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"Volta do interesse por Marx explica porque a História não acabou", diz geógrafo britânico
David Harvey lembra que, quando a situação econômica é favorável, é
natural que autor de "O Capital" seja esquecido por tum tempo
Glauco Faria e Thiago Balbi
O geógrafo britânico David Harvey fala sobre a volta do interesse em Marx, analisa a atual situação econômica da Europa e explica como a atual ideologia consumista norteia a ordenação das cidades.
Fórum: O que o senhor acha desse ressurgimento do interesse em Marx, tanto em estudos acadêmicos quanto como inspiração no meio político? David Harvey: Na
verdade, a história de se ler Marx surge quando tudo está mal e ninguém
sabe bem o por quê, daí as pessoas retornam e dizem: “Bem, Marx tinha
algo a dizer sobre isso”. Acho que, historicamente, é assim. E há outros
eventos que afastaram as pessoas da leitura de Marx, por exemplo, o fim
da Guerra Fria e o colapso dos Estados comunistas, que levaram muitas
pessoas a concluir que não havia uma boa razão para ler Marx. Foi um
período dos anos 1990, quando alguns diziam: “Ganhamos tudo… É o fim da
História…”
E a História, de repente, voltou. É um grande tempo,
em que as pessoas começam a olhar ao seu redor e entender que há alguma
razão para tentar analisar isso usando as ideias de Marx, para entender a
crise.
Poderíamos estabelecer uma relação entre a possibilidade de explicar a crise econômica atual e a análise feita por Marx em “O Capital”? DH: Acho
que você poderia, na verdade, ler “O Capital” e falar sobre a
Grã-Bretanha e os Estados Unidos nos anos 1970. Era difícil ver a
conexão àquela altura por causa do Estado de Bem-Estar Social, o poder
estatal parecia estar crescendo, o capital estava de certa forma sob
controle por forças políticas.
Então, quando comecei a dar aula, nos anos 1970, o assunto que estava
em pauta era o imperialismo, e Marx não fala tanto assim sobre
imperialismo, era difícil fazer dele um autor relevante nessa situação.
Mas
quando se tem 30, 40 anos de neoliberalismo destruindo o Estado de
Bem-Estar Social, mudando os processos de trabalho para um estágio
anterior e voltando ao que eram no século XIX, as pessoas leem Marx,
especialmente o Volume 1 de “O Capital”, sobre as condições do trabalho,
e dizem: “Nossa, é o que está acontecendo na China, nas zonas de
empresas maquiladoras”.
Fica muito mais fácil conectar o
argumento, principalmente do volume 1 de O Capital, com o que está
acontecendo agora, porque toda a história do neoliberalismo tem sido
recriar aquele mundo do século XIX, com a visão de forças de exploração,
a desigualdade econômica e, claro, a destruição do meio ambiente e tudo
relacionado a isso.
Como professor, é mais fácil para eu poder dizer: “Leiam Marx, e agora vamos pegar alguns trechos do New York Times da última semana e ver qual é a diferença”. As pessoas dizem: “Uau, o que está acontecendo?”
No
mesmo contexto da política econômica, outro pensador, Keynes, foi de
alguma forma resgatado para explicar algumas soluções financeiras para a
crise. Hoje, na sua visão, quem desperta mais interesse para explicar o
atual cenário, Keynes ou Marx? DH: Acho que Marx é muito
mais interessante. Desde que você leia tudo de Marx, quando você lê o
volume 2, Keynes lhe vem à mente, o que não acontece quando lê o volume
1. Quem vem à mente quando se lê o volume 1 é Friedman ou Hayek. De
certa forma, eu diria que os mecanismos centrais do desenvolvimento
econômico no período de 1945 a 1975 estão no volume 2, o que suscita
Keynes e a questão da gestão.
Desde 1975, há uma mudança de
perspectiva, e voltamos às formulações do volume 1, particularmente no
que diz respeito ao gerenciamento da demanda/oferta de trabalho, que
evolui para as formas mal pagas. O que Marx faz, e há uma fala muito
interessante no Grundrisse [três manuscritos econômicos de 1857-1858]
que é “para entender O Capital, você tem de entendê-lo como uma
contribuição contraditória, com diferenças entre o volume 1 e o volume
2”. Ele diz que é preciso ver que isso é uma interação contínua, na qual
a rota da crise, nos anos 1970, é a mesma que acontece hoje.
