sexta-feira, 26 de agosto de 2011

ECONOMIA - Como o Goldman Sachs criou a Crise Alimentar.

Não ponham as culpas nos apetites americanos, no aumento dos preços do petróleo, ou as colheitas geneticamente modificadas pelo aumento dos preços dos alimentos. Wall Street tem as maiores culpas pela disparada do custo da comida. Por Frederick Kaufman, Foreign Policy


O Goldman Sachs percebeu que nada é mais valioso do que o nosso alimento diário. O resultado foi desastroso para as populações. Foram necessárias as mentes brilhantes da Goldman Sachs para perceber a simples verdade de que nada é mais valioso do que o nosso alimento diário. E onde há valor, há a possibilidade de fazer dinheiro. Em 1991, funcionários da Goldman, liderados pelo precavido presidente Gary Cohn, vieram com um novo tipo de produto de investimento, um derivado que acompanhava 24 matérias brutas, de metais preciosos, a energia e café, cacau, gado, milho, suínos e trigo. Eles pesavam o valor de investimento de cada elemento, fundiam e misturavam as partes em somas, e depois reduziam o que seria uma complicada colecção de coisas reais a uma fórmula matemática, e que seria doravante denominada de Goldman Sachs Commodity Index (GSCI).

Durante mais ou menos uma década, o GSCI permaneceu um veículo de investimento relativamente estático, na medida em que os banqueiros estavam muito mais interessados em riscos e operações de garantia de dívida do que em algo que pudesse, literalmente, ser semeado ou colhido. Até que, em 1999, a Comissão de Comércio de Commodities Futuras desregulamentou os mercados de futuros. Subitamente, os banqueiros viram-se livres para assumir posições tão grandes quanto quisessem em cereais, uma oportunidade que, desde a Grande Depressão, só esteve à disposição para quem realmente tivesse alguma relação com a cadeia produtiva de alimentos.

A mudança surgia nas grandes bolsas de cereais de Chicago, Minneapolis e Kansas City – que, por 150 anos, ajudou a moderar as altas e as baixas dos preços globais de alimentos. A agricultura pode parecer bucólica, mas é uma indústria inerentemente volátil, sujeita às vicissitudes do clima, da doença e dos desastres naturais. O sistema de comércio de grãos futuros foi implantado pela primeira vez depois da Guerra Civil pelos fundadores da Archer Daniels Midland, o General Mills e Pilsbury, que ajudaram a estabelecer a América como a potência financeira que rivalizaria, e eventualmente ultrapassaria, a Europa. Além disso, os mercados de cereais também isolavam os fazendeiros e os moleiros americanos dos riscos inerentes à sua profissão. A ideia básica era o “contrato de futuro” (forward contract), um entendimento entre vendedor e comprador sobre o preço razoável para o trigo – mesmo antes da colheita. Não apenas o grão “futuro” ajudava a manter estável o preço do pão na padaria – ou, mais tarde, no supermercado – como também os fazendeiros eram resguardados pelo mercado contra colheitas más, tendo acesso a investimentos para as suas fazendas e negócios. O resultado: ao longo do século XX, o preço real do trigo diminuiu (a despeito de uma ou duas excepções, particularmente durante a espiral inflacionária dos anos 70), impulsionando o desenvolvimento do agro-negócio americano. Depois da Segunda Guerra Mundial, os EUA passaram a produzir, frequentemente, safras recorde, o que se transformou num elemento essencial das suas estratégias políticas, económicas e humanitárias durante o período da Guerra Fria – para não mencionar o facto de o grão americano ter alimentado milhões de famintos ao redor do planeta.

Os mercados futuros incluíam, tradicionalmente, dois tipos de personagem. De um lado estavam os fazendeiros, os moleiros e os armazenistas, personagens que possuem uma participação real no grão. Este grupo inclui não apenas agricultores de milho no Iowa ou fazendeiros de trigo do Nebraska, mas também grandes multinacionais como a Pizza Hut, Kraft, Nestlé, Sara Lee, Tyson Foods e McDonald’s – cujas acções na Bolsa de Valores de Nova York sobem e descem de acordo com a sua habilidade em levar comida às janelas dos carros, às portas de casa ou às prateleiras dos supermercados, a preços competitivos. Estes participantes do mercado são chamados hedgers “bona fide”, porque dependem, efectivamente, da compra e venda de cereais.

