A correspondência entre o ditador Ernesto Geisel e Videla evidencia a vontade de cooperação entre ambas as ditaduras e revela como o governo militar brasileiro retomou a relação com a Argentina após tê-la reduzido a quase zero no governo justicialista.
A reportagem é de Darío Pignotti e publicada no jornal Página/12, 20-05-2013. A tradução é do Cepat.
Videla cumpriu o papel que dele se esperava na Operação Condor, o pacto terrorista que 27 anos atrás ocupou um capítulo importante da agenda da Argentina e do Brasil, onde o ditador Ernesto Geisel recebeu de bom grado a “nova” política externa do processo de reorganização nacional (e internacional), tal como se lê nos documentos, em sua maioria, secretos até hoje, obtidos pelo jornal Página/12.
“Foi com a maior satisfação que recebi das mãos do excelentíssimo senhor contra-almirante César Augusto Guzzetti, ministro de Relações Exteriores e Culto, a carta em que sua excelência teve a gentileza de fazer oportunas considerações sobre as relações entre os nossos países... que devem seguir o caminho da mais ampla colaboração”.
A correspondência de Ernesto Beckman Geisel dirigida a Videla exibe uma camaradagem carregada de adjetivos que não era característico nesse general criado em uma família de pastores luteranos alemães. “O Brasil, fiel à sua história e ao seu destino irrenunciavelmente americanista, está seguro de que as nossas relações devem basear-se em uma afetuosa compreensão (...) e no permanente entendimento fraterno”, escreve Geisel, o mesmo que havia reduzido a quase zero as relações com os presidentes Juan Perón e Isabel Martínez, quando seus embaixadores na Argentina pareciam menos interessados em visitar o Palácio San Martín do que em frequentar os cassinos militares para trocar ideias sobre como somar esforços na “guerra contra a subversão”.
A carta de Geisel a Videla, de 15 de dezembro de 1976, chegou a Buenos Aires dentro de uma maleta especial e não através de um telegrama, como era o habitual, diz o documento “secreto e urgentíssimo” reproduzido junto com esta nota.
No dia 06 de dezembro de 1976, nove dias antes da correspondência de Geisel, tinha morrido em seu exílio em Corrientes o ex-presidente João Goulart, que, de acordo com provas incontestáveis, foi um dos alvos prioritários da Operação Condor brasileira, que o espiou durante anos na Argentina, Uruguai e França, onde realizava consultas médicas por ser cardiopata.
Mais: está demonstrado que no dia 07 de dezembro de 1976, a ditadura brasileira proibiu a realização de uma autópsia dos restos do líder nacionalista, e potencial ameaça à transição de Geisel, por causa de uma parada cardíaca de origem incerta. Não há elementos conclusivos, mas suspeitas plausíveis, de que Goulart foi envenenado com cápsulas envenenadas colocadas entre seus medicamentos em uma ação concertada pelos regimes de Brasília, Buenos Aires e Montevidéu, e assim o entendeu a Comissão da Verdade da presidente Dilma Rousseff ao ordenar a exumação do corpo enterrado na cidade de São Borja, sem custódia militar, porque o Exército se negou a concedê-la há 10 dias, depois de receber um pedido das autoridades civis.
Voltemos à correspondência de Geisel do dia 15 de dezembro de 1976. O brasileiro a escreveu em resposta a outra de Videla (3-12-1976), na qual este se dizia persuadido de que a “Pátria (...) vive um momento dinâmico no plano das relações internacionais, particularmente em sua ativa e fecunda comunicação com os países irmãos”.
“A perdurável comunidade de destino americano nos assinala hoje, mais do que nunca, o caminho das realizações compartilhadas e a busca das grandes soluções”, propunha Videla, que morreu junto com seus segredos dos crimes transnacionais sobre os quais não quis falar no Tribunal Federal Nº 1 onde tramita a megacausa Condor.
Quem estudou esta confusão terrorista sul-americana sustenta que esta se valeu dos serviços da diplomacia, especialmente no caso brasileiro, onde os chanceleres teriam sido funcionais aos imperativos da guerra suja.
Portanto, este intercâmbio epistolar circunscrito à diplomacia presidencial de Geisel e Videla pode ser lido como um contraponto de mensagens cifradas sobre os avanços do terrorismo binacional no combate à resistência brasileira ou argentina. Que seja feito tudo pelo “recíproco interesse de nossos países”, escreveu Videla. Em dezembro de 1976, nove meses depois da derrocada do governo civil, a tirania argentina demonstrava que, ultrapassando algumas sonoras divergências geopolíticas com o sócio maior, por baixo existia uma complementação nas ações secretas “contra a subversão”.
Assim, pouco depois da queda de Isabel Martínez, o então chanceler brasileiro e antes embaixador em Buenos Aires, Francisco Azeredo da Silveira, recomendou fechar as fronteiras para colaborar com Videla e impedir a fuga de guerrilheiros e militantes argentinos.