Diria
que as coisas ficam mais ricas a partir da leitura de Marx, mas é
preciso ler o volume 1 e o 2. E o volume 2 é um livro muito chato,
difícil, mas se você quer compreender Marx tem de entender como essa
parte se relaciona…
Países como o Brasil e alguns outros
se inspiraram um pouco ou muito em Keynes para definir suas políticas
anticíclicas. Mas existe hoje algum país que esteja se inspirando em
Marx para formular suas políticas econômicas? DH: Não, não
vejo nenhum país hoje usando Marx como modelo. Na América Latina afora,
houve uma rejeição geral ao neoliberalismo, então, há algumas
experiências como a da Venezuela, do Equador, da Bolívia e, em algum
nível, um movimento keynesiano no Brasil e na Argentina… Parece claro
para mim que a América Latina está pronta para ir um pouco mais longe na
direção de Marx, mas acho que isso deixa as pessoas bem nervosas, até
mesmo [Hugo] Chávez, acho que ele não atacou realmente a questão de
classes… Mas, você sabe, ele fez muitas coisas…
Enfim, não vejo
nenhum país fazendo isso. Vejo experiências, por exemplo, como a de um
estado indiano, Kerala, que é muito interessante, pois é plural, e ali
há um dos melhores índices de saúde, de alfabetização, demonstrando o
que um país pobre pode fazer quando tem um governo comunista que decide
assumir os direitos das pessoas pobres, direitos educacionais e fazer
alguma coisa que é radicalmente diferente.
Há lugares no mundo
que experimentam, onde há coisas boas acontecendo, solidariedade e
economias crescendo, grupos ambientalistas, alimentados em geral pelo
anticapitalismo. Vejo muito disso pelo mundo, muitos anticapitalistas
que não necessariamente leem Marx. É claro que há uma inclinação a
adotá-lo, porque ele é associado a uma posição político-partidária, de
centralismo democrático, estalinismo, mas na economia faz-se uma leitura
diferente de Marx.
Há alguns movimentos interessantes e
distintos nos últimos anos, como o Occupy Wall Street; os Indignados, na
Espanha; o Beppe Grillo na Itália. Hoje, os partidos não contemplam as
possibilidades transformação política e social? Os partidos estão sendo
muito lentos… DH: …para lidar com a raiva que existe nas
ruas. Os partidos políticos são dominados pelo FMI (Fundo Monetário
Internacional), pelo Tesouro dos EUA, Bancos Centrais e por aí vai.
Parecem não ter ideia sobre como aproveitar o descontentamento e usá-lo
politicamente, mas acho também que há alguns problemas na natureza desse
descontentamento, porque muito disso é um protesto contra algo, mas não
se tem uma visão de como um alternativa real se mostraria na prática.
Claro,
há exceções: por exemplo, esse novo partido (Syriza) que quase tomou o
poder na Grécia esteve muito perto de se associar aos protestos da Praça
Syntagma, do movimento dos Indignados. E acho que há sinais de
políticos tendo que se mexer um pouco mais, se aproximar. Outros
movimentos já se enfraqueceram, não são mais tão ativos, como aconteceu
recentemente no Chipre. Acho que será muito interessante ver o que sairá
dali.
É possível ver a mesma coisa pela América Latina afora,
por exemplo, a tensão entre [Evo] Morales, na Bolívia, e os indígenas,
uma tensão que apareceu com os indígenas cobrando: “Você não faz o que
te demos o poder para fazer”, e ele: “Tenho de lidar com forças
internacionais, como posso?” Acho que essa é uma dificuldade real, a
política tendo de lidar com esse tipo de equilíbrio de forças.
O senhor mencionou a situação no Chipre, como vê o futuro da zona do euro, nesse contexto? DH: Teoricamente,
penso o Estado como tendo dois poderes primários: o primeiro é o
monopólio sobre os meios de “violência legítima”; o segundo é o
monopólio da moeda. O que aconteceu com o euro foi que os Estados
abriram mão de boa parte de seu poder, permitindo que esse poder fosse
realocado em Bruxelas [sede do Banco Central Europeu], essencialmente
dominada por países como a Alemanha e, em certo nível, a França. Então,
se não tivessem aderido ao euro, não estariam nessa situação.
O
governo não pode definir o valor de sua própria moeda, o padrão
econômico/financeiro está na mão de outro [território], em outra moeda. A
Grécia foi isso: “Ok, haverá inflação… vão achar um jeito… Ah, mas eles
não podem fazer isso”.
