Com um martelo em punho, uma jovem de rosto coberto vestida de
preto tenta destruir um Chevrolet Camaro (de 200 mil reais) em uma
concessionária na Avenida Rebouças, São Paulo. Outros trajados da mesma
forma, paus e pedras nas mãos, estilhaçam a parede de vidro de uma
agência bancária. Uma faixa pede a saída do governador Geraldo Alckmin
– o A do nome traz o símbolo de anarquia. Até chegarem as bombas de
efeito moral e gás lacrimogêneo da tropa de choque da PM. Sem movimento
social ou partido à frente, o protesto reuniu cerca de 200 jovens,
deixou lojas pichadas e 20 detidos na terça 30 de julho. Mas as cenas
parecem repetidas, a ecoar os eventos que há meses têm chacoalhado o
País.
A reportagem é de Piero Locatelli, Willian Vieira e publicada por Carta Capital, 21-08-2013.
Desde o princípio das manifestações de rua no dia 6 de junho de 2013 em São Paulo contra o aumento nas passagens de ônibus, muito ficou por ser entendido. Seria a carestia a motivação dos protestos que cruzaram a barreira de 1 milhão de pessoas em todo o Brasil ou o esgotamento do sistema político? E os manifestantes, eram jovens anarquistas sem partido ou seriam necessários novos conceitos para dar conta de tantas vozes? De todas as perguntas, a que mais intrigou o País segue sem resposta clara: em meio ao mar de cabeças e punhos em riste, quem eram e o que queriam aqueles jovens de preto dispostos a destruir bancos e lojas e enfrentar a polícia com as próprias mãos?
Black Bloc foi o termo surgido de forma confusa na imprensa nacional. Seriam jovens anarquistas anticapitalistas e antiglobalização, cujo lema passa por destruir a propriedade de grandes corporações e enfrentar a polícia. Nas capas de jornais e na boca dos âncoras televisivos, eram “a minoria baderneira” em meio a “protestos que começaram pacíficos e ordeiros”. Uma abordagem simplista diante de um fenômeno complexo. Além da ameaça à propriedade e às regras do cotidiano (como atrapalhar o trânsito e a visita oficial do papa), as atuações explicitaram a emergência de uma faceta dos movimentos sociais, de cunho anarquista e autonomista, que vão do Movimento Passe Livre (MPL) e outros coletivos até a face extrema dos encapuzados.
Corretos ou não, a tática Black Bloc forçou a discussão sobre o uso da desobediência civil e da ação direta, do questionamento da mobilização pelo próprio sistema representativo. Ignorá-los não resolve a questão: o que faz um jovem se juntar a desconhecidos para atacar o patrimônio de empresas privadas sob risco de apanhar da polícia?
“O que nos motiva é a insatisfação com o sistema político e econômico”, diz Roberto (nome fictício), 26 anos e três Black Blocs na bagagem. Ele não se identifica por razões óbvias: o que faz é ilegal. Roberto já havia ido às ruas contra a alta da tarifa, sem depredar nada. Conheceu a tática e decidiu pelas vias de fato. “Nossa sociedade vive permeada por símbolos. Participar de um Black Bloc é fazer uso deles para quebrar preconceitos, não só do alvo atacado, mas da ideia de vandalismo”, diz. As ações de depredação não seriam violentas por não serem contra pessoas. “Não há violência. Há performance.” Roberto confia em coletivos como o MPL e a Marcha das Vadias. Mas não em partidos políticos. “Não me sinto representado por partidos. Não sou a favor de democracia representativa e, sim, de uma democracia direta.”
Estudar política e quebrar bancos caminham juntos. “Não se trata de depredar pelo simples prazer de quebrar ou pichar coisas, mas de atacar o símbolo representado ali. Quando atacamos uma agência bancária, não somos ingênuos de acreditar que estamos ajudando a falir um banco, mas tornando evidente a insanidade do capitalismo. Política também se faz com as próprias mãos.” Como Roberto, milhares de jovens simpatizam com a causa e o modo de defendê-la. Juntas, as páginas do Black Bloc no Facebook receberam 30 mil “likes”. Novas surgem a cada dia. Páginas fechadas têm centenas de membros. E eles já se encontram fora da internet. Após o protesto em São Paulo no dia 11, participantes fizeram uma reunião espontânea e sem líderes.
