quinta-feira, 27 de outubro de 2016

POLÍTICA - Lava Jato e Mãos Limpas.

Lava Jato e Mãos Limpas, diferenças e semelhanças

Parceria com a imprensa para se obter condenação prévia e tolerância a abusos, cerceamento da defesa, indiciamentos sem provas e a sombra dos Estados Unidos... Semelhanças e coincidências?
por Flávio Aguiar publicado 12/10/2016 16:32, última modificação 13/10/2016 11:23
Parceria com a imprensa para se obter condenação prévia e tolerância a abusos, cerceamento da defesa, indiciamentos sem provas e a sombra dos Estados Unidos... Semelhanças e coincidências?

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Para Antonin Scalia, da Suprema Corte norte-americana, o cerceamento à defesa na Mãos Limpas seria inadmissível nos EUA
A declaração deselegante do prefeito eleito de São Paulo, João Doria Júnior (PSDB), de que levaria chocolates para o ex-presidente Lula “em Curitiba” (leia-se, na prisão), seguida da de que ninguém do seu partido seria preso, sublinhou mais uma vez o viés partidário da Lava Jato. No passado recente, esse caráter enviesado fora também assinalado com o vazamento pelo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, de que “algo aconteceria” – a detenção, “por falta de provas” (!), do ex-ministro Antonio Palocci. E ele foi sendo evidenciado ao longo de toda a operação, com vazamentos seletivos para a mídia, as pressões para que as denúncias atingissem preferencialmente o PT, culminando com a transformação do ex-presidente e sua mulher em réus pelo juiz-chefe da operação a partir de uma denúncia “sem provas cabais” mas “com convicção”.
Sem falar no pretendido stop nas denúncias premiadas, segundo anúncio de membros da PF, agora que elas poderiam devastar Temer, o PMBD e o PSDB, que, diga-se de passagem, já estão devastados, embora isto, ao contrário do caso do PT, não resulte em bombas na mídia conservadora e nem em prisões temporárias ou preventivas. Com frequência, os próceres da Lava Jato – juiz, promotores, policiais, defensores – a comparam à operação Mãos Limpas (Mani Pulite), deflagrada na Itália nos anos 1990. Uma observação mais detalhada, de fato, revela coisas interessantes, algumas diferenças e muitas semelhanças, embora estas nem sempre sejam lisonjeiras para ambas.
Assim como a Lava Jato começou numa cidade distante dos grandes centros políticos, Curitiba, a Mãos Limpas começou em Milão, não em ­Roma, a partir da ação dos promotores locais, capitaneados pelo também promotor Antonio Di Pietro. Segundo os dados disponíveis, a Mãos Limpas atingiu 5 mil figuras públicas, metade do Parlamento italiano, pelo menos 300 empresários, além de policiais e também juízes. Provocou a dissolução de 400 câmaras e conselhos municipais em cidades grandes, médias e pequenas. Levou alguns dos acusados ao suicídio.
Todos os partidos foram duramente atingidos, e a operação provocou o fim da “Primeira República”, construída após a Segunda Guerra, e a inauguração da Segunda. Partidos mudaram de nome, outros se fundiram em frentes amplas, à esquerda, ao centro e à direita. A operação derrubou o primeiro-ministro socialista Bettino Craxi, acusado de corrupção. Levado a julgamento a partir de 1993, foi condenado, tendo então se refugiado na Tunísia, onde morreu em 2000. Negou sempre as acusações, embora admitisse irregularidades no financiamento do seu partido. Já no Brasil, a Lava Jato vem sendo progressivamente acusada de partidarismo contra a esquerda, sobretudo o PT.
A Mãos Limpas é apontada como responsável direta pela ascensão ao poder de Silvio Berluscon­i, com seu então novo partido (Forza Italia), criado em 1994. Também é citada sua responsabilidade pelo crescimento do Lega Nord, de extrema-direita, fundado em 1991, no norte do país. No caso brasileiro, tornou-se conhecida a gravação da fala do senador Romero Jucá (PMDB-RR) afirmando que a deposição da presidenta Dilma Rousseff era necessária para parar a Lava Jato. Na Itália, corre a versão de que Berlusconi entrou para a política a fim de impedir que a Mãos Limpas atingisse suas empresas.
A Mãos Limpas, conduzida pelo promotor Antonio Di Pietro, atingiu 5 mil figuras públicas, metade do Parlamento italiano, pelo menos 300 empresários, além de policiais e também juízes. Provocou a dissolução de 400 câmaras e conselhos municipais em cidades grandes, médias e pequenas