Então, para o inferno com o padrão da
inflação, o que os alemães querem, eles não podem inflar suas dívidas,
porque a maneira de se livrar da dívida é a inflação, pagar em dólar um
valor que seria menor, que não corresponde à realidade.
Então,
acho que a zona do euro está numa confusão, e não consigo vê-la
permanecendo junta, a não ser que defina uma estrutura federativa, como a
que existe nos Estados Unidos.
Mas parece impossível, não é? DH: Bem,
vamos falar sobre isso. Em qualquer caso, a teoria que está guiando a
política na União Europeia é completamente ridícula. Seria muito melhor
se colocassem um pouco de keynesianismo na situação, mas não estão
preparados para isso, então, estamos caminhando para a estagnação e
também para um desenvolvimento geográfico desigual, com a Alemanha indo
extremamente bem e outros países, como Itália e Espanha, não tão bem
assim.
Alguns caminharam para o desastre, e não vejo dirigentes
políticos tomando decisões sensíveis sobre o que deveria ser feito, e
não há nenhuma revolução em movimento que vá forçar grandes mudanças
reais.
Sobre a questão urbana: vemos aqui no Brasil, na nossa
história recente, que nossas cidades estão estruturadas de acordo com o
capital privado. E as forças públicas apenas parecem agir para tornar
mais fácil que o mercado imobiliário predomine, com um modelo urbano e
arquitetônico cada vez mais propício à segregação, com menos espaços
públicos. É fácil ver isso em São Paulo. O senhor esteve aqui no Brasil
antes, e em São Paulo. Como geógrafo, antropólogo e, ainda, como
estrangeiro, o que o senhor pode dizer sobre São Paulo e as cidades
brasileiras? DH: Bem, eu voltaria à página 1 de “O Capital” e
diria: “Vamos olhar para o valor de uso e o valor de troca” e então
perguntaria: “O que é o valor de uso de casas, condomínios e muitos dos
prédios ao nosso redor e qual é o valor de troca nas vias de acesso?”.
Você está buscando criar um valor de troca ou tentando garantir que
todos tenham acesso à moradia? Bem, crescentemente – de novo, isso eu
acho que é do século XIX, e digo globalmente agora, não só sobre o
Brasil – o valor de uso se tornou cada vez mais insignificante, e a
busca pelo valor de troca se tornou cada vez mais significativo.
Acho
que se tornou mais importante a partir desse ponto de inflexão da
situação dos trabalhadores, porque alguns conseguiram fazer economia
para comprar suas casas. Então, ao longo dos últimos 30 a 40 anos, as
casas se tornaram objeto de especulação financeira. O que se vê é uma
evolução do que houve nos últimos 150 anos de construção das cidades,
que têm sido erguidas para maximizar valor.
E o que vemos nos EUA
foi que o sistema quebrou, e algo entre 4 a 6 milhões de pessoas
perderam seus valores de uso. Agora, politicamente, pergunto: Em que
tipo de sociedade você preferiria viver: uma sociedade que está se
concentrando a produção de valores de uso para todas as pessoas ou uma
sociedade guiada pelo valor de troca, maximizando o consumismo, já que
temos de conceber a vida com um automóvel para viver na cidade?
Manhattan
está dominada hoje por gente muito rica, e há muita gente vivendo fora,
na periferia, a quilômetros de distância, e que levam três horas para
chegar a seu trabalho de manhã e três horas para voltar à noite.
Gostaria de ver as pessoas começando a pensar sobre formas de “fazer”
cidades baseadas em oferecer coisas úteis, uma reforma dos estilos de
vida, do que seria democrático para todos.
E, aqui em São Paulo,
acho que a primeira vez que vim aqui eram os anos 1970, e toda vez que
venho aqui vejo mais e mais vias rápidas, mais trânsito, demora mais
para se chegar ao aeroporto do que na vez anterior e você se questiona:
“Uau, por que alguém gostaria de viver assim?”.
Sobre "O
Enigma do Capital" (Boitempo Editorial), mais especificamente sobre as
sete esferas do capital, o senhor acha que estas esferas podem criar
resistência dentro do capitalismo? Por exemplo, movimentos como o Occupy
ou a questão da consciência ecológica pode realmente mudar ao menos
algumas coisas no capitalismo? DH: Acho que a mudança
política normalmente começa com pequenas coisas. Atualmente, há um
trabalho interessante de pessoas tentando fazer os outros entenderem
para que tipo de vida futura podemos estar caminhando, que tipo de
futuro econômico e político podemos ter.