“O Black Bloc no Brasil veio para ficar”, afirma Pablo Ortellado, professor da USP. O pesquisador participou de protestos antiglobalização no começo dos anos 2000, quando o termo apareceu pela primeira vez no País. Hoje estuda a emergência de tais grupos. Para entendê-los, diz, é preciso voltar no tempo. A denominação surgiu na Alemanha nos anos 80, com uma pauta (ecologia radical) e uma função específica: isolar manifestantes e polícia, evitando cassetetes e agitadores infiltrados. Em 1999, manifestaram-se com violência em Seattle (EUA), quando a Organização Mundial do Comércio ali se reuniu.
Protestos terminaram com pichações e depredação de empresas como Starbucks. “É quando o anarquismo dominou e o Black Bloc ficou associado ao uso da violência como ação direta, passando a ter caráter mais estético, espetacular, de intervenção urbana.” Por aqui, ambos os momentos ocorreram. “No Brasil, eles cumpriram as duas tarefas”, diz Ortellado. Num primeiro ato, protegeram os manifestantes da repressão policial, tradição alemã. Depois, sobrou o modelo americano, de ataque simbólico a grandes corporações, de espetáculo midiático.
No fim de junho, o País viu o MPL conseguir, na base dos protestos nas ruas, baixar a tarifa de ônibus Brasil afora. Sem sua organização, os protestos continuaram com bandeiras confusas e reivindicações mais amplas – exatamente a conjuntura na qual os Black Blocs florescem. Se no começo eles tomavam carona em protestos organizados por entidades com pautas claras, pouco a pouco passaram a agir sozinhos. O protesto de terça 30, por exemplo, teve convocação apócrifa. Tais manifestações tendem a ocorrer cada vez mais desse jeito: instantâneas, acéfalas, impossíveis de controlar. Como não são uma organização, mas uma tática condicionada a contextos políticos, os Black Blocs devem surgir com mais frequência. A Copa do Mundo e as Olimpíadas, com seus espaços delimitados, gastos controversos e simbologias fartas, são alvos esperados.
O arcabouço teórico e prático paira na rede. Uma espécie de biblioteca virtual, com links para o “cânone” do Black Bloc, é replicada nas páginas dos seguidores da tática. Há o “Manifesto Black Bloc”, com máximas de caráter político, e o “Manual de Ação Direta”, espécie de treinamento a distância para a ação direita, com as seções: desobediência civil (e temas como “usando escudos”, “apanhando da polícia” e “lidando com animais”); primeiros socorros (além dos itens “gás lacrimogêneo” e “spray de pimenta”, há dicas de como lidar com queimaduras e traumatismos cranianos); e “leis, direitos e segurança” (“sendo preso”, “na delegacia” e “como deve ser a sua mochila” são os tópicos). Uma frase do manual dá o tom: “Lembre que o que eles fazem conosco todos os dias é uma violência, a desobediência violenta é uma reação a isso e, portanto, não é gratuita, como eles tentam fazer parecer”.
O surgimento de um bloco não é centralizado nem permanente. É o encontro de indivíduos com propósitos similares, mas nunca coibidos pela coletividade. “Uma formação temporária, sem identidade, na qual os indivíduos podem nem saber quem é a pessoa ao lado. Por isso é difícil controlá-los”, diz Saul Newman, professor de teoria política da Goldsmiths University, de Londres. Newman cunhou o termo pós-anarquismo para abarcar formas de resposta direta, às vezes radicais, a um Estado que interfere cada vez mais na vida de seus cidadãos. A sociedade estaria subestimando esse potencial político. “Ainda que os Black Blocs representem uma minoria no movimento anarquista, são um importante símbolo da emergência de novas formas de políticas antiautoritárias. Seus rostos cobertos se tornaram a imagem do ativismo radical contemporâneo.”