Videla, por sua parte, assumindo-se como comandante do Condor celeste e branco, consentia na caça de opositores brasileiros, possivelmente contando com algum nível de coordenação junto aos agregados militares (os mortíferos “agremiles”) destacados no afrancesado Palácio Pereda, sede da missão diplomática situada na rua Cerrito, onde, segundo versões, havia um número exagerado de armas de fogo. Entre março, mês do golpe, e dezembro de 1976, foram sequestrados e desapareceram na Argentina os brasileiros Francisco Tenório Cerqueira Júnior, Maria Regina Marcondes Pinto, Jorge Alberto Basso, Sérgio Fernando Tula Silberbeg e Walter Kenneth Nelson Fleury, diz o relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho Operação Condor, da Comissão da Verdade.
O organismo foi apresentado por Dilma Rousseff diante dos rostos contidamente iracundos dos comandantes das Forças Armadas, os únicos, entre os cerca de 100 convidados à cerimônia, que evitaram aplaudi-la.
Ao finalizar aquele ato realizado em novembro de 2011, o então secretário dos Direitos Humanos argentino, Eduardo Luis Duhalde, já falecido, declarava a este jornal que um dos segredos mais bem guardados da Operação Condor era a participação do Brasil e sua conexão com a Argentina, e que essa sociedade criminosa só será revelada quando Washington liberar documentos brasileiros com a mesma profusão com que soltou documentos secretos sobre Argentina e Chile.
Averiguar até onde chegou a cumplicidade de Buenos Aires e Brasília será mais difícil após a morte de Videla, mas não se deve subestimar as pistas diplomáticas.
Em 06 de agosto de 1976, um telegrama confidencial redigido na embaixada brasileira informa aos seus superiores que o ministro de Relações Exteriores Guzzetti falou sobre a nova política externa vigente desde que as “Forças Armadas assumiram o poder” e a vocação de se aproximar mais ao Brasil, após anos de distanciamento.
Ao longo de 1976, os chanceleres Azeredo da Silveira e Guzzetti mantiveram reuniões entre si e com o principal fiador da Operação Condor, Henry Kissinger, que, segundo documentos tornados públicos há anos a pedido do National Security Archive, recomendou a ambos serem eficazes no trabalho de esmagar o inimigo.
“Nós desejamos o melhor para o novo governo (de Videla), desejamos seu sucesso (...) Se há coisas para fazer, vocês devem fazê-las logo”, recomendou o Prêmio Nobel da Paz norte-americano ao marinheiro chanceler Guzzetti, em junho de 1976.
A reportagem é de Darío Pignotti e publicada no jornal Página/12, 20-05-2013. A tradução é do Cepat.
Videla cumpriu o papel que dele se esperava na Operação Condor, o pacto terrorista que 27 anos atrás ocupou um capítulo importante da agenda da Argentina e do Brasil, onde o ditador Ernesto Geisel recebeu de bom grado a “nova” política externa do processo de reorganização nacional (e internacional), tal como se lê nos documentos, em sua maioria, secretos até hoje, obtidos pelo jornal Página/12.
“Foi com a maior satisfação que recebi das mãos do excelentíssimo senhor contra-almirante César Augusto Guzzetti, ministro de Relações Exteriores e Culto, a carta em que sua excelência teve a gentileza de fazer oportunas considerações sobre as relações entre os nossos países... que devem seguir o caminho da mais ampla colaboração”.
A correspondência de Ernesto Beckman Geisel dirigida a Videla exibe uma camaradagem carregada de adjetivos que não era característico nesse general criado em uma família de pastores luteranos alemães. “O Brasil, fiel à sua história e ao seu destino irrenunciavelmente americanista, está seguro de que as nossas relações devem basear-se em uma afetuosa compreensão (...) e no permanente entendimento fraterno”, escreve Geisel, o mesmo que havia reduzido a quase zero as relações com os presidentes Juan Perón e Isabel Martínez, quando seus embaixadores na Argentina pareciam menos interessados em visitar o Palácio San Martín do que em frequentar os cassinos militares para trocar ideias sobre como somar esforços na “guerra contra a subversão”.
A carta de Geisel a Videla, de 15 de dezembro de 1976, chegou a Buenos Aires dentro de uma maleta especial e não através de um telegrama, como era o habitual, diz o documento “secreto e urgentíssimo” reproduzido junto com esta nota.
No dia 06 de dezembro de 1976, nove dias antes da correspondência de Geisel, tinha morrido em seu exílio em Corrientes o ex-presidente João Goulart, que, de acordo com provas incontestáveis, foi um dos alvos prioritários da Operação Condor brasileira, que o espiou durante anos na Argentina, Uruguai e França, onde realizava consultas médicas por ser cardiopata.
