Mídia não explica, demoniza
Por Alberto Dines
Há quase dois meses discute-se a implementação do programa “Mais
Médicos” para atender as exigências dos manifestantes de junho.
Vacilante, o governo foi apresentando uma sucessão de idéias incompletas
que as corporações médica e acadêmica foram torpedeando
implacavelmente. Com o decidido apoio da corporação jornalística.
O projeto sobrevivente e o mais consistente, apresentado pela própria
presidente Dilma Rousseff em seguida às manifestações, previa a
importação de médicos do exterior. Inclusive cubanos. Não era novidade:
médicos desse país já prestaram serviço em diversos pontos do Brasil,
com excelentes resultados.
À medida que a ideia se cristalizava, aumentava a histeria anticubana
que se estendia a candidatos de outros países, especialmente Portugal e
Espanha.
Acusações primárias se alternavam: ora dizia-se que os cubanos viriam
como espiões ou agentes provocadores, ora que chegariam aqui na condição
de escravos (ganhando salários irrisórios enquanto o governo de Havana
ficaria com a parte do leão dos 10 mil reais mensais pagos pelo governo
brasileiro). Alegou-se que cláusulas especiais foram impostas para
evitar que os cubanos pedissem asilo político (por isso vinham sozinhos,
sem a família). Nenhum editor deu-se ao trabalho de esclarecer,
explicar vantagens e desvantagens.
Gestos e opções
Nos últimos dias, em desespero de causa, celebrados opinionistas
acusaram os irmãos Castro de converter seus médicos em simples commodities, fonte de divisas para financiar um país falido. Argumento pueril, enganoso: commodities
são bens em estado bruto, médicos são bens com alto valor agregado. A
Índia estimula a saída dos seus cientistas e especialistas em
informática de olho no retorno que trarão ao país; o mesmo acontece com
Israel, que há décadas exporta agrônomos para os quatro cantos do mundo.
O exercício da medicina não pode ser examinado sem levar em conta o seu
caráter humanitário. Levar médicos aos grotões do país – além de salvar
vidas preciosas, contribuirá decisivamente para desmonetizar uma
profissão que vem perdendo velozmente o seu caráter original, solidário e
altruísta.
Nossa mídia embarcou de corpo e alma nessa cruzada egoísta,
antissocial, fomentada primordialmente pela poderosa corporação médica,
pelas empresas de ensino superior & adjacências. E isso no
pós-junho, quando nas passeatas ainda reverberam referências pouco
airosas à insensibilidade de jornais e jornalistas.
Acusa-se o PT de aparelhar o governo, porém a mesma obsessão ideológica
domina os mais instintivos gestos e opções da grande e média imprensa
brasileira.
Um jornalista que ouve o coração
Neste ambiente ríspido, desprovido de solidariedade, a coluna de Ricardo Noblat (segunda-feira, 26/8, O Globo, pág. 2) funciona como um alento e, talvez, como um divisor de águas.
O experiente repórter, editor e agora bem-sucedido blogueiro não se
deixou enredar pelas armadilhas ideológicas, preferiu entregar-se aos
valores morais, como se fazia antigamente quando os jornalistas naquelas
redações barulhentas ouviam as batidas do coração e a pressão da
consciência.
“Só vejo vantagens”
– apesar do pragmatismo e objetividade do título, trata-se de uma
calorosa convocação para que os jornalistas deixem as trincheiras
partidárias que tanto prejudicam os seus dotes narrativos e se entreguem
a devoções mais profundas, essenciais.
“Mais Médicos” é um programa da saúde pública. “Mais humanidade” pode ser um projeto de renovação jornalística.
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