Corem diante desta negra, doutores! Ela tem o que os senhores perderam
“Somos médicos por vocação, não nos interessa um salário, fazemos por amor”, afirmou Nelson Rodrigues, 45.
“Nossa motivação é a solidariedade”, assegurou Milagros Cardenas Lopes, 61
“Viemos
para ajudar, colaborar, complementar com os médicos brasileiros”,
destacou Cardenas em resposta à suspeita de trabalho escravo. “O
salário é suficiente”, complementou Natasha Romero Sanches, 44.
Poucas frases, mas que soam como se estivessem sendo ditas por seres de outro planeta no Brasil que vivemos.
O que disseram os primeiros médicos cubanos do grupo
que vem para servir onde médicos brasileiros não querem ir deveria
fazer certos dirigentes da medicina brasileira reduzirem à pequenez de
seus sentimentos e à brutalidade de suas vidas, de onde se foi, há
muito tempo, qualquer amor à igualdade essencial entre todos os seres
humanos.
Porque gente que não se
emociona com o sofrimento e a carência de seus semelhantes, gente que
se formou, muitas vezes, em escolas de medicina pagas com o imposto
que brasileiros miseráveis recolheram sobre sua farinha, seu feijão,
sua rala ração, gente que já viu seus concidadãos madrugando em filas,
no sereno, para obter um simples atendimento, gente assim não é
civilizada, não importa quão bem tratadas sejam suas unhas, penteados
os seus cabelos e reluzentes seus carros.
Perto
desta negra aí da foto, que para vocês só poderia servir para lavar
suas roupas e pajear seus ricos filhinhos, criados para herdar o
“negócio” dos pais, vocês não passam de selvagens, de brutos.
Vocês
podem saber quais são as mais recentes drogas, aprendidas nos
congressos em locais turísticos, custeados por laboratórios que lhes dão
as migalhas do lucro bilionário que têm ao vender remédios. Vocês
podem conhecer o último e caro exame de medicina nuclear disponível na
praça a quem pode pagar. Vocês podem ser ricos, ou acharem que são,
porque de verdade não passam de uma subnobreza deplorável, que acha o
máximo ir a Miami.
Mas vocês são lixo perto dessa negra, a Doutora – sim, Doutora, negra, negrinha assim!- Natasha é, eu lhes garanto.
Sabem
por que? Por que ela é capaz de achar que o que faz é mais importante
do que aquilo que ganha, desde que isso seja o suficiente para viver
com dignidade material. Porque a dignidade moral ela a tem, em
quantidade suficiente para saber que é uma médica, por cem, mil ou um
milhão de dólares.
Isso, doutores,
os senhores já perderam. E talvez nunca mais voltem a ter, porque
isso não se compra, não se vende, não se aluga, como muitos dos
senhores, para manter o status de pertenceram ao corpo clínico de um
hospital, fazem com seus colegas, para que dêem o plantão em seus
lugares.
Os senhores não são
capazes de fazer um milésimo do que ela faz pelos seres humanos,
desembarcando sob sua hostilidade num país estrangeiro, para tratar de
gente pobre que os senhores nao se dispõem a cuidar nem querem deixar
que se cuide.
Os senhores não
gritaram, não xingaram nem ameaçaram com polícia
aos Roger Abdelmassih, o estuprador, nem contra o infleiz que extorquiu
R$ 1.200 para fazer o parto de uma adolescente pobre, nem contra os
doutores dos dedos de silicone, nem contra os espertalhões da
maternidade paulista cuja única atividade era bater o ponto.
Eles não os ameaçaram, ameaçaram apenas aos pobres do Brasil.
Estes
aí, sim, estes os ameaçam. Ameaçam a aceitação do que vocês se
tornaram, porque deixaram que a aspiração normal e justa de receber por
seu trabalho se tornasse maior do que a finalidade deste próprio
trabalho, porque o trabalho é um bem social e coletivo, ou então vira
mero negócio mercantil.
É isto que
estes médicos cubanos representam de ameaça: o colocar o egoísmo, o
consumismo, o mercantilismo reduzidos ao seu tamanho, a algo que não é
e nem pode ser o tamanho da civilização humana.
Aliás, é isso que Cuba, há quase 55 anos, representa.
Um país minúsculo, cheio de carências, que é capaz de dar a mão dos médicos a este gigante brasileiro.
E
daí que eles exportem médicos como fonte de receita? Nós não
exportamos nossos meninos para jogar futebol? O que deu mais trabalho,
mais investimento, o que agregou mais valor a um país: escolas de
medicina ou esteiras rolantes para exportar seus minérios?
É por isso que o velhíssimo Fidel Castro encarna muito mais a juventude que estes yuppies coxinhas, cuja vida sem causa cabe toda dentro de um cartão de crédito.
Eu agradeço à Doutora Natasha.
Ela
me lembrou, singelamente, que coração é algo muito maior do que
aquele volume que aparece, sombrio, nas tantas ressonâncias, tomografias
e cateterismos porque passei nos últimos meses.
Ele
é o centro do progresso humano, mais do que o cérebro, porque é ele
quem dá o norte, o sentido, o rumo dos pensamentos e da vida.
Porque, do contrário, o saber vira arrogância e os sentimentos, indiferença.
E o coração, como na música de Mercedes Sosa, una mala palabra.
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