Por exemplo, está claro
que um grande segmento da classe trabalhadora tem sido afastado por
razões tecnológicas. Está muito claro que esses fatores tecnológicos vão
se tornar muito mais fortes, que hoje são feitas tarefas mecânicas, por
meio da automação, mas logo mais isso chegará às tarefas intelectuais
também.
Estamos falando até de diagnósticos médicos não sendo
feitos por médicos, mas por máquinas automáticas, que podem ser muito
precisas. E, claro, os médicos têm resistência a essa ideia, mas acho
que o que isso significa é que muitos trabalhos vão desaparecer.
Olhando
para a interação entre a esfera tecnológica e as relações sociais,
podemos fazer perguntas como: “Se é para esse rumo que a tecnologia está
indo, o que isso significa para as relações sociais, o que isso
significa para a vida cotidiana?”. E, de várias maneiras, pode-se
verificar nisso aspectos negativos, como as pessoas que ficarão
desempregadas e não terão nada para fazer ou, quem sabe, pode ser um
momento de criatividade, no qual as pessoas terão muito mais tempo livre
e começarão a usá-lo de formas construtivas.
Esse é o tipo de
coisa que, olhando para as esferas, você pode começar a ver algumas
possibilidades. Havia uma pequena nota no New York Times outro dia,
dizendo que um cara bem rico havia efetivamente se livrado de todas as
coisas que tinha para viver uma vida bem mais simples, numa casa bem
pequena. Uma das coisas que ele pontuava era: “O norte-americano médio
tem menos de mil pés para morar nos anos 1950, mas agora o
norte-americano médio tem 2,5 mil pés de espaço de moradia”. E então
dizia: “Eu voltei para um espaço menor, me livrei da maior parte dos
gadgets, que nunca funcionavam direito mesmo, e agora só tenho algumas
coisas; tenho uma ótima vida social.” E ele descreveu uma existência
muito feliz, de viver com muito pouco. Não com nada, mas com muito
pouco.
Se muitas pessoas tivessem essa ideia, começaríamos a ver
cidades bem diferentes e não desperdiçaríamos tantos recursos na
construção de grandes casas em condomínios particulares afastados, com
milhares de pés de construção, hectares de terras desperdiçadas com
coisas descartáveis. As concepções sobre as coisas precisam mudar, assim
como as relações sociais.
Mas é claro que estamos lutando contra uma indústria do marketing e um tipo de ideologia consumista que está sendo promovida.
O
senhor fala no seu livro, “Condição pós-moderna” (Edições Loyola),
sobre a compressão da experiência tempo e espaço. Que futuro vê para a
vida urbana nesse contexto, em que as experiências são mais virtuais e
os espaços urbanos estão ficando mais restritos, mais privados? DH: Quando
falo sobre essa compressão de espaço e tempo, na verdade estou falando
sobre como o capital está operando. Isso não necessariamente se aplica
para as pessoas que estão vivendo suas vidas numa comunidade em
particular ou coisa assim, mas, claro, para as pessoas que têm de lidar
com o que está acontecendo em relação ao movimento dos lucros, pois isso
depende do que está acontecendo em Hong Kong, outros lugares, do que
está acontecendo com o fluxo de capitais, por que estamos tendo uma
desindustrialização de muitas cidades ao redor do mundo, porque a
indústria vai daqui para ali, esse tipo de questões.
Mas acho
que, paralelamente a isso, vem essa crescente privatização, que leva de
volta ao projeto neoliberal, o que significa dizer que você não tem
nenhum direito. Você é responsável por você mesmo, responsável por seus
próprios cuidados médicos, sua educação, sua moradia, e não pode esperar
o Estado cuidar de você. Existe essa noção de responsabilidade pessoal,
que é algo que se tornou global.
Mesmo que você tenha passado
toda a sua vida em uma determinada comunidade em São Paulo, vai sentir
os efeitos disso ao seu redor. E, novamente, as concepções mentais do
mundo começam a confrontar o regime de propriedade privada, que está
conectado a um Estado que não cuida do bem-estar dos cidadãos. Tudo o
que faz é apoiar a propriedade privada, a agenda da propriedade privada e
a agenda de classe da classe dominante.
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