Estes anúncios, para quem pode pagar (empresas, grupos políticos, organizações, indivíduos), são impulsionados pelos algoritmos das redes proprietárias. O trabalho de moderação dos conteúdos, ao contrário do que se vende, como fruto de sofisticadas IAs, em realidade, é obra de trabalhadores precarizados, explorados por empresas terceirizadas como a SAMA de San Francisco, que atua no Quênia a serviço da OpenAi e seu ChatGPT.3 O que parece é que golpes de todos os tipos, pirâmides de pix, falcatruas ancaps e day traders de criptoativos, conteúdo pornográfico ilegal, fake news, todo o chorume internético que diziam estar restrito a chans, está disponível também nas redes sociais, e o pouco que é filtrado, se faz com o trabalho precarizado.

A aproximação das esquerdas – mortas, em coma ou resilientes – e dos movimentos sociais no debate acerca da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018), do Marco Civil da internet e da regulação das plataformas é de fundamental necessidade. Mas é importante que se diga que a regulação, no melhor dos cenários – o que não parece ser o caso – não alcança os pontos centrais do problema. Precisamos de um debate amplo e urgente que supere a discussão eleitoral das fake news e avance para uma compreensão radical e detalhada das novas formas de exploração, opressão e dominação abertas pela emergência do colonialismo digital. Não se trata de um retorno inocente ao já esgotado neodesenvolvimentismo e nem a desconsideração das dinâmicas de internacionalização e financeirização no atual estágio da acumulação capitalista, mas precisamos discutir urgentemente o que significa a acumulação primitiva de dados no momento atual do capitalismo e os riscos humanos postos pelo viés de gênero, raça, língua e território.

Enquanto nos distraímos com playboys mimados, o setor privado avança discretamente sobre o SUS em parcerias público privadas sobre a camada opaca, mas decisiva, da digitalização da saúde. Alguns dados produzidos pelo Ministério da Saúde estão hospedados nos servidores da Amazon. A maior parte dos dados da educação de Municípios, Estados e da Federação está sobre o poder da Microsoft ou da Google e o Ministério Público de vários estados da federação entregam os seus dados para a Microsoft. Enquanto isso, prefeituras de todo o país contratam empresas, sob contratos duvidosos, para monitorar vias públicas, escolas e até hospitais com câmeras dotadas de programas de reconhecimento facial, mesmo sabendo que a sua acurácia é menor para pessoas negras. Estudos do CONDEGE mostram que 83% dos presos injustamente por reconhecimento facial são negros.

Estamos perdendo uma grande oportunidade de elevar o debate para além do léxico importante, mas liberal, da regulação. A desinformação é um grande problema, exatamente porque se insere num “ecossistema” – da luta de classes – mais amplo de desigualdades, exploração, opressão e ameaça aos interesses nacionais e, sobretudo, às populações mais vulneráveis. A regulação é fundamental, mas se não for acompanhada de um projeto político de soberania nacional popular, com ampla participação dos movimentos sociais e cidadãos em geral, será apenas mais um remédio que, quando chegar, já estará vencido.

Notas
1 O meme tem o logo do perfil @bcm1lgr4u , criador de conteúdo de Balneário Camboriú – SC, que ironiza o selo fake utilizado em fact checking de imagens. A imagem foi postada de forma irônica pelo Pobre de Direita, perfil do X/Twitter.
2 O caso dos conteúdos antivacinas (antivax), em plena pandemia, é exemplar.
3 Ver nosso texto sobre IA, no qual desenvolvemos mais estas questões sobre precarização do trabalho plataformizado.


Quais são os impactos das tecnologias em nossa sociedade? Que consequências enfrentamos com a concentração das principais ferramentas tecnológicas que regem a vida de milhões de pessoas no domínio de um punhado de empresas estadunidenses? De que maneira é possível relacionar algoritmos a racismo, misoginia e outras formas de violência e opressão?

Em Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanonianaDeivison Faustino e Walter Lippold entrelaçam tecnologia e ciências humanas, apresentando um debate provocador sobre diferentes assuntos de nossa era. Inteligência artificial, internet das coisas, soberania digital, racismo algorítmico, big data, indústrias 4.0 e 5.0, segurança digital, software livre e valor da informação são alguns dos temas abordados.

A obra se inicia com um debate histórico e conceitual sobre o dilema das redes e a atualidade do colonialismo para, em seguida, discutir as expressões “colonialismo digital” e “racismo algorítmico”. Ao fim, apresenta uma reflexão sobre os possíveis caminhos a seguir, partindo das encruzilhadas teóricas e políticas entre o hacktivismo anticapitalista e o pensamento antirracista radical. Para discutir a relação dialética entre tecnologia, dominação e desigualdade e propor pautas fundamentais a movimentos sociais, os autores dispõem, ao longo da obra, da contribuição de intelectuais como Frantz Fanon, Karl Marx, Julian Assange, Shoshana Zuboff, Byung-Chul Han, Marcos Dantas, entre outros.

A edição conta, ainda, com a colaboração de referências no debate nacional: a apresentação é de Sergio Amadeu, especialista em software livre e inclusão digital no Brasil; e o texto de orelha é de Tarcízio Silva, pesquisador e um dos maiores nomes do hacktivismo brasileiro.

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Deivison Faustino é doutor em sociologia e professor do programa de pós-graduação em serviço social e políticas sociais da Universidade Federal de São Paulo. É integrante do Instituto Amma Psique e Negritude e pesquisador do Núcleo Reflexos de Palmares, onde pesquisa, entre outros temas voltados à relação entre capitalismo e racismo, o colonialismo digital. É autor de diversos livros e artigos sobre Frantz Fanon e pensamento antirracista. Pela Boitempo, publicou Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana, com Walter Lippold.

Walter Lippold é doutor em história e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal Fluminense e do Núcleo Reflexos de Palmares da Universidade Federal de São Paulo. É professor do Curso Uniafro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador de colonialismo digital, história da tecnologia, cibercultura, hacktivismo, da obra de Frantz Fanon e da história da Argélia. Pela Boitempo, publicou Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana, com Deivison Faustino.

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