Entre os manifestantes não ligados ao Black Bloc, duas posturas ganham espaço. Por um lado, certo romantismo idealista alimentado pelas redes sociais. Pois eles agiriam como “linha de frente no enfrentamento com a polícia”, diz um blog anarquista. De outro há uma ojeriza irredutível. Em uma democracia jovem, desacostumada com manifestações difusas, qualquer protesto fora do script é temido. Durante os atos de junho, não faltaram críticas: eles só seriam válidos se pacíficos, por meio da palavra. “Mas como protestar pela palavra se é ela o suporte por meio do qual o Estado de Direito exerce violência?”, indaga o professor de teoria política Nildo Avelino, do Grupo de Estudos e Pesquisas Anarquistas da UFPB. “É preciso criar novas formas de comunicar: o Black Bloc pode ser uma delas.”
Para Avelino, o Black Bloc pode ser visto como a retomada de um tipo de ação praticada pelos anarquistas no século XIX, a propaganda pelo fato, ali para suprir a insuficiência da propaganda oral e escrita quando a prática eleitoral ganhava influência. A razão desse retorno à ação direta adviria da paulatina perda da dignidade imposta pelo capitalismo. O que explica a aceitação dos Black Blocs entre jovens na rede: o fenômeno daria voz a anseios difusos de quebrar a ordem, longe das vias institucionais. Mesma opinião tem o ativista americano John Zerzan, um dos primeiros a defender a tática nos EUA. Em 1999, a mídia associou os protestos de Seattle à sua influência. À época, o centro financeiro da cidade foi destruído. “Não será surpresa ver novas e maiores manifestações do Black Bloc no futuro”, afirma. “Demonstrações pacíficas não alcançam nada. Os protestos de 2003 contra a Guerra do Iraque foram os maiores da história e não conseguiram nada.”
Um veredicto temerário, não só por instaurar o embate físico em detrimento do debate político como regra, mas por alimentar justamente a opressão combatida. Não sendo possível separar ativistas encapuzados de policiais infiltrados e com a expansão da tática, seria possível realizar no futuro ações diretas de massa não violentas, sem embates violentos televisionados e criticados por setores amplos da sociedade? “A proeminência das táticas dos Black Blocs em insurreições recentes ao redor do mundo, inclusive no Brasil, tem alimentado o estereótipo dos anarquistas como destrutivos”, alerta Newman. “A mídia e as elites os demonizam e usam seus confrontos espetaculares para deslegitimar protestos mais amplos.” Um problema mais sério que as depredações.
A discussão não passou ao largo de quem foi às ruas em junho no Brasil, quando bases policiais e bancos foram destruídos em protestos organizados pelo MPL. O coletivo prestou ajuda jurídica a todos os presos nos protestos, independente do crime a eles imputado. Todas as prisões eram políticas e arbitrárias, diziam. “A gente tentava evitar que houvesse treta entre os manifestantes. Tão ruim quanto o que aconteceu na Paulista, quando os militantes de partidos foram atacados, era quando havia desentendimentos entre manifestantes que optam por uma tática ou outra, entre os chamados de pacíficos e os chamados de baderneiros”, diz Caio Martins, do MPL.
Movimentos sociais e partidos (do PSTU à CUT), tradicionais portos para insatisfações juvenis nas ruas, mostraram-se contrários à depredação e à tática em geral. Mas, confusa diante dos novos atos, a “esquerda tradicional” evita falar do assunto. Ninguém os defende, com receio de perder apoio de setores mais conservadores, e poucos os criticam, temendo prejudicar a união da chamada voz das ruas.
Fora do País, o mesmo ocorre. Mal os Black Blocs apareceram nos protestos no Cairo, manifestantes passaram a ser presos aleatoriamente sob a acusação de “terrorismo”. O mesmo oportunismo aconteceu com o Occupy Wall Street. Em 2012, o ativista Chris Hedges os descreveu como o câncer que debelou o movimento, até então bem-sucedido em debater a tirania do capitalismo financeiro. O artigo virou um manifesto anti-Black Block. Derrick Jensen, a voz mais crítica contra a tática, concorda. “Sua antipatia contra qualquer forma de organização que iniba sua liberdade de ação faz com que eles tentem destruir até organizações lutando pela revolução social”, diz. Jensen é taxativo: para quem busca alcançar conquistas sociais concretas, a tática é um desserviço. “Atos gratuitos de destruição com espírito de carnaval não vão arranhar o capitalismo”, defende. “É preciso estratégia, objetivos. E certa ética.”
