Sugerido por P Pereira
Da Rede Brasil Atual
'Foi um depoimento cínico', diz
integrante da Comissão da Verdade. 'Não é crível', acrescenta outro
sobre audiência realizada em São Paulo com delegado Calandra, que atuou
no DOI-Codi
por João Peres
São Paulo – Sérgio Gomes respira
fundo, toma um gole d'água e decide mudar o rumo da prosa, sem olhar
para o lado: “A vingança é a justiça dos bárbaros. A justiça é a
vingança dos civilizados”. Dois metros à esquerda, talvez menos, um
senhor alto, corpulento, de cavanhaque e cabelos brancos, toma assento,
mantendo a vista para o alto e o queixo erguido. A chegada do delegado
aposentado Aparecido Laertes Calandra transforma o clima da audiência
realizada no auditório do 17º andar do prédio do Banco do Brasil
localizado entre a Avenida Paulista e a Rua Augusta, no centro de São
Paulo.
Na hora e meia anterior, a sessão da
Comissão Nacional da Verdade havia servido de catarse para que vítimas
da ditadura (1964-1985) colocassem para fora um incômodo passado, que
para alguns vem à tona o tempo inteiro, e que para outros dormiu
profundamente até a manhã deste 12 de dezembro de 2013, quatro décadas
depois dos fatos. “É da natureza dos regimes políticos engendrarem ou
não a tortura como método”, continua Sérgio Gomes, preso em 1975 no Rio
de Janeiro e transferido ao DOI-Codi, um dos principais espaços de
repressão montados pelo regime na capital paulista.
O jornalista, já normalmente inquieto,
deixa de atentar para as perguntas que lhe são feitas pelos dois
integrantes da comissão postados em sua frente e, sem fitar a pessoa que
está logo ao lado, passa a discorrer sobre a esperança de
redemocratização, hoje frustrada pela transição incompleta do Brasil
pós-regime. Quando é interrompido, Sérgio finalmente fita o delegado,
que não retribui o olhar, e se levanta em seguida: “É tão estranho a
gente se encontrar assim, não?”
A tomada do depoimento de Calandra foi
um dos grandes momentos públicos de interrogatório promovidos pela
comissão criada em maio de 2012 pela presidenta Dilma Rousseff com o
intuito de apurar crimes cometidos por agentes do Estado entre 1946 e
1988. O delegado foi convocado devido à dezena de depoimentos que o
conectam à tortura no DOI-Codi ao longo da década de 1970 e a documentos
que corroboram essa tese.
Hoje, Calandra e a democracia se
reencontraram, mas não foi desta vez que fizeram as pazes. “Temos um
conjunto de informações muito robusto que não coincide com seu
depoimento”, lamentou o advogado Pedro Dallari, integrante da CNV, após
quase 50 minutos de um questionário amplo. “Evidente que seria muito
melhor para nós e para o país se o senhor se dispusesse a resgatar os
fatos relativos à sua presença por dez anos no DOI-Codi. Por razões que
só o senhor sabe avaliar o senhor está tomando outra opção, que é
respeitada porque vivemos em um Estado democrático de direito. Colabore
com a comissão. Isso fará bem ao país e ao senhor”, concluiu.
“E à sua própria consciência”,
acrescentou o também advogado José Carlos Dias, o outro integrante da
comissão presente à audiência, que durou três horas. Calandra entrou na
sala acusado de ter participado da tortura e do desaparecimento de
Hiroaki Torigoe, estudante e integrante do Movimento de Libertação
Popular (Molipo) sequestrado em 1972, e de Carlos Nicolau Danielli, do
PCdoB, morto no mesmo ano. Essas mortes renderam ao delegado um processo
movido pelo Ministério Público Federal.
Após o questionário, deixou o local
com a certeza de que seu nome estará no relatório final da Comissão da
Verdade, o que pode levar a uma nova ação pelo MPF ou reforçar a já
existente. “Foi um depoimento cínico. Ele teve a desfaçatez de negar o
óbvio. Que negasse as acusações que se fez contra ele, é crível, porque o
réu tem o direito de negar. Ele aqui não é réu, mas de qualquer forma é
acusado. Agora, dizer que durante oito anos trabalhou no DOI-Codi e
nunca ouviu um grito, nunca ouviu uma alegação de que lá se torturava.
São coisas absolutamente óbvias que ele negou”, constatou Dias, em
entrevista à RBA.