Do outro lado está o especulador. O especulador não produz nem consome milho ou soja ou trigo, e nem teria um lugar para stockar as 20 toneladas de cereal que possa vir a comprar em determinado momento, se é que o cereal seria realmente entregue. Os especuladores fazem dinheiro através do tradicional comportamento do mercado, a arbitragem de comprar barato e vender caro. E os outros personagens, os que realmente estão envolvidos com a mercadoria real, têm como regra geral dar as boas-vindas aos especuladores tradicionais, pelo fluxo sem fim de ordens de compra e venda que dão ao mercado liquidez e provêem aos hedgers “bona fide” uma forma de gerir riscos, permitindo-lhes vender e comprar apenas quando lhes interessa.

Mas o índice da Goldman perverteu a simetria deste sistema. A estrutura do GSCI não ligou um mínimo para os padrões de compra-venda/venda-compra com séculos de tradição. Este produto derivado ultramoderno era apenas “a coberto” (long-only, o detentor da posição lucra somente quando o preço da commodity aumenta), o que significa dizer que ele era construído para comprar commodities (matérias primas), e apenas comprá-las. No fundo desta estratégia “a coberto” está a intenção de transformar um investimento em commodities (antes, na alçada de especialistas) em algo que parecia muito com um investimento em acções – o tipo de classe de activo em que qualquer um pode investir dinheiro e deixá-lo aumentar por décadas (no sentido da General Electric ou Apple). Uma vez que o mercado de commodity foi transformado para parecer mais com o mercado de acções, os banqueiros passaram a contar com novos influxos de dinheiro vivo. Mas a estratégia “a coberto” possuía uma falha, pelo menos para nós que comemos. O GSCI não incluía um mecanismo de venda ou “venda a descoberto” de uma commodity.

Este desequilíbrio minou a estrutura inata dos mercados de commodities, exigindo que os banqueiros continuassem sempre a comprar – não importando a que preço. A cada vez que a data fim de um contrato futuro indexado “a coberto” de commodity se aproximava, os banqueiros precisavam “rolar” as ordens de compra multi-bilionárias acumuladas para os novos contratos futuros, dois ou três meses à frente. E uma vez que o impacto deflacionário da venda a descoberto de uma posição não fazia, simplesmente, parte do GSCI, os negociantes profissionais de grãos podiam se dar bem ao antecipar as flutuações de mercado que estas “rolagens” inevitavelmente causariam. “Vivo de dinheiro fácil,” disse à Businessweek o negociante de commodities Emil van Essen. Os negociantes de commodities empregados pelos bancos que criaram os fundos indexados de commodities pela primeira vez pegaram a maré do lucro.

Os banqueiros reconheceram ser um bom sistema quando o viram, e dezenas de hedgers especulativos seguiram a novidade e juntaram-se ao jogo dos índices de commodities, incluindo o Barclays, o Deutsche Bank, o Pimco, o JP Morgan Chase, a AIG, o Bear Stearns, e o Lehman Brothers, para ficar com apenas alguns dos propagadores dos fundos indexados de commodites. Estava montado o cenário da inflação alimentar, que pegaria desprevenidas algumas das maiores corporações da moagem, do processamento e do varejo nos Estados Unidos, e espalharia ondas de choque por todo o mundo.

O dinheiro conta a história. Desde a explosão da bolha tech em 2000, a quantidade de dólares investidos em fundos de commodites aumentou em 50 vezes. Para colocar o fenómeno em termos concretos: em 2003, o mercado de futuros de commodities totalizava modorrentos 13 mil milhões de dólares. Mas quando a crise financeira global pôs os investidores a fugir, assustados, no começo de 2008, e à medida que os dólares, libras e euros não inspiravam mais confiança, as commodities – inclusive alimentos – pareciam o último e melhor refúgio para os gordos fundos hedge, fundos de pensão e fundos soberanos. “Havia gente que não tinha a mínima ideia do que eram commodites e que, de repente, se pôs a comprá-las,” disse um analista do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Nos primeiros 55 dias de 2008, os especuladores fizeram um derrame de 55 mil milhões de dólares nos mercados de commodities, e em Julho, já havia 318 mil milhões de dólares a agitar os mercados. A inflação alimentar tem ficado estável desde então.

O dinheiro fluía, e os banqueiros estavam preparados para o novo e fulgurante casino dos derivados alimentares. Encabeçados pelos preços do petróleo e gás (as commodites dominantes dos fundos indexados) os novos produtos de investimento incendiaram os mercados de todas as outras commodities indexadas, causando um problema familiar àqueles versados em história das tulipas, dot-coms e mercados imobiliários baratos: uma bolha alimentar. O trigo da classe hard red spring, que normalmente era comercializado com preços entre 4 a 6 dólares o bushel, quebrou todos os recordes anteriores, à medida que os contratos futuros entravam na adolescência, e continuou subindo até atingir a marca de 25 dólares o bushel. E assim, de 2005 a 2008, os preços mundiais de comida tiveram um aumento de 80% – e continuam a subir. “Não há precedentes na quantidade de capital de investimento colocada nos mercados de commodites,” disse Kendell Keith, presidente da Associação Nacional de Grãos e Comida. “Não há dúvida que tem havido especulação.” Olivier De Schutter, o relator especial das Nações Unidas para o direito ao alimento, concluiu, numa nota à imprensa, que em 2008 “uma parte significativa dos picos de preços se devia à emergência de uma bolha especulativa.”