A reportagem é de Piero Locatelli, Willian Vieira e publicada por Carta Capital, 21-08-2013.
Desde o princípio das manifestações de rua no dia 6 de junho de 2013 em São Paulo contra o aumento nas passagens de ônibus, muito ficou por ser entendido. Seria a carestia a motivação dos protestos que cruzaram a barreira de 1 milhão de pessoas em todo o Brasil ou o esgotamento do sistema político? E os manifestantes, eram jovens anarquistas sem partido ou seriam necessários novos conceitos para dar conta de tantas vozes? De todas as perguntas, a que mais intrigou o País segue sem resposta clara: em meio ao mar de cabeças e punhos em riste, quem eram e o que queriam aqueles jovens de preto dispostos a destruir bancos e lojas e enfrentar a polícia com as próprias mãos?
Black Bloc foi o termo surgido de forma confusa na imprensa nacional. Seriam jovens anarquistas anticapitalistas e antiglobalização, cujo lema passa por destruir a propriedade de grandes corporações e enfrentar a polícia. Nas capas de jornais e na boca dos âncoras televisivos, eram “a minoria baderneira” em meio a “protestos que começaram pacíficos e ordeiros”. Uma abordagem simplista diante de um fenômeno complexo. Além da ameaça à propriedade e às regras do cotidiano (como atrapalhar o trânsito e a visita oficial do papa), as atuações explicitaram a emergência de uma faceta dos movimentos sociais, de cunho anarquista e autonomista, que vão do Movimento Passe Livre (MPL) e outros coletivos até a face extrema dos encapuzados.
Corretos ou não, a tática Black Bloc forçou a discussão sobre o uso da desobediência civil e da ação direta, do questionamento da mobilização pelo próprio sistema representativo. Ignorá-los não resolve a questão: o que faz um jovem se juntar a desconhecidos para atacar o patrimônio de empresas privadas sob risco de apanhar da polícia?
“O que nos motiva é a insatisfação com o sistema político e econômico”, diz Roberto (nome fictício), 26 anos e três Black Blocs na bagagem. Ele não se identifica por razões óbvias: o que faz é ilegal. Roberto já havia ido às ruas contra a alta da tarifa, sem depredar nada. Conheceu a tática e decidiu pelas vias de fato. “Nossa sociedade vive permeada por símbolos. Participar de um Black Bloc é fazer uso deles para quebrar preconceitos, não só do alvo atacado, mas da ideia de vandalismo”, diz. As ações de depredação não seriam violentas por não serem contra pessoas. “Não há violência. Há performance.” Roberto confia em coletivos como o MPL e a Marcha das Vadias. Mas não em partidos políticos. “Não me sinto representado por partidos. Não sou a favor de democracia representativa e, sim, de uma democracia direta.”
Estudar política e quebrar bancos caminham juntos. “Não se trata de depredar pelo simples prazer de quebrar ou pichar coisas, mas de atacar o símbolo representado ali. Quando atacamos uma agência bancária, não somos ingênuos de acreditar que estamos ajudando a falir um banco, mas tornando evidente a insanidade do capitalismo. Política também se faz com as próprias mãos.” Como Roberto, milhares de jovens simpatizam com a causa e o modo de defendê-la. Juntas, as páginas do Black Bloc no Facebook receberam 30 mil “likes”. Novas surgem a cada dia. Páginas fechadas têm centenas de membros. E eles já se encontram fora da internet. Após o protesto em São Paulo no dia 11, participantes fizeram uma reunião espontânea e sem líderes.