Chances para que Calandra colaborasse
não faltaram. Algumas perguntas foram repetidas três, quatro, cinco
vezes, e as respostas acabaram confrontadas com provas, testemunhos e
documentos conectando-o ao Capitão Ubirajara, acusado de ser um dos
chefes da tortura no DOI-Codi. Mas a decisão dele já estava tomada antes
de entrar na sala. “Eu era um burocrata” é a frase que resume o
depoimento. Frente a qualquer questão, o delegado alegou desconhecimento
e se classificou como um simples cumpridor de funções.
Pregou a versão de que trabalhava como
uma espécie de cartorário dentro do DOI-Codi, um “assessor jurídico”,
sem que tenha se deparado com documentos que comprovassem a existência
de tortura e assassinato pela repressão. Questionado sobre a alcunha de
Ubirajara, Calandra negou: “Nunca usei esse codinome”, garantiu,
acrescentando jamais ter participado de interrogatórios.
“O senhor tem certeza? Essa comissão
colheu número expressivo de depoimentos”, advertiu Dallari, recebendo
como resposta uma nova negativa. Questionado sobre as pessoas que teria
torturado, nome por nome, Calandra sempre se saiu com um “não conheço”
ou com um “nunca vi”. A ficha funcional do delegado registra elogios
pelo trabalho na luta contra a “subversão” e pela eficiência nos dados
enviados ao sistema de informações do 2º Exército. “Minha função era
como assessor jurídico. Isso é linguagem que eles usavam”, alegou.
Calandra jurou ter passado “oito ou
nove anos” dentro da sede do órgão de tortura sem nem sequer ter ouvido
falar sobre isso, e garantiu também que não conhecia ninguém lá dentro.
Confrontado com documentos, o delegado confirmou ter tido contato com
duas pessoas citadas como agentes da repressão. “Já chegamos a dois
nomes. Estamos indo muito bem, doutor”, ironizou Dallari, sem, no
entanto, conseguir do delegado confissões concretas sobre como
funcionava o aparato de violação de direitos humanos. “Não é crível que o
senhor, trabalhando oito anos numa repartição pública, não tivesse
conhecimento com ninguém.”
José Carlos Dias estranhou o fato de
um delegado da Polícia Civil instalado dentro de um prédio voltado à
coleta de interrogatórios jamais ter participado de uma sessão deste
tipo.
– O senhor é um homem inteligente. A
prova disso é que escolheu muito bem seu advogado. Gostaria que o senhor
dissesse com toda sinceridade. Durante oito anos trabalhou no DOI-Codi.
Nunca ouviu referência de que lá se torturava?
– Nunca ouvi referência disso.
– Hoje o senhor acredita que havia tortura?
– Não acredito porque não ouvi.
– E esses testemunhos?
– Esses testemunhos, a pessoa fala o que acha que deve falar.
Darci Miyaki falou o que achava que
deveria falar. Em público, decidiu tocar em sua ferida mais profunda ao
recordar da tortura que sofreu nas mãos de Ubirajara, entre janeiro e
agosto de 1972. Ela e Hélcio Pereira Fortes, da Ação Libertadora
Nacional (ALN), foram detidos juntos no Rio de Janeiro, e levados para o
DOI-Codi. Cinco ou seis dias mais tarde, o militante morreu sob
tortura. “Esse Capitão Ubirajara entrou na sala e disse 'o Élcio está
sendo empalado'. Isso ficou na minha memória”, resgatou.
“Já tinha sido torturada por ele.
Choques elétricos no ouvido, nos dedos dos pés, das mãos. Muito choque
na vagina. Muito. Era uma pessoa muito violenta. Não é nem nojento. Não
sei descrever o que significa para uma mulher um torturador introduzir o
dedo, um fio elétrico na sua parte mais íntima. Isso me marcou muito.
Tive muita hemorragia oral e vaginal e fui levada duas ou três vezes
para o Hospital das Clínicas. Eu me tornei uma mulher estéril.” Depois
daquele dia, Darci até tentou ter relações sexuais, mas nunca mais
conseguiu retomar a vida que levava antes do cárcere.
Calandra, por sua vez, disse não ter
problemas com o passado. “Durmo muito bem”, respondeu, quando
questionado por jornalistas sobre a postura adotada durante o
interrogatório. Fora de seu território, ele não gosta de falar,
especialmente com a imprensa.
O advogado dele, Paulo Esteves,
afirmou ter orientado o cliente para que “falasse exatamente a verdade”,
e declarou que só vai saber se isso foi cumprido depois de examinar os
documentos entregues pela Comissão da Verdade. “Acredito nele”, garantiu
o defensor, que também advoga para Carlos Alberto Brilhante Ustra,
chefe do DOI-Codi, a quem o delegado afirma não conhecer na intimidade.