Mais: está demonstrado que no dia 07 de dezembro de 1976, a ditadura brasileira proibiu a realização de uma autópsia dos restos do líder nacionalista, e potencial ameaça à transição de Geisel, por causa de uma parada cardíaca de origem incerta. Não há elementos conclusivos, mas suspeitas plausíveis, de que Goulart foi envenenado com cápsulas envenenadas colocadas entre seus medicamentos em uma ação concertada pelos regimes de Brasília, Buenos Aires e Montevidéu, e assim o entendeu a Comissão da Verdade da presidente Dilma Rousseff ao ordenar a exumação do corpo enterrado na cidade de São Borja, sem custódia militar, porque o Exército se negou a concedê-la há 10 dias, depois de receber um pedido das autoridades civis.
Voltemos à correspondência de Geisel do dia 15 de dezembro de 1976. O brasileiro a escreveu em resposta a outra de Videla (3-12-1976), na qual este se dizia persuadido de que a “Pátria (...) vive um momento dinâmico no plano das relações internacionais, particularmente em sua ativa e fecunda comunicação com os países irmãos”.
“A perdurável comunidade de destino americano nos assinala hoje, mais do que nunca, o caminho das realizações compartilhadas e a busca das grandes soluções”, propunha Videla, que morreu junto com seus segredos dos crimes transnacionais sobre os quais não quis falar no Tribunal Federal Nº 1 onde tramita a megacausa Condor.
Quem estudou esta confusão terrorista sul-americana sustenta que esta se valeu dos serviços da diplomacia, especialmente no caso brasileiro, onde os chanceleres teriam sido funcionais aos imperativos da guerra suja.
Portanto, este intercâmbio epistolar circunscrito à diplomacia presidencial de Geisel e Videla pode ser lido como um contraponto de mensagens cifradas sobre os avanços do terrorismo binacional no combate à resistência brasileira ou argentina. Que seja feito tudo pelo “recíproco interesse de nossos países”, escreveu Videla. Em dezembro de 1976, nove meses depois da derrocada do governo civil, a tirania argentina demonstrava que, ultrapassando algumas sonoras divergências geopolíticas com o sócio maior, por baixo existia uma complementação nas ações secretas “contra a subversão”.
Assim, pouco depois da queda de Isabel Martínez, o então chanceler brasileiro e antes embaixador em Buenos Aires, Francisco Azeredo da Silveira, recomendou fechar as fronteiras para colaborar com Videla e impedir a fuga de guerrilheiros e militantes argentinos.
Videla, por sua parte, assumindo-se como comandante do Condor celeste e branco, consentia na caça de opositores brasileiros, possivelmente contando com algum nível de coordenação junto aos agregados militares (os mortíferos “agremiles”) destacados no afrancesado Palácio Pereda, sede da missão diplomática situada na rua Cerrito, onde, segundo versões, havia um número exagerado de armas de fogo. Entre março, mês do golpe, e dezembro de 1976, foram sequestrados e desapareceram na Argentina os brasileiros Francisco Tenório Cerqueira Júnior, Maria Regina Marcondes Pinto, Jorge Alberto Basso, Sérgio Fernando Tula Silberbeg e Walter Kenneth Nelson Fleury, diz o relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho Operação Condor, da Comissão da Verdade.
O organismo foi apresentado por Dilma Rousseff diante dos rostos contidamente iracundos dos comandantes das Forças Armadas, os únicos, entre os cerca de 100 convidados à cerimônia, que evitaram aplaudi-la.
Ao finalizar aquele ato realizado em novembro de 2011, o então secretário dos Direitos Humanos argentino, Eduardo Luis Duhalde, já falecido, declarava a este jornal que um dos segredos mais bem guardados da Operação Condor era a participação do Brasil e sua conexão com a Argentina, e que essa sociedade criminosa só será revelada quando Washington liberar documentos brasileiros com a mesma profusão com que soltou documentos secretos sobre Argentina e Chile.
Averiguar até onde chegou a cumplicidade de Buenos Aires e Brasília será mais difícil após a morte de Videla, mas não se deve subestimar as pistas diplomáticas.
Em 06 de agosto de 1976, um telegrama confidencial redigido na embaixada brasileira informa aos seus superiores que o ministro de Relações Exteriores Guzzetti falou sobre a nova política externa vigente desde que as “Forças Armadas assumiram o poder” e a vocação de se aproximar mais ao Brasil, após anos de distanciamento.
Ao longo de 1976, os chanceleres Azeredo da Silveira e Guzzetti mantiveram reuniões entre si e com o principal fiador da Operação Condor, Henry Kissinger, que, segundo documentos tornados públicos há anos a pedido do National Security Archive, recomendou a ambos serem eficazes no trabalho de esmagar o inimigo.
“Nós desejamos o melhor para o novo governo (de Videla), desejamos seu sucesso (...) Se há coisas para fazer, vocês devem fazê-las logo”, recomendou o Prêmio Nobel da Paz norte-americano ao marinheiro chanceler Guzzetti, em junho de 1976.
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