“O Black Bloc no Brasil veio para ficar”, afirma Pablo Ortellado, professor da USP. O pesquisador participou de protestos antiglobalização no começo dos anos 2000, quando o termo apareceu pela primeira vez no País. Hoje estuda a emergência de tais grupos. Para entendê-los, diz, é preciso voltar no tempo. A denominação surgiu na Alemanha nos anos 80, com uma pauta (ecologia radical) e uma função específica: isolar manifestantes e polícia, evitando cassetetes e agitadores infiltrados. Em 1999, manifestaram-se com violência em Seattle (EUA), quando a Organização Mundial do Comércio ali se reuniu.
Protestos terminaram com pichações e depredação de empresas como Starbucks. “É quando o anarquismo dominou e o Black Bloc ficou associado ao uso da violência como ação direta, passando a ter caráter mais estético, espetacular, de intervenção urbana.” Por aqui, ambos os momentos ocorreram. “No Brasil, eles cumpriram as duas tarefas”, diz Ortellado. Num primeiro ato, protegeram os manifestantes da repressão policial, tradição alemã. Depois, sobrou o modelo americano, de ataque simbólico a grandes corporações, de espetáculo midiático.
No fim de junho, o País viu o MPL conseguir, na base dos protestos nas ruas, baixar a tarifa de ônibus Brasil afora. Sem sua organização, os protestos continuaram com bandeiras confusas e reivindicações mais amplas – exatamente a conjuntura na qual os Black Blocs florescem. Se no começo eles tomavam carona em protestos organizados por entidades com pautas claras, pouco a pouco passaram a agir sozinhos. O protesto de terça 30, por exemplo, teve convocação apócrifa. Tais manifestações tendem a ocorrer cada vez mais desse jeito: instantâneas, acéfalas, impossíveis de controlar. Como não são uma organização, mas uma tática condicionada a contextos políticos, os Black Blocs devem surgir com mais frequência. A Copa do Mundo e as Olimpíadas, com seus espaços delimitados, gastos controversos e simbologias fartas, são alvos esperados.
O arcabouço teórico e prático paira na rede. Uma espécie de biblioteca virtual, com links para o “cânone” do Black Bloc, é replicada nas páginas dos seguidores da tática. Há o “Manifesto Black Bloc”, com máximas de caráter político, e o “Manual de Ação Direta”, espécie de treinamento a distância para a ação direita, com as seções: desobediência civil (e temas como “usando escudos”, “apanhando da polícia” e “lidando com animais”); primeiros socorros (além dos itens “gás lacrimogêneo” e “spray de pimenta”, há dicas de como lidar com queimaduras e traumatismos cranianos); e “leis, direitos e segurança” (“sendo preso”, “na delegacia” e “como deve ser a sua mochila” são os tópicos). Uma frase do manual dá o tom: “Lembre que o que eles fazem conosco todos os dias é uma violência, a desobediência violenta é uma reação a isso e, portanto, não é gratuita, como eles tentam fazer parecer”.
O surgimento de um bloco não é centralizado nem permanente. É o encontro de indivíduos com propósitos similares, mas nunca coibidos pela coletividade. “Uma formação temporária, sem identidade, na qual os indivíduos podem nem saber quem é a pessoa ao lado. Por isso é difícil controlá-los”, diz Saul Newman, professor de teoria política da Goldsmiths University, de Londres. Newman cunhou o termo pós-anarquismo para abarcar formas de resposta direta, às vezes radicais, a um Estado que interfere cada vez mais na vida de seus cidadãos. A sociedade estaria subestimando esse potencial político. “Ainda que os Black Blocs representem uma minoria no movimento anarquista, são um importante símbolo da emergência de novas formas de políticas antiautoritárias. Seus rostos cobertos se tornaram a imagem do ativismo radical contemporâneo.”
Entre os manifestantes não ligados ao Black Bloc, duas posturas ganham espaço. Por um lado, certo romantismo idealista alimentado pelas redes sociais. Pois eles agiriam como “linha de frente no enfrentamento com a polícia”, diz um blog anarquista. De outro há uma ojeriza irredutível. Em uma democracia jovem, desacostumada com manifestações difusas, qualquer protesto fora do script é temido. Durante os atos de junho, não faltaram críticas: eles só seriam válidos se pacíficos, por meio da palavra. “Mas como protestar pela palavra se é ela o suporte por meio do qual o Estado de Direito exerce violência?”, indaga o professor de teoria política Nildo Avelino, do Grupo de Estudos e Pesquisas Anarquistas da UFPB. “É preciso criar novas formas de comunicar: o Black Bloc pode ser uma delas.”