Isso não impediu que seu irmão Paolo fosse acusado e detido. Entretanto, logo depois de chegar ao poder, Berlusconi conseguiu a aprovação de uma lei possibilitando que os acusados e condenados por crimes de corrupção conseguissem evitar o cárcere. Di Pietro e Berlusconi travaram uma batalha política, que levou o promotor à renúncia em 6 de dezembro de 1994. Berlusconi se viu forçado a também renunciar logo em seguida, em meio a uma crise que provocou o afastamento da Lega Nord da coligação. Voltaria ao poder em 2001, ficando até 2006, e de 2008 a 2011, quando renunciou novamente, agora em meio a desavenças com lideranças da União Europeia.
No Brasil, há avaliações de que a Lava Jato foi criada e municiada com informações sobre a Petrobras e outras empresas a partir dos Estados Unidos – todos hão de se lembrar dos episódios de espionagem da presidenta Dilma Rousseff pela Agência Nacional de Segurança (NSA) norte-americana, noticiados pelo site WikiLeaks. Na época da descoberta, em 2013, a presidenta chegou a cancelar visita de Estado a Barack Obama. A NSA teria grampeado, segundo a revista CartaCapital, uma das publicações que teve acesso aos dados do WikiLeaks, dez números de telefone ligados a Dilma, incluindo a linha fixa de seu gabinete no Planalto e até mesmo o telefone via satélite instalado no avião presidencial.
Foi no país de Obama que o juiz Moro complementou sua formação. No caso italiano, houve denúncia de que a Mãos Limpas foi fomentada e municiada também a partir dos Estados Unidos (fala-se na CIA). Em 29 de agosto de 2012, o jornalista Orlando Sacchelli publicou no site Il Giornale artigo em que cita o ex-embaixador norte-americano no país Reginald Bartholomew (1936-2012), afirmando que houve a interferência. Conceituado diplomata, Bartholomew foi embaixador na Itália de 1993 a 1997, depois de servir no Líbano e na Espanha. Citava que durante o período de seu antecessor (1989-1993), Peter Secchia, criou-se um clima de estreita colaboração entre o consulado norte-americano em Milão e os promotores da Mãos Limpas. Ele, Bartholomew, declarou ter determinado o fim da colaboração depois de assumir o cargo de embaixador. Não esqueçamos: se ela terminou, é outra história.
Qual o interesse dos Estados Unidos em ambos os casos? Na Itália, uma hipótese provável é a de que, em um mundo se rearranjando desde a queda do Muro de Berlim, houvesse o medo de que a “desorganização” do mundo político italiano pudesse levar para a esquerda um aliado-chave da Otan contra a Rússia que, embora estivesse desde julho de 1991 sob a presidência de Boris Yeltsin, era, e ainda é, um dos principais alvos da organização.
No Brasil, há hipóteses não excludentes: a aproximação com Rússia, China e Índia, por meio dos Brics, com a proposta de fundação de um mecanismo bancário alternativo ao controlado pelo FMI e o Banco Mundial; o interesse das empresas norte-americanas no pré-sal; o Aquífero Guarani; o controle sobre a base de Alcântara (MA); a renovação da frota de caças aéreos da FAB, por ora por conta da Suécia, mas de que a Boeing nunca desistiu; etc. Muitas dessas hipóteses citam a CIA, o Departamento de Estado e até a Casa Branca como a fonte das informações destinadas a desestabilizar o governo brasileiro de esquerda. É possível? O fato é que o governo norte-americano e o mundo dos governos democráticos europeus não se mexeram para defender a democracia no Brasil.
Assim como a Lava Jato, a Mãos Limpas foi criticada por cerceamento do direito de defesa de suspeitos e acusados, por presunção de culpa antes da inocência e pelos vazamentos espetaculosos para a mídia. Para os próceres, procuradores e policiais da operação brasileira, isso aparece como um mérito, uma “manipulação virtuosa” da mídia. Embora se ventilassem suspeitas de que alguns dos “vazadores” tenham até ganhado algum com os vazamentos, como o famoso Japa. No caso da Mãos Limpas, até Antonin Scalia, o arquiconservador juiz da Suprema Corte norte-americana, reconheceu que o cerceamento do direito de defesa ocorrido na Mãos Limas seria inadmissível nos Estados Unidos, como escreveu Orlando Sacchelli. No Brasil, até o momento, a atitude timorata do Supremo Tribunal Federal, mais a autorização para o clima de exceção por um Tribunal Federal, garantem impunidade para a República de Curitiba.
Sic transit gloria mundi (assim passam as glórias deste mundo). Vamos ver para onde vai tudo isto. Os operadores da Lava Jato pensam que estão construindo suas estátuas e quem sabe, nomes de ruas e logradouros. Será Doria Júnior o futuro Berlusconi, como previu o governador do Maranhão, Flávio Dino, um dos poucos vitoriosos à esquerda neste 2016? O futuro os olha, como sempre, com seus olhos de esfinge: decifra-me ou devoro-te.

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