O que acontecia nos mercados de grãos não era resultado de “especulação” no sentido tradicional de comprar barato para vender caro. Hoje, juntamente com o índice cumulativo, o indice GSCI da Standard & Poor's provê 219 diferentes índices, de tal forma que os investidores possam clicar no sistema Bloomberg e apostar em qualquer coisa, do paládio ao óleo de soja, de biocombustíveis a rações para gado. Mas o boom de novas oportunidades especulativas nos mercados globais de grãos, óleo comestível e carne criaram um círculo vicioso. Quanto mais sobe o preço das commodities de alimentos, mais dinheiro é injectado no sector, e mais os preços sobem. De fato, de 2003 a 2008, o volume da especulação de fundos indexados aumentou em 1.900 por cento. “O que nós estamos a viver é um choque de procura proveniente de uma nova categoria de participantes nos mercados de futuros de commodities,” testemunhou o gerente de fundos hedge Michael Masters no Congresso americano durante a crise alimentar de 2008.

O resultado do empreendimento de Wall Street em grãos, comida e gado foi o choque no sistema global de produção e fornecimento de alimentos. O fornecimento mundial de alimento, agora, não tem apenas que lutar com ofertas reduzidas e aumento de procuras, mas também com a tendência de alta artificial dos preços de grãos futuros inventada pelos bancos de investimento. O resultado: o preço de um trigo imaginário sobrepõe-se ao do trigo real, enquanto os especuladores (tradicionalmente, um quinto do mercado) agora ultrapassam os hedgers “bona-fide” na proporção de quatro para um.

Hoje, são os banqueiros e negociantes que se situam no topo da cadeia alimentar – os carnívoros do sistema, devorando todos e tudo abaixo deles. Perto da base, labuta o agricultor. Para ele, a alta no preço dos grãos deve ter representado um lucro inesperado, mas a especulação também gerou altas de preços em tudo o que o agricultor precisa comprar para fazer crescer a sua plantação – desde sementes a fertilizantes e diesel. E na base fica o consumidor. O americano médio, que gasta aproximadamente 8 a 12 por cento do seu rendimento em comida, não sentiu de imediato o impacto da alta de preços. Mas para os 2 mil milhões de pessoas ao redor do mundo que gastam mais de 50 por cento do seu rendimento com comida, os efeitos foram devastadores: 250 milhões de pessoas ingressaram nas fileiras dos famintos em 2008, elevando o total mundial de “alimentarmente inseguros” ao pico de mil milhões – um número nunca dantes visto.

Qual é a solução? Na última visita que fiz à Feira de Grãos de Minneapolis, perguntei a um grupo de corretores de trigo o que aconteceria se o governo dos EUA simplesmente criminalizasse o comércio exclusivo com commodites alimentares por bancos de investimento. A reacção deles: risos. Com apenas uma chamada telefónica para um hedger “bona-fide”, como a Cargill ou a Archer Daniels Midland, e uma troca secreta de activos, a carteira de mercados futuros de um banco torna-se idêntica à de um comprador de trigo. E se o governo criminalizasse todos os produtos exclusivamente derivados, perguntei? Mais uma vez, risos. O problema seria novamente resolvido com apenas uma chamada, desta vez, para um escritório comercial em Londres ou Hong Kong; os novos mercados derivados de alimentos adquiriram proporções supranacionais, além do alcance das leis soberanas.

A volatilidade nos mercados alimentares também golpeou o que poderia ter sido uma grande oportunidade para a cooperação global. Quanto mais alto o custo do milho, da soja, do arroz e do trigo, mais as nações produtoras de grãos deveriam cooperar de forma a garantir que nações importadoras em pânico (e geralmente pobres) não aumentem ainda mais os dramáticos contágios de inflação alimentar e levantamentos políticos. Ao invés disso, países nervosos responderam com políticas do tipo salve-se quem puder, indo desde proibições à exportação e à acumulação de grãos, passando por monopolização de terras neo-mercantilistas em África. E as tentativas de conter a especulação de grãos feitas por activistas ou agências internacionais caíram no vazio. Enquanto isso, os fundos indexados continuam a prosperar, os banqueiros a embolsar os lucros, e os pobres do mundo cambaleiam à beira da inanição.

Traduzido por Gustavo Lapido Loureiro

Fonte: Foreign Policy

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