Questionado sobre suas relações com
Calandra, Esteves disse conhecê-lo há 40 anos, mas não explicou em que
circunstâncias os dois se encontraram, e afirmou tê-lo visto quatro ou
cinco vezes nas últimas duas décadas. Indagado sobre a verossimilhança
da versão mantida por Calandra, o advogado apelou à tese dos dois lados:
“Também é possível uma pessoa ficar desaparecida e sequestrada por mais
de 40 anos. Também é verossímil, por essa mesma linha de pensamento.
Estou comparando. Também acreditamos que pessoas tenham ficado presas
durante 40 anos”.
Esteves parece ser um homem precavido.
Afirmou, sem que fosse perguntado a respeito, ter movido uma centena de
ações contra jornalistas por reportagens a respeito de militares,
algumas delas atingindo até R$ 4 milhões de indenização. Em seguida,
questionado sobre o grande número de testemunhos contra Calandra,
apegou-se ao jargão jurídico. “Não quero ser leviano nem contra um lado,
nem contra o outro. Agora, essa questão de prova testemunhal, pelo
menos se encontra na doutrina, a testemunha é a prostituta das provas”,
disse, admitindo, porém, que o delegado estava sujeito à interpretação
de que seu depoimento flertou com a mentira. “Tudo aquilo que se fala o
Direito acolhe em todos os setores que atua o princípio da
razoabilidade. O julgador não está adstrito a examinar as provas dos
autos. Em cima do fato, se for razoável ou não, o juiz pode decidir.”
Preso e levado ao DOI-Codi, em 1973, o
deputado estadual Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão Estadual
da Verdade Rubens Paiva, da Assembleia Legislativa, destacou o que
considera ser o perfil psicológico de Calandra na hora da tortura.
“Principalmente de mulheres. Era a predileção dele. Deixá-las nuas e
humilhá-las.” Questionado se aquele que estava a seu lado era Ubirajara,
Diogo não titubeou: “Isto é uma coisa inesquecível. Lógico que ele não
tinha o cabelo branco.”
Nem o cavanhaque. Mas isso não impediu
que o vereador Gilberto Natalini (PV), presidente da Comissão Municipal
da Verdade Vladimir Herzog, de São Paulo, reconhecesse o algoz. “É um
grande mentiroso. Um homem que está se protegendo das barbaridades que
ele fez. Ele diz que é engano pessoal. Imagina a Darci, contar o que ela
contou, se é engano pessoal”, disse, em entrevista, queixando-se de uma
forte dor de cabeça provocada pela descarga emocional de dividir o
espaço com Ubirajara.
Em outra sessão, quando foi tomado o
depoimento de Carlos Alberto Brilhante Ustra, Natalini se exaltou, e
chegou a bater boca com o chefe do DOI-Codi. Desta vez conseguiu se
segurar. “O Calandra foi um dos maiores torturadores que o Brasil já
teve. Um homem sem alma, sem sentimento, sem compaixão. Um monstro. Hoje
ele é um monstro transformado, dissimulado, escondido debaixo dessa
capa de mentira.”
Uma capa que o impediu de se recordar
também de Maria Amélia Almeida Teles, com quem já havia debatido por
meio de entrevistas publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo, quando a
classificou como “terrorista”. Presa junto com o marido, ela afirma que
Ubirajara a chamou e a aconselhou a admitir ser amante de Carlos Nicolau
Danielli. “Ele insistia me falando muito de sexo. Ameaçou me dar
choques elétricos.” Dias depois, ela foi chamada a uma sala em que
estava uma mulher apresentada como a companheira de Danielli. “Aí ele me
deu choques elétricos.”
Na terceira vez, em frente à escada
que levava à sala de tortura, Calandra mostrou a ela um jornal com o
título “Terrorista morto em tiroteio” e a história da morte de Danielli,
assassinado sob tortura, segundo relatos dela e de outras vítimas da
repressão. “Para mim esse foi o pior momento. Ele se gabando de ser o
autor daquela farsa, daquela mentira, e ainda me ameaçando que eu teria
uma morte como aquela”, recordou Amelinha.
– Estou falando com você friamente – ameaçou Calandra – Para a morte de vocês, damos a versão que nós queremos.
A versão final, porém, caberá à Comissão Nacional da Verdade.
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