Para Avelino, o Black Bloc pode ser visto como a retomada de um tipo de ação praticada pelos anarquistas no século XIX, a propaganda pelo fato, ali para suprir a insuficiência da propaganda oral e escrita quando a prática eleitoral ganhava influência. A razão desse retorno à ação direta adviria da paulatina perda da dignidade imposta pelo capitalismo. O que explica a aceitação dos Black Blocs entre jovens na rede: o fenômeno daria voz a anseios difusos de quebrar a ordem, longe das vias institucionais. Mesma opinião tem o ativista americano John Zerzan, um dos primeiros a defender a tática nos EUA. Em 1999, a mídia associou os protestos de Seattle à sua influência. À época, o centro financeiro da cidade foi destruído. “Não será surpresa ver novas e maiores manifestações do Black Bloc no futuro”, afirma. “Demonstrações pacíficas não alcançam nada. Os protestos de 2003 contra a Guerra do Iraque foram os maiores da história e não conseguiram nada.”
Um veredicto temerário, não só por instaurar o embate físico em detrimento do debate político como regra, mas por alimentar justamente a opressão combatida. Não sendo possível separar ativistas encapuzados de policiais infiltrados e com a expansão da tática, seria possível realizar no futuro ações diretas de massa não violentas, sem embates violentos televisionados e criticados por setores amplos da sociedade? “A proeminência das táticas dos Black Blocs em insurreições recentes ao redor do mundo, inclusive no Brasil, tem alimentado o estereótipo dos anarquistas como destrutivos”, alerta Newman. “A mídia e as elites os demonizam e usam seus confrontos espetaculares para deslegitimar protestos mais amplos.” Um problema mais sério que as depredações.
A discussão não passou ao largo de quem foi às ruas em junho no Brasil, quando bases policiais e bancos foram destruídos em protestos organizados pelo MPL. O coletivo prestou ajuda jurídica a todos os presos nos protestos, independente do crime a eles imputado. Todas as prisões eram políticas e arbitrárias, diziam. “A gente tentava evitar que houvesse treta entre os manifestantes. Tão ruim quanto o que aconteceu na Paulista, quando os militantes de partidos foram atacados, era quando havia desentendimentos entre manifestantes que optam por uma tática ou outra, entre os chamados de pacíficos e os chamados de baderneiros”, diz Caio Martins, do MPL.
Movimentos sociais e partidos (do PSTU à CUT), tradicionais portos para insatisfações juvenis nas ruas, mostraram-se contrários à depredação e à tática em geral. Mas, confusa diante dos novos atos, a “esquerda tradicional” evita falar do assunto. Ninguém os defende, com receio de perder apoio de setores mais conservadores, e poucos os criticam, temendo prejudicar a união da chamada voz das ruas.
Fora do País, o mesmo ocorre. Mal os Black Blocs apareceram nos protestos no Cairo, manifestantes passaram a ser presos aleatoriamente sob a acusação de “terrorismo”. O mesmo oportunismo aconteceu com o Occupy Wall Street. Em 2012, o ativista Chris Hedges os descreveu como o câncer que debelou o movimento, até então bem-sucedido em debater a tirania do capitalismo financeiro. O artigo virou um manifesto anti-Black Block. Derrick Jensen, a voz mais crítica contra a tática, concorda. “Sua antipatia contra qualquer forma de organização que iniba sua liberdade de ação faz com que eles tentem destruir até organizações lutando pela revolução social”, diz. Jensen é taxativo: para quem busca alcançar conquistas sociais concretas, a tática é um desserviço. “Atos gratuitos de destruição com espírito de carnaval não vão arranhar o capitalismo”, defende. “É preciso estratégia, objetivos. E certa ética.”
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